domingo, 29 de dezembro de 2019


Indígenas
Quando jovem, de doze para treze anos, o ambiente familiar começou a me pesar muito. Acho que todo adolescente sente um desconforto de permanecer no ninho, quer voar sozinho. Radicalizei o hábito de sair de bicicleta. Passava as tardes andando pelas estradas do interior do município, subindo trilhas pelos morros de matas e campos ainda preservados, me interiorizando em todos os sentidos. Aos finais de semana saía cedo, seis da manhã eu já estava longe. Arrumei amigos que também gostavam dessas escapadas, tínhamos um grupo. Num feriadão de sete de setembro, combinei com outros dois uma viagem de bicicleta, seria nossa primeira. Iríamos até o mar pela estrada das Águas Claras, por ser bem calma e com lindas paisagens campestres. Estávamos ansiosos, preparávamos os mantimentos e ferramentas necessários, cada um levaria um pouco. Uns três dias antes, um deles arrumou uma boa desculpa e desistiu do passeio. E, para minha decepção, na manhã da saída, o segundo telefonou avisando que não iria. Não deu desculpa, só admitiu medo. Eu tinha quinze anos na época e me percebi capaz de ir sozinho. Senti o peso da responsabilidade, sabia do risco, mas me encorajei. Reforcei o arsenal de ferramentas na hora da partida, conferi os trocados, peguei algumas peças sobressalentes e um kit de reparo dos pneus, duas cuecas, amarrei tudo com sisal sobre um bagageiro improvisado feito de arame grosso e soldado com cuspe. Me despedi de minha mãe que já estava acordada e fui embora mesmo sem ninguém para me acompanhar.
Não tinha nenhuma experiência de longas distâncias, então pensei em não parar muito, para não me demorar. Somente em caso de avaria mecânica ou almoço. Atravessei a cidade com o dia ainda amanhecendo e peguei a RS040, estrada que me levaria até a praia de Pinhal, a mais perto de Porto Alegre. Planejei parar somente depois da cidade de Viamão, nalgum posto de gasolina, para comprar um refri e descansar um pouco. Às nove da manhã, atingi aquela meta e fiquei somente esperando aparecer o posto ou algum armazém para parar, já estava com sede. No entanto, isso eu não sabia, passando Viamão, naqueles tempos remotos, não havia nada. A estrada era de longas retas que subiam e desciam suaves colinas através da planície costeira. As subidas eram difíceis e quentes, mas as descidas deliciosas e frescas, me deixavam muito feliz e animado, ficava em pé nos pedais e parava de pedalar para pegar um ventinho e facilitar a circulação nas partes pudendas, arejar. A paisagem era de campos e charcos, nem uma árvore para fazer sombra. O sol estava quente, a primavera já estava próxima e as cigarras cantavam alto, um forte cheiro de grama seca tomava conta do ambiente. A sede começou a me incomodar.
Minha bicicleta vermelha era muito simples e barata, nada tinha além do absolutamente necessário: um quadro, duas rodas, o banco, o guidom, os pedais e uma corrente que unia a roda ao pedivela, não tinha câmbio, farol, buzina ou mesmo para-lamas. Num dicionário, seria a ilustração do verbete bicicleta. Era pesada e nas subidas exigia que eu ficasse em pé nos pedais. Os pneus eram “balão” e logo percebi que não estavam muito cheios, aumentando a necessidade de força para pedalar. Minha ingenuidade infantil começou a se mostrar evidente. Lembrei que não havia levado bomba para encher os pneus em caso de furo, apesar de estar bem apetrechado para repará-los. Também não levei alimentos ou mesmo água. O calor e o esforço já me castigavam, o sol secava ainda mais o meu já enxuto corpo adolescente.
