domingo, 29 de dezembro de 2019


Indígenas
Quando jovem, de doze para treze anos, o ambiente familiar começou a me pesar muito. Acho que todo adolescente sente um desconforto de permanecer no ninho, quer voar sozinho. Radicalizei o hábito de sair de bicicleta. Passava as tardes andando pelas estradas do interior do município, subindo trilhas pelos morros de matas e campos ainda preservados, me interiorizando em todos os sentidos. Aos finais de semana saía cedo, seis da manhã eu já estava longe. Arrumei amigos que também gostavam dessas escapadas, tínhamos um grupo. Num feriadão de sete de setembro, combinei com outros dois uma viagem de bicicleta, seria nossa primeira. Iríamos até o mar pela estrada das Águas Claras, por ser bem calma e com lindas paisagens campestres. Estávamos ansiosos, preparávamos os mantimentos e ferramentas necessários, cada um levaria um pouco. Uns três dias antes, um deles arrumou uma boa desculpa e desistiu do passeio. E, para minha decepção, na manhã da saída, o segundo telefonou avisando que não iria. Não deu desculpa, só admitiu medo. Eu tinha quinze anos na época e me percebi capaz de ir sozinho. Senti o peso da responsabilidade, sabia do risco, mas me encorajei. Reforcei o arsenal de ferramentas na hora da partida, conferi os trocados, peguei algumas peças sobressalentes e um kit de reparo dos pneus, duas cuecas, amarrei tudo com sisal sobre um bagageiro improvisado feito de arame grosso e soldado com cuspe. Me despedi de minha mãe que já estava acordada e fui embora mesmo sem ninguém para me acompanhar.
Não tinha nenhuma experiência de longas distâncias, então pensei em não parar muito, para não me demorar. Somente em caso de avaria mecânica ou almoço. Atravessei a cidade com o dia ainda amanhecendo e peguei a RS040, estrada que me levaria até a praia de Pinhal, a mais perto de Porto Alegre. Planejei parar somente depois da cidade de Viamão, nalgum posto de gasolina, para comprar um refri e descansar um pouco. Às nove da manhã, atingi aquela meta e fiquei somente esperando aparecer o posto ou algum armazém para parar, já estava com sede. No entanto, isso eu não sabia, passando Viamão, naqueles tempos remotos, não havia nada. A estrada era de longas retas que subiam e desciam suaves colinas através da planície costeira. As subidas eram difíceis e quentes, mas as descidas deliciosas e frescas, me deixavam muito feliz e animado, ficava em pé nos pedais e parava de pedalar para pegar um ventinho e facilitar a circulação nas partes pudendas, arejar. A paisagem era de campos e charcos, nem uma árvore para fazer sombra. O sol estava quente, a primavera já estava próxima e as cigarras cantavam alto, um forte cheiro de grama seca tomava conta do ambiente. A sede começou a me incomodar.
Minha bicicleta vermelha era muito simples e barata, nada tinha além do absolutamente necessário: um quadro, duas rodas, o banco, o guidom, os pedais e uma corrente que unia a roda ao pedivela, não tinha câmbio, farol, buzina ou mesmo para-lamas. Num dicionário, seria a ilustração do verbete bicicleta. Era pesada e nas subidas exigia que eu ficasse em pé nos pedais. Os pneus eram “balão” e logo percebi que não estavam muito cheios, aumentando a necessidade de força para pedalar. Minha ingenuidade infantil começou a se mostrar evidente. Lembrei que não havia levado bomba para encher os pneus em caso de furo, apesar de estar bem apetrechado para repará-los. Também não levei alimentos ou mesmo água. O calor e o esforço já me castigavam, o sol secava ainda mais o meu já enxuto corpo adolescente.
A estrada era linda e silenciosa, me provocava muita meditação. Diante daquela paisagem, imaginei que teria a mesma aparência há milhares de anos, intocada. Antes da chegada de Cabral, era assim que os indígenas viam o país, sem cercas. Enquanto eu pedalava no asfalto ressecado, ia refletindo. Para atravessar o mesmo território que eu pensava cruzar em um dia de bicicleta por estradas lisinhas, quantos dias um ser humano a pé levaria caminhando no campo? Mesmo com um experiente mateiro a guiar o grupo, teriam que desviar de charcos, cruzar córregos, evitar formigueiros e cobras, atravessar capões de mato, pular barrancos, se perderiam, dariam voltas desnecessárias. Para mim era fácil, tudo plano e reto. A estrada é um guia espetacular, uma revolucionária invenção humana. Porém, eles tinham conhecimentos que eu não tinha e mesmo com a ajuda da estrada eu estava penando. Comecei a ficar tonto, a hipoglicemia, a insolação e a desidratação não me deixavam pedalar em paz: ou pedalava, ou ia reto, as duas coisas juntas eu não conseguia. Percebi que estava em perigo de vida, nada a vista, somente campo. Voltar talvez fosse mais longe do que o destino. Me senti um tolo, um grande desânimo me tomou. Pensei em fazer sinal para algum carro, mas eram poucos e passavam rápido. Talvez beber água de algum riacho, mas não via nenhum. Ao longe, vi um rapaz vindo de bicicleta no sentido contrário. Parei e fiquei esperando sua passagem. Quando se aproximou, tentei perguntar sobre onde eu poderia conseguir água, mas a voz não saiu. Ele me olhava curioso do outro lado da estrada, mas estava passando. Organizei rápido alguma saliva para as cordas vocais e consegui falar o que queria. Ele parou a bicicleta, apontou para onde vinha e me disse somente: ali. “Ali” era somente um capão de eucalipto no horizonte. Mas me enchi de esperança e pedalei em zigzag até lá. Finalmente um posto de gasolina, Capivari.
Na época, Capivari era somente um vilarejo na encruzilhada da RS040 com a BR101. Pedi um Teem e um xis salada na lanchonete. Sobrevivi até ali, estava satisfeito. Na hora nem percebi a magnitude da minha empreitada e o risco que sofri. Tomei todo Teem, 290 ml., enquanto esperava o xis e pedi outro quando ficou pronto, mais 290. Aquele líquido gelado entrou refrigerando tudo, foi o legítimo refrigerante. O senti descendo a garganta e caindo no estômago e rapidamente entrando na corrente sanguínea. Senti mesmo, juro. Se não era o Teem que foi direto para as artérias foi a temperatura dele que se espalhou por todo corpo. Não tinha muito dinheiro, então tinha que economizar. Refleti muito se tomaria o terceiro, mas resolvi garantir e tomei. Depois desse almoço reparador, verdadeiro restaurante, descansei numa sombra por meia hora e parti de novo, reanimado. Aqueles 870 ml. deveriam bastar até a praia. Andei uns 20 km e encontrei outro posto. Desta vez, para me assegurar que não ia passar por aquele apuro de novo, parei e tomei mais um refrigerante. Me senti tão bem e confiante que meus planos dariam certo que resolvi ir mais longe. Na encruzilhada entre Cidreira e Pinhal, Resolvi ir para Cidreira, dois quilômetros mais longe!
Essa viagem foi muito importante para a formação da minha personalidade. Diversas outras dificuldades apareceram pelo caminho: quebrou o freio, quebrou o bagageiro, caí um tombaço, tive bolhas de queimadura solar, não levei toalha ou escova de dentes, acabou o dinheiro, arrebentou o sisal. Mas aos poucos eu ia resolvendo os problemas que apareciam e aprendendo com eles. Na volta já não senti sede. Claro que meu corpo jovem, magro, treinado e saudável ajudava muito. Mas, por me impor uma experiência necessária com o desconhecido, com o que não é familiar, me tornei mais feliz, confiante e autônomo. Escalavrar o corpo esfregando-me no meio ambiente, fora do útero protetor da família, me fez quem eu sou hoje. Conhecer pessoas e alimentos, aprender línguas e hábitos, dormir em lugares e habitações, sofrer frio e calor, tropeçar e cair, passar fome e sede, sofrer com coisas que não nos são familiares, me fez crescer como ser humano. Talvez, voltar a ser um pouco indígena, olhar aqueles horizontes infinitos atravessando aquele território, tenha sido uma experiência positiva.
Anos depois, passei novamente pela RS040. Trabalhava como personal trainer de um senhor cego. Ele tinha uma bicicleta tandem, de duas pessoas. Eu o guiava e treinávamos muito pelas estradas do interior porto-alegrense. Propus irmos até a praia por Viamão, contando minha experiência anterior. Omiti todos os percalços, claro. Ele se animou, conseguiu até uma casa emprestada em Cidreira. Fizemos todos os preparativos e no dia combinado partimos. A viagem foi bastante fácil, mesmo para ele que já tinha seus sessenta anos. Foi fácil porque eu já era um profissional da atividade física. Já tinha todos os conhecimentos necessários para atravessar aquele território sem sofrimento. Eu entendia e previa tudo o que acontece com um corpo que se esforça no meio ambiente. Que perde água rapidamente com a atividade física, que desidrata somente se esfregando na massa de ar, que se queima com a exposição a radiação solar e precisa de enorme aporte energético na forma de alimentos. Conhecia perfeitamente a máquina bicicleta, a forma de mantê-la sempre lubrificada e ajustada para que o ciclista obtivesse o máximo de desempenho com o mínimo de perdas em energia vital. Guiei aquele senhor cego, que me obedecia em todas as orientações cegamente. Ele se esforçava quando eu mandava se esforçar, parava quando eu mandava, bebia e comia o que eu dizia, se vestia com o que eu orientava. Na volta ele contou para sua filha que tinha sido bem fácil ir até Cidreira e voltar, 260km de bicicleta. Me tornei um excelente guia para atravessar aquela planície costeira. Mas claro, alguém que acerta é porque já errou muito. Não é sorte, é experiência.
Para alguns membros, o convívio com a família é um pouco tóxico. As doses de convívio familiar devem ser mínimas para que não haja um desarranjo mental. Não é culpa de ninguém, nem do intoxicado nem dos intoxicantes, é da natureza humana. Para dar um exemplo escatológico, os coliformes fecais vivem aos montes dentro da gente, são absolutamente necessários a vida humana, degradam os alimentos para que possamos digeri-los. Porém, podem nos intoxicar se colocados no lugar errado. É da natureza humana que algo que vive nas nossas entranhas possa nos fazer tão mal. Eu sou um dos que se intoxica se passo muito tempo com a família. Então evito, moro longe, vou nalguns momentos especiais para rápidas visitas. Aniversários, natal, páscoa. Nesse natal fui de novo visitar a família. Depois das festas, subi na moto e parti para casa em Maquiné, no litoral. Nessas maluquices da vida, decidi fazer um caminho diferente já que era cedo da tarde e no verão anoitece tarde. Me dirigi para a boa e velha RS040.
A estrada está completamente modificada. Viamão cresceu muito, Águas Claras já é quase outra cidade, Capivari não é mais somente um vilarejo na encruzilhada. Há quase uma área conurbada de ponta a ponta do trajeto.  Restou pouco da paisagem original. Não se pode mais imaginar indígenas ali. O movimento é intenso, tem até pedágio. Entre Viamão e Capivari agora tem dezenas (dezenas!!!) de postos de gasolina. Fui devagar, respeitando o limite de velocidade, meditando com o ronronar do motor. O calor estava intenso nos primeiros dias de verão, comecei a suar e sentir sede embaixo das roupas de proteção da moto. Começo a lembrar e fazer conexões aleatórias. Lembrei daquela heroica primeira viagem. Não ouço mais cigarras, nem sinto cheiro de grama seca, talvez porque agora esteja sobre a moto, talvez porque não existam mais mesmo essas coisas. Lembrei do tempo que viajei de bicicleta pela Europa, como lá era difícil de encontrar algum trecho de estrada sem casas, era vilarejo após vilarejo. Ambiente natural já não existia lá, como agora aqui. Lembrei de outras viagens que já fiz, de moto e bicicleta, o tanto que já rodei em duas rodas. Numa descida, fiquei em pé sobre os pedais, arejando as partes, como no tempo de ciclista. Por alguma razão, diante dessa paisagem, meu sistema nervoso, fez uma avaliação sensacional: o calor, o suor, os cheiros, os ruídos, a vibração, a posição do corpo no espaço. Fiquei feliz e me senti com quinze anos de novo. Que momento feliz. Ri alto.
A viagem prosseguiu e tomei a BR101 em direção a Osório na encruzilhada de Capivari. Sigo vasculhando memórias. Lembrei dos meus alunos indígenas. Como eles sempre parecem estar entristecidos. Pois claro, imagine se você tinha infinitas planícies para viver e de repente a conurbação faz desaparecer o teu meio ambiente, teu modo de vida. Que triste. Imagine que você aos quinze anos já seria um experiente mateiro, com múltiplos conhecimentos necessários a vida e capaz de fazer longas travessias na natureza selvagem, mas agora esse conhecimento não é mais considerado relevante. Imagine que antes tu podias ir para qualquer lugar, sem cercas de qualquer lado e agora se encontra confinado em alguma “reserva”. Que desconforto. Imagine que tua família é o grupo todo, todos são responsáveis por tua educação e segurança, mas agora as leis obrigam a tu nomeares algum responsável por ti. Tu tens que ter as mesmas neuroses das famílias dos brancos, viver confinado entre quatro paredes como eles. Deve ser bem triste mesmo, quando já podes abrir tuas asas e voar sozinho pelo mundo, mas uma série de leis te aprisionam e todos tem que estudar e aprender os mesmos assuntos distantes da realidade na escola. Os indígenas devem ficar deprimidíssimos mesmo com a forma de vida dos brancos. Do outro lado, nós, brancos, ficamos horrorizados de por que os indígenas deixam as crianças tão soltas, qualquer um pode pegar o bebê. Por que eles preferem caminhar dias enfrentando os elementos da natureza em vez de fazer uma bela estrada, lisinha e reta. Eles estão envolvidos na natureza, nós nos desenvolvemos dela. Nosso grande desenvolvimento levou a uma série de problemas que nem percebemos direito, tão desenvolvidos da natureza estamos. Por mais desenvolvidos que sejamos, temos que admitir, a estrada da vida não é reta e lisinha. Nossa ingenuidade infantil acreditou que poderíamos controlar todos os problemas, nos apetrechamos para isso, mas sempre aparece um imprevisto no caminho. Passamos sede, criamos neuroses familiares, ficamos tontos, o clima global se modifica, esquecemos a bomba de encher pneu. Não acho que deveríamos voltar a viver como indígenas, mas também não acho que eles devam viver como nós, pois nós não somos muito bons exemplos. Já erramos muito, precisamos começar a usufruir dessa experiência. Como não tem estrada para nos guiar ao futuro, acho que deveríamos conversar mais a luz da fogueira. Sempre estamos desconfortáveis com alguma coisa, como um adolescente. Talvez sair mais de bicicleta e se interiorizar resolva.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2019


