sábado, 13 de novembro de 2021

 A máquina engolidora de mongas



Fiz o curso Técnico em Mecânica no segundo grau. Os quarto e quinto anos foram os mais divertidos para mim na época. As aulas eram à noite, nos pavilhões industriais da escola, nem víamos os adolescentes dos turnos da manhã e tarde. Quem estava ali eram pessoas interessadas em aprender, já adultos, maduros, pessoas que trabalhavam durante o dia. O ambiente era de muita camaradagem, não havia “bullying” entre os alunos, eu me sentia muito bem. Mais de noventa por cento dos colegas eram homens, a maioria do interior, estudavam com muito esforço. Eu era o oposto deles, era um almofadinha da capital, frequentava cinemas e peças de teatro, tinha muitos livros em casa, já tinha viajado bastante. Visivelmente, meus colegas tinham repertório cultural bem mais acanhado, eu cuidava para não falar nada que me denunciasse, pois não queria que me vissem como diferente. Eu gostava de ser tratado como igual, mas era um esforço quase inútil, pois eles logo percebiam que eu era um infiltrado, um espião de classe. Eram todos muito inteligentes e batalhadores, sonhavam em comprar carros e aparelhos de som “3 em 1” (coisas que eu já tinha acesso). Tinham um humor ingênuo, pueril, que só tinha graça naquele contexto, riam alto, troçavam uns com os outros aos gritos. Um dos colegas chamava Jair. Jair era bem discreto, não falava muito, mesmo diante das maiores piadas, sorria em vez de gargalhar como todos os outros. Seus movimentos eram lentos e cautelosos, seus olhos muito azuis e o cabelo preto bem liso penteado para o lado. Sua voz era baixa, assistia as aulas de braços cruzados como para se proteger do resto da turba e alguns o achavam afeminado. Jair usava sempre o mesmo casaquinho de lã, daqueles que abrem com botões, com um padrão de losangos na frente. Uma ocasião, estávamos numa aula prática de usinagem de metais. Alguns em volta do torno, outros lidando com a fresadora, eu e o Jair estávamos na plaina, o professor nos ensinava como operá-la. Eu observava tudo com paixão, ficava o mais próximo possível para olhar de perto. A plaina ia e vinha com calma e a cada passe arrancava do metal uma molinha incandescente fazendo um ruído característico: ffffffsssss. Aquilo me fascinava. Eu pensava em quando teria minha própria plaina no meu pavilhão industrial particular. Jair distraidamente se inclinou um pouco mais para melhor observar o passe da ferramenta da máquina no metal e, por azar, o botão da ponta de seu casaquinho de lã aberto na frente se enganchou numa polia da máquina que começou a puxá-lo velozmente para a morte certa. Aquela máquina, por seu tamanho e inércia, faria guisado do Jair em segundos. O professor, atento, deu um salto e apertou o botão de emergência a tempo para fazer a máquina parar. Jair não perdeu a vida, mas seu casaquinho de losangos azuis e vermelhos ficou todo mastigado e rasgado por um monstro mecânico. O professor chamou todos os alunos para assistir Jair se desenrolando da máquina, com um hematoma na lateral do tronco, passou um sermão sobre segurança, roupas adequadas no trabalho e procedimentos de emergência. Nos ensinou como uma máquina tão boa, poderosa e útil poderia se tornar vilã se mal utilizada. Ficamos todos pensativos e silenciosos, pois o momento era grave. No entanto, no outro dia, algum colega não perdeu a piada. Escreveu numa folha de caderno e adesivou na máquina o seguinte aviso: Cuidado, máquina engolidora de mongas.