A estrada era linda e silenciosa, me provocava muita meditação. Diante daquela paisagem, imaginei que teria a mesma aparência há milhares de anos, intocada. Antes da chegada de Cabral, era assim que os indígenas viam o país, sem cercas. Enquanto eu pedalava no asfalto ressecado, ia refletindo. Para atravessar o mesmo território que eu pensava cruzar em um dia de bicicleta por estradas lisinhas, quantos dias um ser humano a pé levaria caminhando no campo? Mesmo com um experiente mateiro a guiar o grupo, teriam que desviar de charcos, cruzar córregos, evitar formigueiros e cobras, atravessar capões de mato, pular barrancos, se perderiam, dariam voltas desnecessárias. Para mim era fácil, tudo plano e reto. A estrada é um guia espetacular, uma revolucionária invenção humana. Porém, eles tinham conhecimentos que eu não tinha e mesmo com a ajuda da estrada eu estava penando. Comecei a ficar tonto, a hipoglicemia, a insolação e a desidratação não me deixavam pedalar em paz: ou pedalava, ou ia reto, as duas coisas juntas eu não conseguia. Percebi que estava em perigo de vida, nada a vista, somente campo. Voltar talvez fosse mais longe do que o destino. Me senti um tolo, um grande desânimo me tomou. Pensei em fazer sinal para algum carro, mas eram poucos e passavam rápido. Talvez beber água de algum riacho, mas não via nenhum. Ao longe, vi um rapaz vindo de bicicleta no sentido contrário. Parei e fiquei esperando sua passagem. Quando se aproximou, tentei perguntar sobre onde eu poderia conseguir água, mas a voz não saiu. Ele me olhava curioso do outro lado da estrada, mas estava passando. Organizei rápido alguma saliva para as cordas vocais e consegui falar o que queria. Ele parou a bicicleta, apontou para onde vinha e me disse somente: ali. “Ali” era somente um capão de eucalipto no horizonte. Mas me enchi de esperança e pedalei em zigzag até lá. Finalmente um posto de gasolina, Capivari.
Na época, Capivari era somente um vilarejo na encruzilhada da RS040 com a BR101. Pedi um Teem e um xis salada na lanchonete. Sobrevivi até ali, estava satisfeito. Na hora nem percebi a magnitude da minha empreitada e o risco que sofri. Tomei todo Teem, 290 ml., enquanto esperava o xis e pedi outro quando ficou pronto, mais 290. Aquele líquido gelado entrou refrigerando tudo, foi o legítimo refrigerante. O senti descendo a garganta e caindo no estômago e rapidamente entrando na corrente sanguínea. Senti mesmo, juro. Se não era o Teem que foi direto para as artérias foi a temperatura dele que se espalhou por todo corpo. Não tinha muito dinheiro, então tinha que economizar. Refleti muito se tomaria o terceiro, mas resolvi garantir e tomei. Depois desse almoço reparador, verdadeiro restaurante, descansei numa sombra por meia hora e parti de novo, reanimado. Aqueles 870 ml. deveriam bastar até a praia. Andei uns 20 km e encontrei outro posto. Desta vez, para me assegurar que não ia passar por aquele apuro de novo, parei e tomei mais um refrigerante. Me senti tão bem e confiante que meus planos dariam certo que resolvi ir mais longe. Na encruzilhada entre Cidreira e Pinhal, Resolvi ir para Cidreira, dois quilômetros mais longe!
Essa viagem foi muito importante para a formação da minha personalidade. Diversas outras dificuldades apareceram pelo caminho: quebrou o freio, quebrou o bagageiro, caí um tombaço, tive bolhas de queimadura solar, não levei toalha ou escova de dentes, acabou o dinheiro, arrebentou o sisal. Mas aos poucos eu ia resolvendo os problemas que apareciam e aprendendo com eles. Na volta já não senti sede. Claro que meu corpo jovem, magro, treinado e saudável ajudava muito. Mas, por me impor uma experiência necessária com o desconhecido, com o que não é familiar, me tornei mais feliz, confiante e autônomo. Escalavrar o corpo esfregando-me no meio ambiente, fora do útero protetor da família, me fez quem eu sou hoje. Conhecer pessoas e alimentos, aprender línguas e hábitos, dormir em lugares e habitações, sofrer frio e calor, tropeçar e cair, passar fome e sede, sofrer com coisas que não nos são familiares, me fez crescer como ser humano. Talvez, voltar a ser um pouco indígena, olhar aqueles horizontes infinitos atravessando aquele território, tenha sido uma experiência positiva.