Queridas alunas, queridos alunos, colegas professores, familiares e amigos aqui presentes.
Eu sou analógico, meus alunos digitais. Sou disco de vinil, cinco músicas no lado A e mais cinco no lado B, meus alunos baixam 1500 músicas da nuvem no spotify. Tenho a necessidade de falar, contar longas histórias contextualizando tudo, meus alunos twitam até cento e quarenta caracteres e postam imagens no instagram. Eu copio a tarefa no quadro e eles tiram fotos e põe no grupo da turma no whatsapp. A impaciência comigo era inevitável. Essa turma não acreditava aprender nada comigo. Faziam o que eu pedia só para cumprir tabela. Talvez eles tenham razão. A instituição escola no Brasil data do século XIX, tinha o mesmo formato de quartéis, hospitais e presídios, longos corredores com portas que acessam as salas, tudo inspirado na arquitetura da revolução industrial. O objetivo era a produção em massa de cidadãos instruídos, como uma fábrica. Os professores são bem mais modernos, do século XX, assistiam televisão com cinco canais. Já os alunos são do século XXI, tem acesso a todo conhecimento do mundo na palma da mão a qualquer momento. Séculos XIX, XX e XXI convivendo num mesmo espaço. Essa assincronia tem seu preço. Tivemos muitos atritos. Vocês sabem a história daquele menino negro, pobre e judeu da palestina? Jesus também foi impaciente com seus professores. Aos doze anos, sumiu por horas, seus pais o encontraram na sinagoga, discutindo com rabinos, ele dizia: O que vocês fazem não é o que está escrito. Quando cresceu, aquele guri atrevido mudou os paradigmas filosóficos do mundo todo. Empoderou os pobres, as mulheres e os escravos com sua mensagem de liberdade, igualdade e fraternidade. Fiquei sem palavras com essa honraria. Agradeço profundamente, meus queridos alunos. Creio que resolveram homenagear um dos últimos professores vivos. Minha profissão é uma profissão de fé, temos que acreditar que os alunos conseguirão. Faço todos os esforços para isso. Com essa homenagem nessa formatura vi que obtive êxito. Professores estão em extinção, logo seremos substituídos por algum aparelho, que ainda não existe, com inteligência artificial. Nada me ensinaram sobre celulares na escola, porque eles ainda nem existiam quando eu era estudante e tinha a idade de vocês. O mundo dá muitas voltas. Muitas das profissões que vocês exercerão ainda nem foram criadas. Daqui cinquenta anos, em 2070, quando vocês estiverem idosos e cansados, se aposentando, talvez lembrem dessa formatura e desse professor. Professor e profissional tem a mesma origem etimológica, é aquele que apresenta um conhecimento, que professa suas crenças em público. Então, aqui vai minha última lição, vou revelar em público no que creio, qual a minha fé, por favor tolerem mais um pouquinho minha inadequação épica aos novos tempos. Quando nasci, o mundo tinha três bilhões de habitantes humanos, agora tem quase oito e quando vocês tiverem minha idade terá treze. O que as pessoas valorizam atualmente são bens: carros, casas, dinheiro, título de ações da bolsa de valores ou ouro. Futuramente serão coisas muito diferentes, não se apeguem a essas tolices. O que será mais valorizado serão quatro coisas: silêncio, água potável, contato com a natureza e conhecimento. Os ricos terão isso. Tentei oferecer a vocês o último dos quatro, o conhecimento. Tentei enriquecê-los. Acredito que aqui, se formando hoje no ensino fundamental, estão os futuros prefeitos de Osório, governadores do Rio Grande do Sul, quem sabe até alguma presidenta do Brasil. Porque não? Os presidentes Lula e Bolsonaro também vieram do interior. Mas lembrem sempre as lições daquele menino judeu. Professem vossa fé no amor. Dividam o pão, a riqueza que produzirem com todos. Perdoem aqueles que vos ofenderem, aqueles que vos impacientarem, como esse professor. Cada um vê o contexto histórico do seu ponto de vista, tentem compreender os dos outros. Os idosos também tem o que ensinar. Confio em vocês! Sejam felizes!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019