Minha vida acadêmica não parou no curso técnico. Diletante, sai no meio da Engenharia Mecânica para fazer Educação Física, mas no mestrado voltei a Engenharia. Numa das aulas da pós-graduação, um daqueles doutores capazes de apertar botões de emergência nos ensinou os ativos que viriam a ser importantes no futuro, depois do colapso da modernidade: o conhecimento, o contato com a natureza, o acesso à água potável e o silêncio. Os ricos terão isso. Me senti rico instantaneamente, pois meus planos de vida miravam exatamente nesses valores. No curso de gestão ambiental, recomendaram a leitura do livro “Primavera Silenciosa”, da bióloga marinha e ecologista Rachel Carson. A obra é fundadora de um movimento ambientalista mundial. Carson previa que o uso em massa dos agrotóxicos nas lavouras industriais acarretaria uma extinção em massa dos insetos e em efeito dominó de muitas outras espécies que se alimentam deles, de peixes a aves. Segundo ela, depois de um certo ponto, quando chegasse a primavera, não teria mais o renascimento da vida, o silêncio seria total, nem cantos de passáros nem zumbido de abelhas, a natureza teria morrido e nós, a espécie causadora de tudo, também logo pereceríamos, pois os insetos são os polinizadores, a base da vida no planeta. A previsão da bióloga não está longe, no Rio Grande do Sul, estado que mais produz mel no país, os apicultores estão sendo obrigados a deixar o negócio, pois colmeias inteiras aparecem mortas ou simplesmente somem. Esse fenômeno é mundial. Basta visitar uma lavoura de soja para se perceber um deserto verde. Mesmo ao ar livre o ambiente é de laboratório, como se estivesse isolado do meio ambiente natural, não há insetos ou minhocas no solo e a terra é somente uma espécie de esponja onde se joga químicos para plantas transgênicas brotarem sob a luz do sol. O herbicida pulverizado mata tudo, exceto a planta cultivada. A empresa que fabrica o agrotóxico é a mesma que produz a semente da planta que resiste a ele, uma venda casada hiper produtiva. Porém, infelizmente, o veneno que é bom para a produção também é levado pelo vento pulverizando também as florestas do entorno e se infiltra no solo com a chuva contaminando mananciais que chegam até o mar através dos rios. Rachel Carson não usou o termo, mas o que previu foi o antropoceno, a sexta extinção em massa, essa causada não por alguma chuva de meteoros, mas pelos próprios seres humanos e sua sanha econômica.

O sucesso de nossa espécie em se DESenvolver da natureza, ou seja, não se envolver com ela é efetivo e em escala global: estamos acabando com tudo para ficarmos sós dentro de um shopping-center, sem um mosquito sequer, onde não chove nem venta e onde não se tem nem onde tropeçar. Não estamos extinguindo somente animais e plantas, mas também minerais e até mesmo rios, lagos, mares, solos agricultáveis, correntes marinhas e o regime de ventos. Estamos indo a toda velocidade em direção a própria extinção, não temos o cuidado nem de preservar o solo onde produzimos o que comemos que estão sendo erodidos para assorear rios e mares. A indústria chinesa, uma das locomotivas da economia mundial, está atualmente em marcha lenta por falta de microchips. Está difícil de encontrar os raros metais necessários para sua produção, estão em extinção. O aquecimento global causado pela atividade humana é tão rápido que está causando uma paralisação nas correntes marinhas. O desmatamento de florestas está causando uma mudança no regime de chuvas em locais muito distantes delas. Os sinais de nossa eficiência em transformar o planeta estão cada vez mais evidentes. Algumas pessoas são “whistleblowers”, apitam o mais alto que podem para nos alertar sobre os fatos e tentam instruir a humanidade para como utilizar bem a máquina do industrialismo, mas o fato é que construímos uma gigantesca e inerte máquina de engolir mongas distraídos de seus perigos e nossos casaquinhos estão sendo rapidamente enrolados por ela. 

Depois daquelas aulas do mestrado, decidi abandonar a Babilônia viciosa da cidade grande e me mudei para um sítio num lugar ermo, vizinho a uma reserva estadual de proteção ambiental, a Barra do Ouro em Maquiné, próximo à natureza, com água potável e muito silêncio, onde o conhecimento poderia chegar através das ondas de rádio da internet. Por sete anos, me envolvi na natureza o melhor que pude e me senti muito rico, apesar de parecer extremamente pobre aos olhos de alguém da cidade. Mas, minha simples presença na beirada da floresta causava um forte impacto ambiental. Não foram poucos os passarinhos que morreram ao bater na vidraça da minha janela. Não foram poucas as aranhas e cobras que me vi obrigado a matar para sobreviver. Adotei animais domésticos para me proteger, predar ou espantar possíveis ameaças. Trabalhei o solo e transformei o local para se adaptar a mim e não o contrário. Mas, assim mesmo, me sentia indo na direção certa, plantei flores e árvores frutíferas que atraiam muitos pássaros e abelhas. Ficou tudo cheiroso e saboroso, lindo e colorido, aos meus olhos um lugar bem agradável de se viver.  