Anos depois, passei novamente pela RS040. Trabalhava como personal trainer de um senhor cego. Ele tinha uma bicicleta tandem, de duas pessoas. Eu o guiava e treinávamos muito pelas estradas do interior porto-alegrense. Propus irmos até a praia por Viamão, contando minha experiência anterior. Omiti todos os percalços, claro. Ele se animou, conseguiu até uma casa emprestada em Cidreira. Fizemos todos os preparativos e no dia combinado partimos. A viagem foi bastante fácil, mesmo para ele que já tinha seus sessenta anos. Foi fácil porque eu já era um profissional da atividade física. Já tinha todos os conhecimentos necessários para atravessar aquele território sem sofrimento. Eu entendia e previa tudo o que acontece com um corpo que se esforça no meio ambiente. Que perde água rapidamente com a atividade física, que desidrata somente se esfregando na massa de ar, que se queima com a exposição a radiação solar e precisa de enorme aporte energético na forma de alimentos. Conhecia perfeitamente a máquina bicicleta, a forma de mantê-la sempre lubrificada e ajustada para que o ciclista obtivesse o máximo de desempenho com o mínimo de perdas em energia vital. Guiei aquele senhor cego, que me obedecia em todas as orientações cegamente. Ele se esforçava quando eu mandava se esforçar, parava quando eu mandava, bebia e comia o que eu dizia, se vestia com o que eu orientava. Na volta ele contou para sua filha que tinha sido bem fácil ir até Cidreira e voltar, 260km de bicicleta. Me tornei um excelente guia para atravessar aquela planície costeira. Mas claro, alguém que acerta é porque já errou muito. Não é sorte, é experiência.
Para alguns membros, o convívio com a família é um pouco tóxico. As doses de convívio familiar devem ser mínimas para que não haja um desarranjo mental. Não é culpa de ninguém, nem do intoxicado nem dos intoxicantes, é da natureza humana. Para dar um exemplo escatológico, os coliformes fecais vivem aos montes dentro da gente, são absolutamente necessários a vida humana, degradam os alimentos para que possamos digeri-los. Porém, podem nos intoxicar se colocados no lugar errado. É da natureza humana que algo que vive nas nossas entranhas possa nos fazer tão mal. Eu sou um dos que se intoxica se passo muito tempo com a família. Então evito, moro longe, vou nalguns momentos especiais para rápidas visitas. Aniversários, natal, páscoa. Nesse natal fui de novo visitar a família. Depois das festas, subi na moto e parti para casa em Maquiné, no litoral. Nessas maluquices da vida, decidi fazer um caminho diferente já que era cedo da tarde e no verão anoitece tarde. Me dirigi para a boa e velha RS040.
A estrada está completamente modificada. Viamão cresceu muito, Águas Claras já é quase outra cidade, Capivari não é mais somente um vilarejo na encruzilhada. Há quase uma área conurbada de ponta a ponta do trajeto.  Restou pouco da paisagem original. Não se pode mais imaginar indígenas ali. O movimento é intenso, tem até pedágio. Entre Viamão e Capivari agora tem dezenas (dezenas!!!) de postos de gasolina. Fui devagar, respeitando o limite de velocidade, meditando com o ronronar do motor. O calor estava intenso nos primeiros dias de verão, comecei a suar e sentir sede embaixo das roupas de proteção da moto. Começo a lembrar e fazer conexões aleatórias. Lembrei daquela heroica primeira viagem. Não ouço mais cigarras, nem sinto cheiro de grama seca, talvez porque agora esteja sobre a moto, talvez porque não existam mais mesmo essas coisas. Lembrei do tempo que viajei de bicicleta pela Europa, como lá era difícil de encontrar algum trecho de estrada sem casas, era vilarejo após vilarejo. Ambiente natural já não existia lá, como agora aqui. Lembrei de outras viagens que já fiz, de moto e bicicleta, o tanto que já rodei em duas rodas. Numa descida, fiquei em pé sobre os pedais, arejando as partes, como no tempo de ciclista. Por alguma razão, diante dessa paisagem, meu sistema nervoso, fez uma avaliação sensacional: o calor, o suor, os cheiros, os ruídos, a vibração, a posição do corpo no espaço. Fiquei feliz e me senti com quinze anos de novo. Que momento feliz. Ri alto.