Fui escolhido paraninfo da formatura da turma do prézinho. Fiquei honradíssimo com a homenagem. Resolvi preparar um discurso para a ocasião. Escrevi o que está abaixo, mas na hora falei, no lugar de ler. Não saiu exatamente o aqui planejado, mas essa foi a mensagem que tentei passar:
Queridas alunas, queridos alunos.
Esta fala que farei se dirige a vocês, mas talvez vocês não entendam todas as palavras. Depois os pais de vocês podem explicar melhor. 
Queridos pais, queridos colegas professores, queridos amigos.
Ao ser convidado para essa solenidade, lembrei de dois pensadores que mudaram o pensamento da humanidade. O primeiro era uma liderança política e espiritual do oriente médio. Sua influência se estendeu por todo mundo e seu pensamento virou slogan das revoluções republicanas: liberdade, igualdade, fraternidade. Um terço das pessoas do mundo acreditam inclusive que ele seja um deus. Ele sempre falava em amor, dizia que devemos amar os outros como a nós mesmos. Talvez vocês já tenham ouvido falar dele. Seu nome era Jesus e ele vinha da cidade de Nazaré. Uma ocasião umas crianças se aproximaram dele e seus discípulos as enxotaram. Porém, ele reagiu: deixem vir a mim as criancinhas, porque só entra no reino de Deus quem for puro amor, como as crianças. O segundo pensador é um brasileiro, doutor em educação. Terceiro pesquisador mais citado em artigos científicos no mundo. Reconhecido internacionalmente como um grande inovador na educação. Seu trabalho revolucionou a atividade docente em meados do século XX. Foi aclamado recentemente como patrono da educação brasileira. Talvez vocês já tenham ouvido falar dele. Seu nome era Paulo Freire. Esse doutor também sempre falava em amor, afirmava que o aprendizado só se dá quando há uma relação afetiva positiva entre professor e aluno, quando o aluno gosta do professor. Porque as crianças são puro amor. O professor é aquele que ama seus alunos, ele dizia. Também dizia que o professor mais preparado, aquele com mais estudo e bagagem cultural, deveria trabalhar com os alunos mais jovens e mais ignorantes, com as crianças pequenas. Ensinar adultos geralmente é fácil, basta explicar. Mas crianças que não sabem nem falar, muitas vezes é dureza.
 Já pensaram que esses alunos vão, se a lei não mudar de novo até lá,  se aposentar em 2080? Sessenta por cento das profissões que eles exercerão ainda nem existe. Há vinte anos comprei meu primeiro celular. Não me ensinaram nada a respeito dessa máquina maravilhosa na escola porque aparelhos móveis de telefonia ainda não existiam quando eu era um estudante. Será que na escola podemos ensinar ainda alguma coisa que será útil para eles no futuro? Ou será mais útil oferecer amor, que os torne mais fortes psicologicamente, para estarem mais preparados e resilientes para um mundo em constante transformação? Coisas que até há pouco eram importantíssimas, agora são quase vultos históricos. Telefones de disco e telefonistas, cartas e carteiros, cheques, aparelhos de rádio. Até o século passado, grandes indústrias produtoras de bens, como Volkswagen ou Philips, eram as maiores e mais valiosas empresas do mundo. Atualmente, o dinheiro grosso vem mesmo de empresas que produzem intangíveis, como Google, Netflix e Facebook. E no futuro, será que nós professores seremos necessários? Médicos e advogados não serão substituídos por inteligência artificial?
É a primeira vez que me escolhem como paraninfo de uma turma. Uma honra até então inédita para mim. Me enchi de orgulho quando recebi o convite, esse é, sem dúvida o auge de minha carreira como professor. Pois se é mesmo que os professores mais preparados são os que atendem os alunos menos experientes e esse sou eu, então cheguei lá. O prézinho, é a turma mais importante de todo o sistema escolar. Pois são os alunos que entendem as coisas só com amor. Amor é sua moeda de troca com o mundo, ao fim e ao cabo, a única moeda que interessa. Acredito que a educação infantil ensinará a humanidade a amar, como previram acertadamente aqueles dois pensadores que citei.
Muito obrigado.

domingo, 8 de dezembro de 2019



Festa em família
Assisti Feliz Aniversário, com Caterine Deneuve, uma tradução ruim do título em francês Fête de familie, festa de família. Esse ano a indústria cinematográfica mundial resolveu cair na real, muitos filmes da vida como ela é. O Coringa, americano. Bacurau e a Vida Invisível do Brasil. Coréia nos presenteou Parasita. Todos filmes que explicitam mazelas sociais, exclusão, subversão a ordem e questionamentos ao status quo. No centro de tudo sempre está a doença mental que os protagonistas sofrem causada por, os roteiros nos levam a concluir, uma sociedade doente.
O cartaz do filme na porta do cinema iludia, assim como as famílias fazem, as fotos são lindas e o que se fala é bem diferente do que se vive. Quando se estuda a família, assim como as conhecemos hoje, se percebe que é uma construção histórica. Nem sempre existiu. Família passou a ser debatida junto com as primeiras cercas. Tradição, família e propriedade é uma novidade antropológica. É inegável que a agricultura e a necessidade da vida sedentária, a indústria e agora a informática, trouxeram grandes avanços para a humanidade. Porém, a mudança da espécie de caçadora coletora para sedentária, trouxe também muitas patologias mentais como efeito colateral. A defesa da família como sagrada ocorre nas sociedades que tem também a propriedade privada como dogma. Não é a toa que na televisão, desde às quatro da tarde, no vale a pena ver de novo, até dez da noite, quando acaba a última novela, as emissoras de maior prestígio ficam enaltecendo a família como valor moral inquestionável. Ainda que as histórias sempre sejam dramáticas, com mazelas terríveis durante a trama, no fim tudo se ajeita quando os membros maus das famílias são finalmente vencidos e os bons ficam unidos num paraíso terreno. Não por acaso também, é que o final mais clichê de novela é um casamento. Como um exemplo de patologia mental temos o nosso presidente atual, aquele psicopata nazista, defende a família “tradicional” apesar de já estar na terceira esposa e ter filhos extraconjugais, sem falar na corrupção e banditismo. A hipocrisia é o que as famílias tem de mais tradicional.
O filme é uma caricatura de família. Os papéis necessários a “boa” vida familiar estão todos lá: o bobo da corte, o certinho, o bode expiatório, os agregados que reproduzem as mazelas, a matricarca, o omisso e, é claro, a propriedade. O roteirista quis dar uma aula de psicologia das relações familiares. A vida como ela é. Brigas, acidentes de carro, drogas, crises nervosas, discussões. Lembra muito os contos do dramaturgo Nelson Rodrigues. Não tem final feliz. Família é um esforço coletivo para se encenar uma peça que seja palatável para a sociedade. Vou contar o final, pare de ler aqui se pretende assistir ao filme. Na última cena, a família acende as velinhas e canta parabéns para matriarca como se nada tivesse acontecido apesar do pesadelo vivido. O espetáculo tem que continuar, mesmo que a plateia seja só a própria família.
Quando se percebe quem defende a família, os interesses envolvidos, temos que, pelo menos, nos questionar sobre sua pertinência. Assim como muitos fazem sobre a propriedade e tantos outros valores sociais dogmáticos da atualidade. O que todos os filmes dessa última leva tentam fazer é exatamente isso. Mostrar que família é uma festa somente no final das novelas. A realidade é bem diferente dos que os hipócritas tentam nos fazer acreditar.