Depois de sete anos tentando morar em harmonia com a natureza, fazendo o mínimo barulho possível e cultivando a vida na minha casinha do morro, bem quando a fibra ótica chegou na Barra do Ouro para bombar meu acesso a internet e ao conhecimento, algumas famílias vieram morar próximas a mim, também atraídas pelo baixo preço dos terrenos na região desassistida de tudo. A cultura deles era muito diferente da minha, queriam se desenvolver da natureza e não se envolver com ela como eu. A primeira coisa que fizeram foi pulverizar veneno no chão para que não nascesse mais nada e não precisassem cortar a grama. Além disso, tinham o hábito de ouvir música a todo volume e acelerar o motor do automóvel rebaixado, mesmo parado, a altos giros. Enquanto acordados, os alegres vizinhos falam alto, aos gritos, riem alto, seu humor é pueril, soam como um recreio de escola, até jogam bola e correm uns atrás dos outros as gargalhadas. O ruído intenso e a fumaça parece que elevam seu status social entre os vizinhos, é a vitória sobre o silêncio da natureza. Quanto mais barulhento, mais desenvolvido da natureza, uma alegria para eles. A presença desses vizinhos transformou minha vida em miserável, pois acabavam com muitos dos mais caros valores de minha vida. Seu gosto musical era também bem diferente do meu: muito funk, sertanejo, músicas gauchescas e pagode. As letras eram perfeitamente audíveis da minha casa e muito comezinhas: amores perdidos para uma competição desleal, ciúmes, desejo de consumo de carros e motos caras, entre outras. O tom das letras é sempre barraqueiro, violento, de sofrimento, de conflito, de vingança. Logo me vi obrigado a entrar em uma luta judicial contra eles, pois o educado diálogo sem alteração de voz era inútil. 

Li uma reportagem da BBC News Brasil (O som mais ameaçado do mundo, 7/11/21) sobre a pesquisa de um ecologista acústico, Gordon Hempton, que me tocou fundo. Nela, o cientista diz que o silêncio está em extinção, assim como os insetos. Perceba que ele vai no sentido contrário a Rachel Carson. O problema não é que teremos primaveras silenciosas, o problema é teremos primaveras ruidosas demais. Mas o ecologista está afinado com minha professora do mestrado, Sandra Sulamita Nahas Baasch, que dizia que o silêncio é um dos ativos da pós-modernidade, será rico quem o usufruir. Segundo Hempton, o silêncio não é ausência de som, mas o silenciamento de toques de celular, dos motores, das britadeiras, enfim, da poluição sonora produzida pelos seres humanos que tomaram conta do planeta. Éramos um bilhão em meados do século XIX, mas agora em 2021 já somos oito bilhões, o volume de humanos no planeta está ficando insustentável. Nos alastramos sobre o planeta como mofo se alastra no pão, graças aquela máquina de engolir mongas, o industrialismo. 

No mesmo dia em que li a reportagem da BBC, ouvi uma live do apresentador de televisão americano, Bill Maher. Ele comentava a COP 26, uma das assembleias especiais da ONU para debater as mudanças climáticas que acontecem anualmente desde 1995. Ele chamava a atenção para alguns fatos. Há 26 anos, os países se reúnem cheios de boas intenções e promessas, mas ano após ano as promessas se repetem e nada realmente é feito. Greta Thunberg é a consciência da juventude mundial sobre o tema do aquecimento global e denuncia exatamente essa inação. Ela tem mais de 13 milhões de seguidores nas redes sociais. Porém, Greta não representa a juventude. Bill escolheu uma socialite qualquer, Kylie Jenner, com 280 milhões de seguidores para mostrar quem realmente representa a juventude mundial. A menina que avisa os perigos da industrialização tem muito menos interessados do que aquela que ostenta um consumo opulento e perdulário. Tem muito mais gente enrolando o casaquinho do que apertando o botão de emergência da máquina engolidora de mongas. A locomotiva da economia mundial é a indústria e ela é uma máquina gigantesca e inerte levando toda a humanidade à morte. O apito da locomotiva é uma pequena parte da máquina, serve para alertar os do entorno de sua aproximação e velocidade, no entanto tem um peso muito pequeno, como a Greta Thunberg e sua greve pelo clima, não faz a humanidade sair da frente.  