A viagem prosseguiu e tomei a BR101 em direção a Osório na encruzilhada de Capivari. Sigo vasculhando memórias. Lembrei dos meus alunos indígenas. Como eles sempre parecem estar entristecidos. Pois claro, imagine se você tinha infinitas planícies para viver e de repente a conurbação faz desaparecer o teu meio ambiente, teu modo de vida. Que triste. Imagine que você aos quinze anos já seria um experiente mateiro, com múltiplos conhecimentos necessários a vida e capaz de fazer longas travessias na natureza selvagem, mas agora esse conhecimento não é mais considerado relevante. Imagine que antes tu podias ir para qualquer lugar, sem cercas de qualquer lado e agora se encontra confinado em alguma “reserva”. Que desconforto. Imagine que tua família é o grupo todo, todos são responsáveis por tua educação e segurança, mas agora as leis obrigam a tu nomeares algum responsável por ti. Tu tens que ter as mesmas neuroses das famílias dos brancos, viver confinado entre quatro paredes como eles. Deve ser bem triste mesmo, quando já podes abrir tuas asas e voar sozinho pelo mundo, mas uma série de leis te aprisionam e todos tem que estudar e aprender os mesmos assuntos distantes da realidade na escola. Os indígenas devem ficar deprimidíssimos mesmo com a forma de vida dos brancos. Do outro lado, nós, brancos, ficamos horrorizados de por que os indígenas deixam as crianças tão soltas, qualquer um pode pegar o bebê. Por que eles preferem caminhar dias enfrentando os elementos da natureza em vez de fazer uma bela estrada, lisinha e reta. Eles estão envolvidos na natureza, nós nos desenvolvemos dela. Nosso grande desenvolvimento levou a uma série de problemas que nem percebemos direito, tão desenvolvidos da natureza estamos. Por mais desenvolvidos que sejamos, temos que admitir, a estrada da vida não é reta e lisinha. Nossa ingenuidade infantil acreditou que poderíamos controlar todos os problemas, nos apetrechamos para isso, mas sempre aparece um imprevisto no caminho. Passamos sede, criamos neuroses familiares, ficamos tontos, o clima global se modifica, esquecemos a bomba de encher pneu. Não acho que deveríamos voltar a viver como indígenas, mas também não acho que eles devam viver como nós, pois nós não somos muito bons exemplos. Já erramos muito, precisamos começar a usufruir dessa experiência. Como não tem estrada para nos guiar ao futuro, acho que deveríamos conversar mais a luz da fogueira. Sempre estamos desconfortáveis com alguma coisa, como um adolescente. Talvez sair mais de bicicleta e se interiorizar resolva.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2019


Queridas alunas, queridos alunos, colegas professores, familiares e amigos aqui presentes.
Eu sou analógico, meus alunos digitais. Sou disco de vinil, cinco músicas no lado A e mais cinco no lado B, meus alunos baixam 1500 músicas da nuvem no spotify. Tenho a necessidade de falar, contar longas histórias contextualizando tudo, meus alunos twitam até cento e quarenta caracteres e postam imagens no instagram. Eu copio a tarefa no quadro e eles tiram fotos e põe no grupo da turma no whatsapp. A impaciência comigo era inevitável. Essa turma não acreditava aprender nada comigo. Faziam o que eu pedia só para cumprir tabela. Talvez eles tenham razão. A instituição escola no Brasil data do século XIX, tinha o mesmo formato de quartéis, hospitais e presídios, longos corredores com portas que acessam as salas, tudo inspirado na arquitetura da revolução industrial. O objetivo era a produção em massa de cidadãos instruídos, como uma fábrica. Os professores são bem mais modernos, do século XX, assistiam televisão com cinco canais. Já os alunos são do século XXI, tem acesso a todo conhecimento do mundo na palma da mão a qualquer momento. Séculos XIX, XX e XXI convivendo num mesmo espaço. Essa assincronia tem seu preço. Tivemos muitos atritos. Vocês sabem a história daquele menino negro, pobre e judeu da palestina? Jesus também foi impaciente com seus professores. Aos doze anos, sumiu por horas, seus pais o encontraram na sinagoga, discutindo com rabinos, ele dizia: O que vocês fazem não é o que está escrito. Quando cresceu, aquele guri atrevido mudou os paradigmas filosóficos do mundo todo. Empoderou os pobres, as mulheres e os escravos com sua mensagem de liberdade, igualdade e fraternidade. Fiquei sem palavras com essa honraria. Agradeço profundamente, meus queridos alunos. Creio que resolveram homenagear um dos últimos professores vivos. Minha profissão é uma profissão de fé, temos que acreditar que os alunos conseguirão. Faço todos os esforços para isso. Com essa homenagem nessa formatura vi que obtive êxito. Professores estão em extinção, logo seremos substituídos por algum aparelho, que ainda não existe, com inteligência artificial. Nada me ensinaram sobre celulares na escola, porque eles ainda nem existiam quando eu era estudante e tinha a idade de vocês. O mundo dá muitas voltas. Muitas das profissões que vocês exercerão ainda nem foram criadas. Daqui cinquenta anos, em 