domingo, 10 de novembro de 2019



Brüder Bretzel e Bretz’Selle
Num dos três relacionamentos que chamei de casamento, tive uma enteada. Quando comecei a namorar sua mãe, ela já tinha quinze anos. Podia ter se revoltado contra mim, mas nos demos bem. Eu a chamava de Léti. Tinha uma aparência europeia, assim como minha namorada. Sua família era toda de descendência alemã, colonas do interior gaúcho, muitas vezes falavam alemão em casa. Era uma adolescente cheia de sonhos e eu os estimulava. Inteligente e com iniciativa, pleiteou e conseguiu meia bolsa de estudos na Aliança Francesa. Logo em seguida, também conseguiu um estágio numa agência de turismo para pagar a meia bolsa ela mesma. Queria viajar pela França. Tínhamos alguns problemas de liquidez, usando expressão de um ex-ministro da fazenda para não dizer que éramos pobres. A esperança de realizar aquele desejo era remota. Mas Léti não se abatia, fazia o que tinha que ser feito para caminhar em direção àquele objetivo. Lá pelas tantas já falava o francês, tirou o passaporte, trancou a faculdade e conseguiu um intercâmbio gratuito através do estágio, só faltavam as passagens de avião. Seu pai biológico também não tinha dinheiro, mas tinha crédito e comprou a passagem em dez vezes. Pronto, se foi a Léti para França nos enchendo de orgulho.
Já na França, a guria teve todo tipo de problema. Perdeu as bagagens, se viu ameaçada de deportação, faltou grana para tudo. Nós só podíamos torcer de longe e mandar esperança em drágeas de verbo via e-mail. Seu intercâmbio previa estudo e trabalho, então fazia um curso de francês e trabalhava de “au pair”, uma babá. No trabalho sofreu maltratos, trocou de emprego. No novo serviço, era perseguida, trocou de novo. Assédio moral, exigências absurdas, xenofobia, deboches, toda sorte de abuso, em cada novo trabalho um problema diferente. Mas não se faz uma boa espada sem que o aço passe pelo calor da forja, muito fogo e malhação. Enquanto isso, nos estudos, tudo ia bem. Conseguiu a transferência de seu curso de história da Universidade de Santa Catarina para a Universidade de Strassbourg. Fez amigos, começou a namorar, renovou o visto de permanência. Aos poucos a situação se estabilizou. Conseguiu um trabalho bom e tinha uma rede de amigos europeus que a apoiavam. Léti nos convidou para uma visita, já tinha a infraestrutura para nos receber, sua espada já estava polida e afiada. Pronto, nos fomos para a França.
Lá na Europa conhecemos o namorado da enteada, Pierre, seus amigos, o trabalho, a faculdade, a região toda. Ficamos muito felizes de ver onde ela estava. Era um ambiente jovem, cheio de vida. Tudo era encantador, os prédios, as ideias, as pessoas. Estrasburgo é uma cidade linda e curiosa, já foi alemã, francesa, alemã de novo e francesa desde a última guerra. Dependendo do resultado do conflito, Estrasburgo muda de lado. Cansada de joguetes, Strass, como é apelidada, reflete muito sobre a paz, a solidariedade, a fraternidade. É uma das sedes da União Europeia. Ah, se John Lennon fosse mais escutado: Imagine there’s no countries, nothing to kill or die for. Ou quem sabe Bob Dylan: how many times must the cannon balls fly Before they're forever banned? Strass agora é francesa, há uma grande tolerância com os diferentes no ar, com o estrangeiro. A cidade tem muitos bondes, casas barco e bicicletas, parece Amsterdam. Gostamos muito das padarias, era tudo delicioso, os “bretzel” e os “pain au chocolat” nos faziam comer mais do que o adequado, seu cheiro delicioso era sentido de longe. Os amigos da Léti eram simpaticíssimos, ouviam nossas histórias com interesse e nos faziam rir. Um deles era muito disposto e me guiou na subida da torre da catedral para ver a vista, eram muuuuitos degraus, mas subimos. Seu nome era Geoffrey, mas a pronuncia em francês é Jô-frô-á. Se não me engano era formado em relações internacionais ou algo assim, mas, naquele passeio, me contou entusiasmado de um curso que fazia na Bélgica para aprender as artes de um ferreiro. Conversamos muito, porque a forja também é uma paixão que tenho, ainda que platônica, só no mundo das ideias.
Pierre e Geoffrey estão a frente de seu tempo. Os dois ajudaram a fundar uma associação de ciclistas, pessoas que usam a bicicleta como transporte, para se deslocar pela cidade. A coisa não é capitalista, não objetiva o lucro ou tem dono, é uma associação comunista. Os donos são todos os associados que vivem em comunhão. Partilham as ferramentas, o espaço da oficina, os saberes. A prefeitura apoiou não cobrando o IPTU. A comunidade doa bicicletas velhas, estragadas, abandonadas ou que estejam sem uso. Elas são desmontadas e as peças servem para arrumar as bicis que estão em uso. Tudo grátis. Todos os associados podem usar as ferramentas da oficina, aprender as técnicas que não dominam para arrumar suas bicicletas e ensinar o que sabem. Alguns só aparecem quando precisam de algum reparo, outros gostam de ficar por ali batendo papo e ajudando no que podem. É obviamente uma associação de uma nova economia, solidária, comunista, sustentável, ambientalmente responsável. A alegria dos participantes é evidente, há brilho em seus olhos. Quando a fundaram, pensaram em mesclar no nome alguma coisa muito local, característica de Estrasburgo, com as bicicletas. A associação foi batizada de Bretz’selle, um trocadilho com a palavra Bretzel, dos pãezinhos alemães em formato curioso, e selle, que é selim de bicicleta em francês. O símbolo gráfico da associação é também uma mistura de bicicleta com bretzel. Maravilhoso, a comunidade local logo a reconheceu como legítima e passou a frequentar o lugar.

Ontem foi o aniversário da queda do muro de Berlim. Há trinta anos eu estava em Amsterdam quando tudo aconteceu e senti de pertinho a euforia gerada pelo fim daquela fronteira. O entusiasmo era perceptível na pele, se fez muita festa por toda Europa. Os acordos para a União Europeia estavam selados, seu lema era “in varietate concordia” em latim, unidos na diversidade em português e seu hino a “Ode a alegria” do compositor alemão Ludwig van Beethoven. A união previa uma cidadania europeia, sem distinção e com livre movimentação dos cidadãos entre os países membros. Já estava até marcada a data para seu início. Que tempo alvissareiro. A profecia de John Lennon parecia estar começando a se realizar. Um mundo sem fronteiras. A onda progressista avançava por todos os lados e o apartheid da África do Sul estava com os dias contados, Mandela logo seria solto. No Brasil, dias depois se fez a primeira eleição direta em décadas e o presidente Collor de Mello foi eleito em segundo turno contra Lula. Nesse momento efervescente, nessa primavera mundial, estavam nascendo Léti e seus amigos.
Coincidentemente, ontem fui à Porto Alegre para tentar arrumar uma máquina. Estava caminhando pelas ruas do centro com uma amiga, descendo a Marechal Floriano, comemorando a libertação do companheiro Lula, quando sinto um cheiro conhecido. O aroma vinha de uma minúscula padaria especializada em Bretzel. Com a memória olfativa, meu cérebro se encheu de boas lembranças. Entramos e a sorridente atendente era uma simpática moça com aparência alemã, bem da idade da Léti, seus olhos brilhavam. Pedimos um bretzel romeu e julieta, devidamente abrasileirado com queijo e goiabada, delicioso. Enquanto comíamos, conversamos com a moça. Ela tinha feito doutorado em biologia genética na Alemanha, era uma espada afiada, forjada no calor e na malhação da academia em outra língua. Porém, se cansou da vida acadêmica e ali estava ela, em sociedade com seu irmão, ganhando a vida como padeira. Me lembrou muito Geoffrey e sua busca pela simplicidade, pelas profissões realmente importantes. A aparência da Brüder Bretzel da Marechal era muito semelhante a Bretz’Selle, até um pequeno sofá na frente para sentar e conversar os dois estabelecimentos tem.

Algum tempo atrás, reencontrei Léti no facebook. Com alegria observo o rumo que sua vida tomou, assim como de seus amigos. Pierre e ela estão dando a volta ao mundo de bicicleta, agora estão subindo montanhas por estradinhas da Ucrânia. Geoffrey virou ferreiro e tem sua escola de forjaria em Estrasburgo. Os valores da loirinha da padaria são os mesmo da Léti, do Pierre e seus amigos. São poliglotas, não veem fronteiras, não se preocupam em enriquecer, buscam a felicidade e viabilizam meios para sentar e conversar. Os quatro estão fazendo um esforço grande, mas que para eles é fácil. Já passaram pela forja da vida, muito calor e malhação, são mestres e doutores, espadas afiadas, estão construindo uma nova sociedade. Não é a toa que Geoffrey escolheu ser ferreiro, profissão tão nobre, assim como padeiro, existem desde os tempos bíblicos. São profissões simbólicas. Depois do inverno de Trump e Bolsonaro, eles estão planejando e ensinando gerações anteriores e futuras que outro mundo é possível. Com partilha e solidariedade. Nada mais cristão. A geração deles está chegando finalmente ao poder e a primavera de uma nova sociedade florescerá. Acredito que a libertação de Lula, assim como de Mandela há trinta anos, simbolize esse equinócio. Olha... You may say I’m a dreamer, but I’m not the only one. Até Bob Dylan já ganhou o Nobel em literatura, The answer is blowing in the Wind.



quarta-feira, 6 de novembro de 2019


Sou racista, tenho que admitir. Depois de adulto percebi esse fato. Só me dei conta com a formação continuada nas escolas que trabalhei. Se não fosse a explicitação do conhecimento nos cursos que freqüentei, jamais saberia. Comecei a investigar porque tenho essa mácula no meu perfil. Nas conversas familiares descobri que meu avô paterno dizia: Não sou racista, mas essa negrada...!!! Os colegas de escola contavam piadas sobre negros, principalmente sobre sua cor ou sua aparêcia. O lápis de cor salmão era chamado de “cor de pele”, mesmo não tendo na escola inteira ninguém com aquela cor na pele. Havia também, três ou quatro ditados sobre a desonestidade, preguiça, ignorância dos negros que eram corriqueiramente repetidos. Normalmente, nas novelas da TV sempre os personagens negros eram serviçais dos brancos. Cozinheiras, motoristas, mordomos, camareiras negros. Na sessão da tarde, seguidamente passava um clássico do cinema, Cleópatra. De novo, Elizabeth Taylor, uma americana de olhos azuis e pele alva, fazia o papel da rainha africana. No programa Os trapalhões, Mussum, o negro do quarteto, era retratado como bêbado, ignorante, tolo e que falava tudo errado. Chocado fiquei ao descobrir que o maior escritor brasileiro de todos os tempos, Machado de Assis, era negro, pois todos os quadros que tinha visto dele até hoje era de um ser humano de tez clara. O mesmo aconteceu com outros lumiares brasileiros: o poeta Cruz e Souza, o compositor Lupicínio Rodrigues, O presidente Nilo Peçanha, O político José do Patrocínio, o advogado Luíz Gama, entre tantos outros. Esse último teve sua habilitação reconhecida 133 anos após sua morte. O time de futebol Grêmio Football Porto-alegrense foi fundando em 1903 somente para descendentes de alemães. Depois de alguns anos, em 1909, outro time foi fundando para incluir descendentes de outros países, por isso o nome de Internacional. No entanto, o inter só aceitou negros a partir de 1927. O Grêmio só passou a admitir negros na década de 1960! Jesus era judeu, povo que fugiu do Egito para a terra prometida da palestina. Jesus era descendente de africanos, obviamente negro. Porém, todos os filmes e pinturas que vi até hoje sobre Jesus era com atores loiros de olhos claros. Quando o papel é bom: um deus, uma rainha, uma escrava alforriada que se dá bem no fim, o negro é retratado como branco. Quando é um bandido mau, um mau caráter, um bêbado, até o branco é pintado como negro. Não é de graça que sou racista, somos todos, fomos educados para sê-lo. Aí está a importância da formalização do dia da consciência negra. Precisamos falar sobre esse assunto, debater, expor. Não falando, ou fingindo que o racismo não existe, como acontecia comigo na infância, perpetua uma sociedade opressora excludente e que segrega por cor da pele. Mesmo dando aulas sobre o tema, acredito que umas três gerações ainda sofrerão com isso. Lutemos, pois o racismo é inço forte, tem que ser arrancado do solo nacional com decisão. Como fazem os alcoólicos, admitem seu vício e repetem sempre que são alcoólicos em recuperação, nós, racistas, também temos que admitir nosso racismo e, por mais vinte e quatro horas, lutar contra isso. Evite hábitos, lugares e pessoas do tempo de racismo. Aja, faça sua parte, melhore a vida da sociedade brasileira.



sábado, 2 de novembro de 2019



O pé de jujo
Verônica tirou minha dúvida: jujo é planta medicinal. Olhou na internet. Tudo que está na internet é verdade! Todo mundo sabe. Olhei também, para conferir. Sério? Nunca tinha ouvido falar. Por mais tirocínio que se tenha, sempre haverá termos desconhecidos. A ansiedade do jovem aprendiz, de querer aprender logo tudo, se transforma ao longo da vida na serena humildade do traquejado mestre. Mas o conhecimento precisa ser cultivado, como uma planta. Não basta plantar, tem que regar, adubar, tirar inços, expor ao sol. Aos poucos ela vai crescendo. Ao final de sua vida pode estar enorme ou minúsculo, depende das escolhas que fazes. Regou? Pessoas que se encantam com o aprendizado se reúnem nalguns lugares para juntos partilharem o que sabem. A erudição, como o amor, é uma daquelas coisas que quanto mais se dá, mais se tem. Estive ontem novamente na Sala Jazz Geraldo Flach, lugar de público erudito. Ao meu lado, assistindo ao show, professores universitários, médicos psiquiatras, jornalistas, artistas, pessoas que vivem no coração intelectual da sociedade, nenhum ribeirinho. No livro A invenção do ar, Steven Johnson relata como se dá os avanços do pensamento. A atmosfera necessária para mudanças paradigmáticas sempre contém ingredientes parecidos. As grandes cabeças de uma época se reúnem no mesmo lugar, comem, bebem e fumam juntos, experimentam estados alterados da consciência, escutam música, tocam, riem e cantam. Parece bobo, mas mais ou menos assim que o pé de conhecimento cresce: um gênio debocha do outro que está meio bêbado cantando melodias com letras engraçadas. Enfadonhas salas de aula nos ensinam o que já existe, mas para mudar o que se pensa tem que ser noutro tipo de ambiente. Paulo Freire dizia que o aprendizado só se dá numa relação afetiva positiva. O que testemunhei ontem foi isso. Zelito, artista de Santo Antônio da Patrulha, tocou seu violão e nos fez rir. Angela e Roni cultivam ali naquela sala, com muito zelo, amor e cuidado, a plantinha da erudição. Reuniram os amigos, como sempre fazem, para comer, beber e se divertir. Escutamos cantigas de ninar e Mamonas Assassinas, milongas e rock. Um caldeirão de conhecimento musical onde mergulhamos para nos embebedar. O afinado dueto entre Zelito e Marcelo Delacroix, foi emocionante. O ponto alto do show foi “O pé de jujo”, uma engraçada canção que trata da legalização da maconha como planta medicinal e diferenças legislativas entre países. O pé de jujo, a Sala Jazz e um professor universitário ébrio são coisas que a sociedade vê como clandestinas, porém, nada mais importante para a revolução acontecer do que a existência delas. Os conservadores sempre perdem a batalha contra a inteligência. A evolução social sempre acontece. As mulheres votam, a escravidão é proibida, a homossexualidade não é doença, os indígenas não são selvagens. Mas tudo demora, os intelectuais são minoria, ilhas de saber, a idiotice é oceânica e opressora. A Sala Jazz é um lugar pequeno, a estupidez enche estádios. É com ajuda da arte, o humor, a música e os pés de jujo que a inteligência vai se sobrepondo a ignorância. Mas temos que cultivar, na Geraldo Flach a ignorância não passa da porta porque é inço, tem que ser arrancado de lá. Me sinto muito honrado quando me deixam entrar. Imagina o que será que está sendo criado ali?! John Lennon frequentaria o lugar, imagine there’s no countries, não deveria ser preciso atravessar fronteiras para cultivar um pé de jujo.

sábado, 26 de outubro de 2019



Carpe diem
O dia está belíssimo, temperatura perfeita, comento com minhas irmãs via whatsapp e mostro, orgulhoso, uma foto da minha janela. Uma delas recomenda: carpe diem. O papo segue, muitas colegas professoras tatuam no braço essa frase em latim sem nem saber o que significa direito. Talvez porque viram no filme Sociedade dos Poetas Mortos com o ator Robin Williams, já falecido. O filme é um drama, um dos personagens centrais da trama se suicida no fim. Não estou dando spoiler porque o filme é de 1989, foi lançado há mais de 30 anos, tu já deves ter visto até na sessão da tarde. Robin era mais conhecido nos Estados Unidos como comediante, fazia stand up comedy. Apesar de fazer todo mundo rir, suicidou-se também. Contei para as irmãs uma conversa engraçada que tive com uma colega, professora de matemática. Ela me contou que viu Titanic no cinema com 14 anos! Protestei em voz alta: Bem capaz, não pode ser! A situação ficou um pouco chata porque ela entendeu que eu a estava acusando de mentir a idade, mas não. Estava surpreso que já passaram mais de 20 anos que o filme estreou nos cinemas.  Titanic é de 1997, mas me parece que foi ontem! Olho pela janela e aprecio o dia. Será que estou aproveitando o dia bem? Mesmo? Um dia assim é bom para passear, ou trabalhar no pátio, mas estou sentado no computador escrevendo... porque quero, não tenho prazo vencendo, trabalho da faculdade, dissertação, tese, nada. Professor de Educação Física não fica muito entusiasmado com sol, no trabalho já tem de montão. Procuro na wikipedia e acho rápido:
Carpe diem é parte da frase latina carpe diem quam minimum credula postero (literalmente: 'aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã'), extraída de uma das Odes, de Horácio (65 a.C. - 8 a.C.), e tem numerosas traduções possíveis: "colhe o dia" (tradução literal), "desfruta o presente", "vive este dia", "aproveita o dia" ou "aproveita o momento". O poeta latino exorta sua interlocutora, Leuconoe, a desfrutar do prazer que a vida oferece, a cada momento. No contexto da decadência do Império Romano, a frase resumia o ideal horaciano, de origem estoico-epicurista, de aproveitar o que há de bom em cada instante, já que o futuro é incerto. Entretanto a frase é frequentemente repetida, com um sentido (inexato) de convite ao viver alegre e despreocupado.
Ainda estou no zapzap, uma amiga me manda uma música. No Youtube aparecem outras sugestões. Fico um momento aproveitando o dia para escutar músicas, coisa que nunca faço. Uma puxa a outra e chego em Tom Jobim e Elis Regina cantando Águas de Março. Abro o vídeo e sinto uma emoção estranha de viagem no tempo, acho que vi esse clip no Fantástico na época em que foi lançado. Investigo e é de 74, pode ser. Reflito sobre a vida. Os dois monstros sagrados da MPB já mortos, como Robin Williams. Estou tão velho, todos meus colegas são bem jovens, não conhecem filmes que vi, ou músicas que gosto. As mulheres que acho interessantes me olham como um ancião. A vida está passando tão rápido, será que não a estou desperdiçando trabalhando? Tanta gente já morreu, não estou me referindo a Sócrates ou Epicuro, mas de caras que são meus contemporâneos como Tim Maia ou Raul Seixas. Como assim, Tim Maia morreu??? Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito para contar, dizer o que aprendi. Não falta muito para que seja eu o defunto.
O que é Carpe Diem afinal? Passear ao sol? Ou deixar uma grande obra lembrada com emoção pelas pessoas? Será que dá para fazer os dois? Sócrates suicidou-se tomando cicuta, ele poderia ter fugido, mas preferiu ficar e aceitar a condenação que lhe foi imposta. Raul Seixas era diabético e preferiu parar de tomar insulina, também optou pelo fim da existência. Tim Maia, de certa forma também se matou, bebia muito. Grandes artistas e filósofos, pensadores que mudaram o mundo, tem trajetórias breves, sempre concluem pela falta de sentido na vida. Concluo que minha obra não é tão relevante: não penso em me matar e estou considerando abreviar esse texto para caminhar ao sol. O dia está tão bonito! Chega de filosofar. Carpe diem! Aproveite o que há de bom em cada instante, Leuconoe, já que o futuro é incerto.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019