2070, quando vocês estiverem idosos e cansados, se aposentando, talvez lembrem dessa formatura e desse professor. Professor e profissional tem a mesma origem etimológica, é aquele que apresenta um conhecimento, que professa suas crenças em público. Então, aqui vai minha última lição, vou revelar em público no que creio, qual a minha fé, por favor tolerem mais um pouquinho minha inadequação épica aos novos tempos. Quando nasci, o mundo tinha três bilhões de habitantes humanos, agora tem quase oito e quando vocês tiverem minha idade terá treze. O que as pessoas valorizam atualmente são bens: carros, casas, dinheiro, título de ações da bolsa de valores ou ouro. Futuramente serão coisas muito diferentes, não se apeguem a essas tolices. O que será mais valorizado serão quatro coisas: silêncio, água potável, contato com a natureza e conhecimento. Os ricos terão isso. Tentei oferecer a vocês o último dos quatro, o conhecimento. Tentei enriquecê-los. Acredito que aqui, se formando hoje no ensino fundamental, estão os futuros prefeitos de Osório, governadores do Rio Grande do Sul, quem sabe até alguma presidenta do Brasil. Porque não? Os presidentes Lula e Bolsonaro também vieram do interior. Mas lembrem sempre as lições daquele menino judeu. Professem vossa fé no amor. Dividam o pão, a riqueza que produzirem com todos. Perdoem aqueles que vos ofenderem, aqueles que vos impacientarem, como esse professor. Cada um vê o contexto histórico do seu ponto de vista, tentem compreender os dos outros. Os idosos também tem o que ensinar. Confio em vocês! Sejam felizes!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019


Fui escolhido paraninfo da formatura da turma do prézinho. Fiquei honradíssimo com a homenagem. Resolvi preparar um discurso para a ocasião. Escrevi o que está abaixo, mas na hora falei, no lugar de ler. Não saiu exatamente o aqui planejado, mas essa foi a mensagem que tentei passar:
Queridas alunas, queridos alunos.
Esta fala que farei se dirige a vocês, mas talvez vocês não entendam todas as palavras. Depois os pais de vocês podem explicar melhor. 
Queridos pais, queridos colegas professores, queridos amigos.
Ao ser convidado para essa solenidade, lembrei de dois pensadores que mudaram o pensamento da humanidade. O primeiro era uma liderança política e espiritual do oriente médio. Sua influência se estendeu por todo mundo e seu pensamento virou slogan das revoluções republicanas: liberdade, igualdade, fraternidade. Um terço das pessoas do mundo acreditam inclusive que ele seja um deus. Ele sempre falava em amor, dizia que devemos amar os outros como a nós mesmos. Talvez vocês já tenham ouvido falar dele. Seu nome era Jesus e ele vinha da cidade de Nazaré. Uma ocasião umas crianças se aproximaram dele e seus discípulos as enxotaram. Porém, ele reagiu: deixem vir a mim as criancinhas, porque só entra no reino de Deus quem for puro amor, como as crianças. O segundo pensador é um brasileiro, doutor em educação. Terceiro pesquisador mais citado em artigos científicos no mundo. Reconhecido internacionalmente como um grande inovador na educação. Seu trabalho revolucionou a atividade docente em meados do século XX. Foi aclamado recentemente como patrono da educação brasileira. Talvez vocês já tenham ouvido falar dele. Seu nome era Paulo Freire. Esse doutor também sempre falava em amor, afirmava que o aprendizado só se dá quando há uma relação afetiva positiva entre professor e aluno, quando o aluno gosta do professor. Porque as crianças são puro amor. O professor é aquele que ama seus alunos, ele dizia. Também dizia que o professor mais preparado, aquele com mais estudo e bagagem cultural, deveria trabalhar com os alunos mais jovens e mais ignorantes, com as crianças pequenas. Ensinar adultos geralmente é fácil, basta explicar. Mas crianças que não sabem nem falar, muitas vezes é dureza.
 Já pensaram que esses alunos vão, se a lei não mudar de novo até lá,  se aposentar em 2080? Sessenta por cento das profissões que eles exercerão ainda nem existe. Há vinte anos comprei meu primeiro celular. Não me ensinaram nada a respeito dessa máquina maravilhosa na escola porque aparelhos móveis de telefonia ainda não existiam quando eu era um estudante. Será que na escola podemos ensinar ainda alguma coisa que será útil para eles no futuro? Ou será mais útil oferecer amor, que os torne mais fortes psicologicamente, para estarem mais preparados e resilientes para um mundo em constante transformação? Coisas que até há pouco eram importantíssimas, agora são quase vultos históricos. Telefones de disco e telefonistas, cartas e carteiros, cheques, aparelhos de rádio. Até o século passado, grandes indústrias produtoras de bens, como Volkswagen ou Philips, eram as maiores e mais valiosas empresas do mundo. Atualmente, o dinheiro grosso vem mesmo de empresas que produzem intangíveis, como Google, Netflix e Facebook. E no futuro, será que nós professores seremos necessários? Médicos e advogados não serão substituídos por inteligência artificial?