Osório e sua cultura exemplar
Por conta de algum daqueles acasos da vida que nos levam a lugares que nunca imaginamos sequer parar, fui trabalhar em Osório. Não tinha nenhuma ligação com a cidade, ela só me pagava o salário. Nem família, nem amigos, nada. Quando comecei a circular por suas ruas não conhecia ninguém, não sabia nada sobre o lugar. Aos poucos, por força da profissão, fui me aproximando das pessoas, da história da cidade e de seu meio ambiente. Atualmente, estou tão envolvido ao município que passei a admirar muito tudo que envolve a cidade. Como fui ciclista e um militante em favor da bicicleta como modal de transporte urbano, logo me chamou atenção a quantidade de ciclovias espalhadas pela cidade. Mesmo onde não há ciclovia, as vias são bem cicláveis e agradáveis de pedalar.  Outra coisa que é extremamente positivo na cultura local é o respeito aos pedestres, as faixas de pedestres são respeitadas! Os carros realmente param quando percebem alguém com intenção de atravessar a rua. Cadeirantes e cegos também tem vez, as esquinas tem rampas de acessibilidade e as calçadas tem piso tátil. Há um esforço do poder público também para estimular as artes. Ontem pela manhã, as crianças da escola assistiram uma peça de teatro na câmara dos vereadores e hoje à noite vai ser eu que vou usufruir desse prazer, conforto público e gratuito.  Fantástico, uma pequena cidade do interior gaúcho que aparenta ser norte da Europa. Muito desenvolvida. O meio ambiente também é valorizado, talvez porque a cidade está encravada entre um cordão lagunar de águas doces, algumas ainda potáveis, o começo da mata atlântica, com encostas de serra cobertas de florestas e o mar. O cidadão de Osório tem acesso ao ambiente natural com facilidade. Todos os cidadãos estão em paz na cidade, “de boa”, expressão que aprendi lá.
Trabalhando nas escolas do município, aprendi o hino de Osório. As crianças são ensinadas desde cedo a cantá-lo e o fazem com entusiasmo, principalmente o refrão. Como já aprendi a letra depois de velho, demorei a entender sua filosofia, completamente diferente de qualquer outro que aprendi na infância. Se prestares atenção nas letras dos hinos de outros lugares ou instituições, verás que são agressivas ameaças. Os hinos geralmente falam assim: ó, a gente é legal, moramos num lugar bonitinho, tem umas plantinhas aqui e um por do sol bacana, daí vem a parte que interessa, mas quem ousar invadir nosso território, um tiquinho que seja, vai tomar um pau!!! “Mas, se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta, nem teme, quem te adora, a própria morte”, diz, sutilmente, o hino nacional brasileiro. “Mostremos valor, constância, nesta ímpia e injusta guerra; sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra”, fala o rio-grandense, já nada delicado. O hino francês é ainda mais explícito: “Às armas, cidadãos! Formai vossos batalhões! Marchemos, marchemos! Que um sangue impuro banhe nossos campos!” São lindas composições, emocionantes, mas refletem a ideologia dominante no tempo em que foram escritas. Sempre é através da guerra que se chega à paz. A glória da vitória parece ser o valor mais importante, sempre aparecem essas palavras, olhe nos hinos de times de futebol brasileiros. Se eu for escrever o hino da minha casa num dia ruim de brigas com os vizinhos que põe som alto, vai sair coisa bem parecida. Quem escreve os hinos é alguém pequeno, triste, angustiado, com medo de ser ou mesmo já tendo sido roubado ou violentado, se fala muito em justiça nos hinos. Por isso chama a atenção o hino de Osório, que também fala de guerra, nem podia ser diferente porque até o nome da cidade vem do patrono da cavalaria, mas é diferente em essência: “onde a paz combate a guerra”. Através da paz e do amor que se percebe a possibilidade de evitar a guerra. Além disso, admite transitoriedade, fala mais ou menos assim: ó pessoal, nem sempre foi assim, agora tá assim, mas pode mudar, sei lá... “Mesmo que mudem divisas, será conservada a memória, ainda que mais se divida, Osório é marco da história!” É incrível a diferença, quem escreveu estava tranquilo, “de boa”, feliz, seguro de si. Eu me pergunto: será que o hino é assim porque o povo de Osório anda de bicicletas e vai ao teatro desde pequeno ou é o contrário, o povo respeita faixa de pedestre por que pensa e escreve assim? Não sei, sei que a combinação é boa.
Mas claro, essa cultura de paz da cidade, sempre pode melhorar. Tem tão poucas árvores nas calçadas de Osório, poderíamos plantar mais. Poderíamos tomar o exemplo do hino e em vez de ensinar o ódio, a vingança e a guerra, podíamos ensinar o amor, a empatia, o envolvimento com a natureza e a solidariedade. Que tal ensinar sobre alguns filósofos famosos na sua luta pela moralidade das sociedades. Que tal São Francisco e sua oração “onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver discórdia que eu leve a união”? Que tal Jesus e seu “amai-vos uns aos outros”? Em vez de ensinar competições nas escolas, poderíamos ensinar a cooperação. Em vez de promover eventos esportivos, podíamos promover eventos cooperativos. Que tal Kant e seu “não faça para o outro o que não gostarias que fizessem para ti”? Alguém são, “de boa”, não gostaria de impor derrota a ninguém. Tenho certeza que em Osório o povo está preparado para entender esses ensinamentos. Vamos fazer brotar a cultura da paz e do cuidado uns com os outros e com a natureza. Vamos tornar a cidade um exemplo internacional de paz social. Eu, como professor de Educação Física e religião, ateu, estou tentando. Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz.

"Hino de Osório"

(Lei Municipal nº 3.120, de 14.12.99) 
Letra: Osvaldo Vieira de Aguiar 
Música: Loreno José dos Santos 

Braços abertos aos pontos cardeais 
E tendo o Sul à esquerda do peito 
Na encosta da serra, margeando o mar 
Está aqui o lugar que é perfeito. 

Ao sopro suave da brisa nordeste 
CONCEIÇÃO DO ARROIO, o princípio 
Da Vila, na ESTÂNCIA DA SERRA 
Que a OSÓRIO passou a município. 

Mesmo que mudem divisas 
Será conservada a memória 
Ainda que mais se divida 
OSÓRIO é marco da história 

Alto dos morros com visão natural 
Pairando qual pássaros no vôo a vela 
Espelham lagoas e seu manancial 
Geografia divina, repleta e bela. 

Esta cidade é mesmo um encanto 
Que integra a nação brasileira 
Cintilam verde, vermelho e branco 
No tremular de nossa bandeira 

Refrão... 

Onde a paz combate a guerra 
Se conserva em harmonia 
Lembrando ilustre filho da terra, 
Osório, o patrono da cavalaria. 

Refrão... ( 2 x)