É a primeira vez que me escolhem como paraninfo de uma turma. Uma honra até então inédita para mim. Me enchi de orgulho quando recebi o convite, esse é, sem dúvida o auge de minha carreira como professor. Pois se é mesmo que os professores mais preparados são os que atendem os alunos menos experientes e esse sou eu, então cheguei lá. O prézinho, é a turma mais importante de todo o sistema escolar. Pois são os alunos que entendem as coisas só com amor. Amor é sua moeda de troca com o mundo, ao fim e ao cabo, a única moeda que interessa. Acredito que a educação infantil ensinará a humanidade a amar, como previram acertadamente aqueles dois pensadores que citei.
Muito obrigado.

domingo, 8 de dezembro de 2019



Festa em família
Assisti Feliz Aniversário, com Caterine Deneuve, uma tradução ruim do título em francês Fête de familie, festa de família. Esse ano a indústria cinematográfica mundial resolveu cair na real, muitos filmes da vida como ela é. O Coringa, americano. Bacurau e a Vida Invisível do Brasil. Coréia nos presenteou Parasita. Todos filmes que explicitam mazelas sociais, exclusão, subversão a ordem e questionamentos ao status quo. No centro de tudo sempre está a doença mental que os protagonistas sofrem causada por, os roteiros nos levam a concluir, uma sociedade doente.
O cartaz do filme na porta do cinema iludia, assim como as famílias fazem, as fotos são lindas e o que se fala é bem diferente do que se vive. Quando se estuda a família, assim como as conhecemos hoje, se percebe que é uma construção histórica. Nem sempre existiu. Família passou a ser debatida junto com as primeiras cercas. Tradição, família e propriedade é uma novidade antropológica. É inegável que a agricultura e a necessidade da vida sedentária, a indústria e agora a informática, trouxeram grandes avanços para a humanidade. Porém, a mudança da espécie de caçadora coletora para sedentária, trouxe também muitas patologias mentais como efeito colateral. A defesa da família como sagrada ocorre nas sociedades que tem também a propriedade privada como dogma. Não é a toa que na televisão, desde às quatro da tarde, no vale a pena ver de novo, até dez da noite, quando acaba a última novela, as emissoras de maior prestígio ficam enaltecendo a família como valor moral inquestionável. Ainda que as histórias sempre sejam dramáticas, com mazelas terríveis durante a trama, no fim tudo se ajeita quando os membros maus das famílias são finalmente vencidos e os bons ficam unidos num paraíso terreno. Não por acaso também, é que o final mais clichê de novela é um casamento. Como um exemplo de patologia mental temos o nosso presidente atual, aquele psicopata nazista, defende a família “tradicional” apesar de já estar na terceira esposa e ter filhos extraconjugais, sem falar na corrupção e banditismo. A hipocrisia é o que as famílias tem de mais tradicional.
O filme é uma caricatura de família. Os papéis necessários a “boa” vida familiar estão todos lá: o bobo da corte, o certinho, o bode expiatório, os agregados que reproduzem as mazelas, a matricarca, o omisso e, é claro, a propriedade. O roteirista quis dar uma aula de psicologia das relações familiares. A vida como ela é. Brigas, acidentes de carro, drogas, crises nervosas, discussões. Lembra muito os contos do dramaturgo Nelson Rodrigues. Não tem final feliz. Família é um esforço coletivo para se encenar uma peça que seja palatável para a sociedade. Vou contar o final, pare de ler aqui se pretende assistir ao filme. Na última cena, a família acende as velinhas e canta parabéns para matriarca como se nada tivesse acontecido apesar do pesadelo vivido. O espetáculo tem que continuar, mesmo que a plateia seja só a própria família.
Quando se percebe quem defende a família, os interesses envolvidos, temos que, pelo menos, nos questionar sobre sua pertinência. Assim como muitos fazem sobre a propriedade e tantos outros valores sociais dogmáticos da atualidade. O que todos os filmes dessa última leva tentam fazer é exatamente isso. Mostrar que família é uma festa somente no final das novelas. A realidade é bem diferente dos que os hipócritas tentam nos fazer acreditar.