domingo, 20 de outubro de 2019

Sobre os Jogos Cooperativos de Osório
Muitos dos valores sacralizados na sociedade brasileira moderna vieram da antiga Grécia. A democracia é o exemplo que mais salta aos olhos. No entanto, se estudarmos a democracia grega, veremos que se trata de um sistema de governo bem diferente do nosso. As ideias que tinham lá, a ideologia dominante de então, não mais avaliamos como justas ou mesmo sensatas. As mulheres eram consideradas coisas, meros homens que nasceram estragados, degenerados, do avesso, com vaginas no lugar de pênis, não tinham poder político nenhum. Os escravos, tanto homens quanto mulheres, também não tinham direito ao voto, pois não eram considerados cidadãos de Atenas. As decisões importantes, que iam para a Ágora para votação, eram feitas somente por dez por cento da população ateniense da época, os cidadãos plenos de direitos, homens livres. Era uma sociedade aristocrática onde somente os ricos decidiam os destinos do povo. Mas, ao longo do tempo, uma lenta sofisticação moral da sociedade foi contaminando os pensamentos dos cidadãos. Demorou uns dois mil e quinhentos anos para que a escravidão passasse a ser vista como descabida e as mulheres também serem aceitas como cidadãs plenas. Porém, a ideologia grega de decisões coletivas, onde cada cabeça vale um voto, se perpetuou e até hoje defendemos ideias em público para apreciação da população em eleições.
Se pensarmos na educação, a ideologia dominante daquela sociedade ancestral era também aristocrática. Parecia inútil gastar dinheiro em escola formal para pessoas que eram vistas como incapazes de aprender: mulheres, escravos ou deficientes. De novo, os homens livres tinham direito a professores pagos, o resto da população não. Mas, felizmente, também nessa área, uma lenta evolução ideológica transformou a sociedade para uma maior inclusão. Atualmente, as escolas públicas e gratuitas já são aceitas como normais no Brasil, lutamos inclusive para qualifica-las. Já está no imaginário popular que nenhuma criança deve ser excluída da educação formal, independente do sexo, religião, cor da pele ou qualquer outra diferença, nem mesmo os deficientes mentais devem ficar de fora. Existem até mesmo mecanismos de punição para os pais que não colocarem seus filhos na escola e os estimularem a frequentar as aulas. Em algum momento, os legisladores decidiram que assim seria melhor para a vida em sociedade, situação bem diferente de antigamente. A ideologia dominante deu uma grande guinada em direção a inclusão universal na educação, tornando a ideologia anterior uma aberração excludente.
O conjunto de ideias que regem a sociedade, a ideologia dominante defendida pelos cidadãos, vai mudando com o tempo de forma dramática. As escolas públicas, assim como as conhecemos hoje, nem sempre existiram. Foram começando a se tornar hegemônicas no ocidente a partir da revolução industrial. Tanto oprimidos quanto opressores, começaram a percebê-las importantes e dignas de investimento público para formar novos operários para as nascentes fábricas que surgiam. Evidentemente, o que seria ensinado nas escolas foi decidido seguindo a ideologia dominante da época. O conteúdo deveria ser útil para os trabalhadores da indústria: matemática e a língua escrita deveriam ser os principais assuntos estudados para formar operários capazes de ler e calcular operações do trabalho. Se sobrasse tempo, nalgum intervalinho, poderia se pincelar alguma arte, música ou história. Ainda hoje, matemática e língua portuguesa tem mais espaço na grade curricular com cinco períodos semanais cada. Já artes conta somente com um período, cristalizando na cultura popular o carácter menor, desprezível ou até fútil daquele conhecimento.
Dentro da escolarização, a ideologia dominante também foi transformando a Educação Física. Junto ao surgimento das primeiras escolas públicas na revolução industrial, a disciplina tinha a intenção higiênica de formar operários saudáveis, alunos com corpos aptos para o trabalho. Muitas sessões de ginástica calistênica nessa época. Logo, com as grandes guerras mundiais, o foco das atividades era militarista, a formação de combatentes capazes de defender a nação. O atletismo, as lutas e os exercícios de força são introduzidos nas aulas. Finda a segunda guerra, sem mais a necessidade de formar soldados, a Educação Física voltou a priorizar o desenvolvimento de um corpo são, mas agora também considerando a mente como parte indissociável do corpo: “mens sana in corpore sano” era um mantra que foi introduzido e é até hoje repetido. As aulas passaram a considerar também a socialização dos alunos como importante, assim as danças e os esportes foram introduzidos. Logo em seguida, com o golpe militar de 1964, a ideologia mudou de novo passando a valorizar a obediência às regras e as autoridades. Desde então, a Educação Física escolar passou a ser fortemente embasada nos esportes, com grande investimento público para esse fim. As maiores e mais caras salas de aula de qualquer escola são sempre os ginásios de esportes e o material didático mais caro são sempre as bolas, tabelas, redes, traves e demais equipamentos destinados ao ensino dos esportes.
Apesar de, com o fim da ditadura militar em meados da década de oitenta do século XX, a Educação Física voltar a refletir sua prática sobre outros paradigmas, como a criticidade dos alunos ou sua emancipação, a ideologia baseada nas competições segue dominando. É natural que isso aconteça, porque os professores que agora trabalham nas escolas, assim como todos agentes da mídia no país, foram formados naqueles anos de chumbo ou logo após. As ideologias são muito resistentes a abalos, demora até os novos textos chegarem as bases das faculdades das capitais e ainda mais lentamente nas do interior. Os esportes ainda dominam amplamente o panorama escolar brasileiro, assim como em todas os meios de comunicação. Porém, a filosofia que rege a disciplina atualmente está muito distante daquele corpo alienado da realidade social como era até então. Os professores buscam conscientizar os alunos de seus papéis sociais, sua inserção numa sociedade excludente, assim como seu protagonismo em relação ao meio ambiente. A Educação Física ficou muito mais complexa do que já foi.
Diante desse breve histórico é que chegamos ao nosso município. Anualmente se realiza na nossa cidade os jogos escolares de Osório (JEO). Todas as atividades desse grande evento são competitivas, coerente com a ideologia dominante que envolve todo o sistema escolar brasileiro onde as competições ainda são muito valorizadas. As seleções de todas as escolas do município se apresentam para as competições, repare que até mesmo a palavra “seleção” denuncia exclusão. Assim mesmo, escolas municipais, estaduais, particulares e até federais se apresentam, ávidas por competir. Além desses jogos, eventualmente também se realizam os jogos da primavera, outra semana de competições em que se tenta privilegiar os alunos que não foram selecionados para o primeiro evento, uma forma de amenizar os efeitos da exclusão. Nesse segundo, somente as escolas municipais são convidadas.
Pensando em atualizar a Educação Física da cidade para esse novo paradigma em que se convida o aluno a experimentar novas vivências corporais não competitivas, problematizar as questões da exclusão intrínseca ao esporte, questões de lesões, além das questões ambientais, o grupo de docentes da disciplina da rede municipal de escolas públicas, em 2016, passou a propor jogos cooperativos que ocorressem concomitantes as competições já normalmente realizadas. Numa reunião com o executivo em 2017, o projeto “Mexendo na Regra – Promovendo a Inclusão nos eventos esportivos da cidade de Osório”, apresentado por mim, foi aceito e ampliado: em vez de duas semanas anuais, se projetou fazer três. Uma concomitante aos JEO, em Maio, outra em Outubro, junto aos jogos da primavera e ainda uma terceira inédita, entre as duas, em Agosto, logo após o recesso de inverno. A proposta era oferecer atividades não competitivas, lúdicas e cooperativas em contato com a natureza e separadas das competições apesar de no mesmo espaço, o parque da vila olímpica de Osório. Infelizmente, esse projeto logo emperrou nas diversas alegações impeditivas do professorado do município.
Passados mais três anos da primeira frustrada tentativa, outro professor da rede, Tiago Medeiros, apresentou um projeto mais enxuto e palatável para o gosto dos docentes da cidade: somente dois dias no ano e somente os alunos das séries finais do ensino fundamental. Novamente aprovado pelo executivo, o Projeto “Jogos Cooperativos de Osório” (Jocó) foi mais longe que o Mexendo na Regra. Conseguiu realizar sua primeira edição.
No dia combinado, conduzi meus alunos ao parque da vila olímpica. Lá chegando a primeira frustração: somente três escolas do município aderiram a proposta. O sistema de som estava montado e funcionando para as autoridades que iriam se manifestar na abertura do evento, como sempre acontece nas competições do JEO. Porém, essa foi a segunda decepção, nenhuma autoridade apareceu para falar, nem boas vindas ou bom dia, nem mesmo um alô. As duas situações reveladoras do descaso aos esforços dos professores envolvidos. Sintomáticas também da importância que tem as competições e o descuido com a cooperação. Apesar de já esperada, a negligência da população da cidade, desde administradores, passando por professores e até os alunos, para com a cooperação contrasta com o grande envolvimento de todos nos eventos competitivos. Não surpreende que o povo de Osório conviva naturalmente com a exclusão na vida cotidiana se ela é ensinada na escola e nos meios de comunicação como óbvia. O que surpreende é que mesmo professores, profissionais da educação, não achem relevante o ensino da inclusão e da cooperação na escola.
O professor Tiago Medeiros, organizador desses primeiros Jocó’s, que refletiu a organização do evento e sua intencionalidade, planejou lindas atividades cooperativas no meio da mata, sobre verdes gramados, sob a sombra das árvores ou sob o sol. Mas mesmo ele, com essa intenção em mente, se equivocou em algumas atividades competitivas apresentando-as como sendo cooperativas. Os alunos participaram alegres integrados ao meio ambiente, surpresos com as inéditas experiências. Isso como primeiro evento com essa intenção, de promoção da inclusão e cooperação, foi maravilhoso. A falta de prática, de base teórica, de material de consulta, nos leva a todos a construir, deliberadamente, uma sociedade excludente, que não aprendeu a cooperar. Se todos nós, professores, alunos e administradores, sempre só estudamos como usar um martelo, com todas as regras para acertar a cabeça do prego com excelência, como vamos saber fazer um bolo de chocolate? Colaborar com alguma atividade cooperativa nos parece fútil, aborrecido, inútil. Não vai ter um campeão? Não vai ter medalha? Me perguntavam as crianças.
As decisões consideradas importantes na Ágora da Grécia antiga, que eram apreciadas pelo eleitorado e colocadas em votação, eram coisas muito simples: onde vai ser a próxima festa, se o cidadão “A” seria punido por fornicar com a escrava de “B” ou qual atleta deveria ser escalado para representar Atenas nos jogos olímpicos. Atualmente, a ideologia dominante mudou radicalmente. Quando colocamos algo em votação é por assuntos mais relevantes. A história não está parada, ela não acabou. Nós determinamos o rumo que a sociedade tomará. A escravidão grega, que era lei, demorou 2500 anos para ser revogada. O sufrágio ser autorizado só para homens livres levou 2600 anos para ser questionado. Sem dúvidas temos o que aprender com a Grécia antiga. Mas quanto tempo mais demorará para percebermos que suas competições atléticas eram também aristocráticas e imorais? Não podemos refletir como modernizá-las? Acho que devemos. É utopia imaginarmos um mundo totalmente inclusivo, mas caminharmos nessa direção faz o mundo evoluir moralmente. 

segunda-feira, 16 de setembro de 2019



Espantos
Fazia a faculdade meio de lado, tinha outros planos, pensava em ser empresário. Abri uma pequena oficina de bicicletas na garagem de meu pai. Fazia duas ou três cadeirinhas que me interessavam como ciclista amador. Mas, as dificuldades da livre iniciativa me levaram a repensar tudo. Lá pelas tantas resolvi terminar a Educação Física. Comecei a fazer dez cadeiras por semestre. Havia muitas cadeiras optativas no curso, mas muitos créditos necessários para obtenção do diploma eram assim. De forma que comecei a pegar disciplinas que não me despertavam nem curiosidade, como vôlei ou futsal, só para cumprir as exigências mínimas do grau. Enquanto houvesse horários vagos na grade eu socava alguma coisa na hora da matrícula. Lá pelas tantas, escolhi uma dessas não obrigatórias, de apenas quatro créditos, que todo mundo dizia que era das mais fáceis, nem precisava estudar para passar. No entanto, a tal da cadeira me atormentou terrivelmente, eu dormia e acordava pensando nela, suava frio e passava mal durante as aulas e foi meu único “C” do currículo, passei raspando. A disciplina chamava Rítmica Dança e tínhamos que apresentar três coreografias para aprovar: uma de dança moderna, uma de dança clássica e uma de dança gauchesca. A professora era sádica e colocava música a tocar enquanto nos obrigava a dançar, para mim uma tarefa hercúlea, mitológica, impossível. Logo ficou claro para ela que eu era o pior aluno da classe. Não só para ela, todos os alunos viam que eu era um desastre dançando porque a sala de aula tinha as paredes forradas com grandes espelhos para minha grande humilhação ser conhecida e ridicularizada em toda universidade. Enquanto todos iam para um lado eu estava indo para o outro, atrapalhado, atrasado em todos os movimentos, me batendo nos outros e sofrendo. A professora não entendia minha dificuldade, para ela uma coisa tão fácil: Tiago! É só dançar conforme a música! Ó, essa é ternária, escuta! Pã, pã, pã, está ouvindo? Preste atenção! Eu me defendia como podia: Mas professora, eu estou quase morrendo de tanta atenção, estou me esforçando ao máximo! Eu consigo escutar que a música é ternária, também consigo dançar! O problema é que a senhora quer que eu faça as duas tarefas ao mesmo tempo. Uma colega de grupo me salvou do fracasso total: Esquece a música, deixa que nós prestamos atenção nela, olha para nós e repete o que a gente fizer! Foi minha salvação. Eu decorava as coreografias e ficava atrás de todos nas apresentações. Era ainda difícil, exigia concentração total naquele ambiente ruidoso, a música soava como uma buzina de nevoeiro num navio nos meus ouvidos, mas tornou a tarefa exequível. Era como consertar um relógio suíço depois de levar marteladas nos dedos, extremamente penoso para mim, mas possível. Quando terminou o semestre pensei que nunca mais passaria por tal tortura.
Me formei Professor de Educação Física e enveredei para a área de treinamento pessoal, longe das escolas. Se algum cliente exigisse dança ou música eu indicava outro colega, não era para mim. Mas, a vida vai nos levando por caminhos tortuosos independentes da nossa vontade. Fui fazer mestrado em Florianópolis e para me sustentar fui obrigado a dar aulas em escolas. Me esquivei enquanto deu, por anos, da música e da dança. Trabalhei na Educação Infantil, em projetos no contra turno da escola, até em escolas para cegos. Mas a música e a dança sempre me perseguiram. Atormentado, voltei para o Rio Grande do Sul, fui morar em Maquiné e decidi não ser mais professor. A decisão deu errado, as agruras da iniciativa privada me desviaram de novo e me colocaram de volta dentro das escolas, agora na cidade de Osório. Chegou uma hora que foi impossível me desviar de supervisoras que me questionavam: porque tu não fazes uma dança com as crianças? Não queria admitir que sou um retardado, que tenho uma deficiência mental, que não tinha a menor condição de ensinar alguma coisa que para mim é impossível. Diante da lei nacional que dita que a Educação Física TEM que ensinar dança, é um dos seis eixos curriculares da disciplina nas escolas, me vi obrigado a adaptar. Então, mandava os alunos pesquisar coreografias e mostrava filmes com outras crianças fazendo maravilhas e incentivava as crianças tentarem fazer algo semelhante. Também mandava estudar a história do ballet ou a vida da Isadora Duncan. Disfarçava... ainda disfarço, escrevendo no quadro várias exigências que queria ver na coreografia dos estudantes: mudanças de nível, salto, deitado, ajoelhado, sentado, etc. mudanças no espaço, os dançarinos dispersos no palco, agrupados, em fila, em xis, w, etc. Nossa, parecia mesmo que eu tinha sido aprovado com louvor na disciplina de dança da faculdade. Mesmo com todo meu empenho didático, meus alunos apresentavam coreografias ruins demais, reflexo de um professor ruim.
Arrumei uma amiga que coordenava um projeto de dança no bairro Restinga em Porto Alegre e pedi ajuda. Ela se interessou por meu problema e foi super solícita. Logo conseguiu um ônibus para seu grupo viajar até nossa escola e se apresentar. Combinamos uma quarta feira para que os visitantes tivessem a oportunidade de participar também de nosso projeto de excelência, o Pé na Areia, coordenado pelo professor de Geografia, Fabiano. Foi muito legal, eles apresentaram umas quatro ou cinco danças para nossos alunos atônitos. O nível do grupo da capital era totalmente diferente dos meus alunos. Eles tinham bons professores, ricas coreografias, jogo de cena, figurino. Era um grupo enorme, com várias pessoas no palco, variavam muito os movimentos, eram maravilhosamente espantosos. Uma menina do sétimo ano, ao final do espetáculo, se aproximou de mim toda alegre e disse: Professor, essa dança deles é tão louca, mas tão louca, que eu nem entendi nada!! Para ela foi como um primeiro orgasmo, incompreensível, mas muito prazeroso. O grupo que nos visitou tinha estrada, havia participado de festivais, viajado para outras cidades, outros estados até. Nós tínhamos testemunhado um longo processo de estudos e aprendizados, não era uma dancinha qualquer. As oportunidades culturais que as crianças da capital tem, mesmo as pobres, são muito maiores que as crianças do interior tem acesso.
Almoçamos e, depois das apresentações da tarde, fomos caminhando para a praia de Mariápolis para participar do Pé na Areia. Nossa escola fica a oito quadras do mar, então passamos por um sem número de terrenos, casas, jardins bem cuidados, plantas exóticas, piscinas, enormes sacadas envidraçadas de frente para o mar, mansões absolutamente vazias, as ruas de Atlântida Sul desertas no inverno. As crianças da Restinga, excitadas e curiosas, iam me perguntando coisas sobre tudo que viam. Mas quem mora aqui nessas casas? E eu, constrangido, esclarecia: Ninguém! São casas de veraneio, só usadas no verão. Será que eles deixariam a gente morar aqui o resto do ano então? Eu, ainda mais sem jeito, talvez já ruborizado, me sentindo culpado pelo flagrante de obscena diferença social: Acho que não. Chegamos a areia da praia e agora foi a vez delas de viver o momento de espanto. Muitas nunca tinham visto o mar. Elas corriam feito loucas, molhavam os pés e subiam nas dunas, se abraçavam e riam, soltas na infinita beira mar de Osório. Nossos alunos, acostumados àquela paisagem, nem entendiam o porquê de tanta alegria dos visitantes. Fabiano, mestre que é, ia nos guiando pelas dunas, nos apresentando o bioma costeiro, os pássaros, os siris, os peixes. Vimos piru-pirus, gaivotas, albatrozes, vimos maria-farinhas, um baiacu morto e até, para nossa felicidade, um tuco-tuco cavando sua toca. Discutimos ventos, marés, dunas, vegetação nativa e exótica, ocupação humana atual e a indígena ancestral e, ao final, fechamos os olhos e escutamos o mar em silêncio. Antes de entrar no ônibus para voltar para casa, as crianças da Restinga se atiraram no mar e rolaram na areia, mesmo sendo inverno, mesmo não tendo outras mudas de roupas ou toalhas para se secar, mesmo ficando batendo queixo, com coxas assadas da areia e beiços roxos de frio. Quando elas teriam outra oportunidade daquelas para se banhar? Não ouvi seus comentários no ônibus para Porto Alegre depois, mas será que não foi como o da minha aluna: essa praia foi tão louca, mas tão louca, que eu nem entendi nada! Certamente o que testemunhei foram orgasmos. Múltiplos. Inéditos. As oportunidades de contato com a natureza que as crianças do interior tem, mesmo as pobres, são muito maiores que as crianças da capital tem acesso.
Moro no interior há quase oito anos, mas sempre vivi em capitais, tanto de outros estados como de outros países. Sempre tive uma grande oferta de eventos culturais que nem percebia que eram espantosamente maravilhosos. Vim buscar os espantos naturais que me faltavam lá e encontrei, em abundância. Mas, agora, sinto falta daqueles espantos da capital, muita. Quando vou a Porto Alegre vou com sede de eventos, vou a tudo, museus, shows, peças de teatro, cinemas, saraus, ballet. Final de semana passado fui num espetáculo diferente, Outros, do grupo Galpão de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Eram coroas, todos com mais de 40, fizeram música, teatro, dança, performance. Tão louco, mas tão louco, que não entendi nada! Quando chego no trabalho, conto para alguns interlocutores que sabem desse meu lado curioso o que vivi. Em Osório sou tido como muito erudito, um exímio conhecedor do panorama cultural. Mas não sou, sou só um cara que gosta de se espantar no cinema ou nalguma peça. Em Porto Alegre sou tido como um grande explorador do meio ambiente natural, um aventureiro da paisagem campestre. Mas também não sou, sou só um cara que tem uma casinha de madeira no morro, racha lenha, planta aipins, nada nos rios, colhe frutas.
Assim como não consigo dançar e ouvir música ao mesmo tempo, não consigo conciliar minha vida erudita e rural. Consigo uma de cada vez, mas não as duas ao mesmo tempo. Porém, gosto das duas igualmente. Os amigos que tenho numa não se encaixam com os amigos que tenho noutra, quase não falam a mesma língua. Isso me atormenta como a cadeira de Rítmica Dança. Estou fazendo como minha colega me ensinou naquela época: esquece uma, presta atenção na outra. Quem observar a coreografia da minha vida no futuro vai perceber alguns tropeços, talvez eu passe raspando, tire “C”, mas estou me esforçando ao máximo para apresentar um belo espetáculo. Sou um buscador de espantos e os encontro em abundância, algumas pessoas percebem, outras não.