A trágica morte da compositora Marília Mendonça chocou o país semana passada. Em todos os jornais, longas reportagens relataram o acidente aéreo e a vida da cantora. Me enchi de compaixão ao saber que deixava um filhinho de dois anos. Depoimentos de vários outros artistas famosos enalteciam a importância dela na vida nacional. Caetano Veloso a chamava de Maravilha Mendonça, Gilberto Gil em lágrimas, Gal Costa e Adriana Calcanhoto relembrando o quanto ela fez pelas mulheres do país. Uma lista com números enormes foi enfileirada provando sua popularidade: Live com mais espectadores ao vivo da história da internet, músicas mais acessadas nas plataformas de streaming, artista brasileiro com mais seguidores nas redes sociais, etc. Me surpreendi muito com as reportagens, pois nunca havia ouvido falar em Marília Mendonça e, de repente, todos os noticiários que acompanho estavam debruçados em nos fazer entender detalhes da curta vida da cantora. Não estou arrotando arrogância elitista por desconhecer artista tão popular já que não foi diferente na ocasião da morte do pianista Nelson Freire: músico erudito e internacionalmente aclamado, que a repercussão de sua morte também soou para mim exagerada. Só estou deixando claro que sou bastante ignorante a respeito de música, qualquer que seja, nunca escuto. Nas raras vezes em que escuto, prefiro outro gênero musical, nem erudito, nem sertanejo. Mas, ao longo das reportagens dos telejornais sobre Marília, alguns trechos de músicas da compositora foram sendo exibidos e fui percebendo que seu estilo musical era semelhante ao escutado a todo volume por meus vizinhos barulhentos com carros rebaixados. Fiquei confuso, pois o que diziam dela nas reportagens (feminista que lutava pelo empoderamento das mulheres) não coincidia com o que eu escutava nas letras das canções. Pesquisei na internet sobre a cantora e logo achei uma reportagem dela e sua camionete rebaixada cheia de caixas de som. Procurei mais para ler as letras de suas músicas na íntegra e confirmei a confusão. Marília Mendonça e eu estaríamos em lados opostos do tribunal: eu lutando pelo direito ao silêncio e ela lutando para usufruir de suas canções sobre ciúmes a todo volume no seu carro rebaixado cheio de caixas de som potentes, como meus vizinhos barulhentos. Marília Mendonça é o produto de uma indústria de entretenimento engolidora de mongas como qualquer outra, onde o volume e a magnitude do desenvolvimento da natureza é o que conta. 



Como diria Bill Maher, Marília Mendonça é uma boa representante da juventude brasileira, tem 41 milhões de seguidores nas redes sociais, não é por acaso. Sua popularidade não quer dizer sabedoria. Nelson Rodrigues já nos alertava que a unanimidade é burra, porque quem pensa como ela não precisa pensar, é só seguir a massa. A maioria salvou Barrabás da morte e não Jesus. Hitler tinha o apoio da maioria brutal. A maioria é como meus vizinhos da Barra do Ouro e meus colegas de escola técnica: eles querem grandes carros rebaixados, cheios de caixas de som potentes, música alta, chãos sem uma formiga como num shopping-center e, por favor, que matem todas as abelhas antes de chegarem no local. Status social é sinônimo de barulho, alegria para eles é aos gritos. Para a maioria, uma pessoa desenvolvida é a que se encontra o mais longe possível do canto dos pássaros, dos zumbidos dos insetos enfim, do silêncio da natureza. 

A maior empresa que controla redes sociais mudou de nome, não se chama mais Facebook, mas sim Meta. A empresa de Mark Zuckerberg tem a óbvia meta de controlar as mentes da população mundial. Quer ser unanimidade. Para atingir esse objetivo ambicioso, estuda profundamente a mente das pessoas, deve ter muitos neurologistas e psiquiatras na sua folha de pagamento. A empresa está se saindo muito bem, pois o Facebook tem três bilhões de usuários que o utilizam diariamente, é construído propositalmente viciante. Se você, leitor, ainda não sabe, a tradução dos termos “mark” e “zuckerberg” do alemão para o português é “marco” e “montanha de açúcar”. Se fosse a criação de algum escritor de ficção, o nome do empresário seria extremamente simbólico, Impossível ser mais significativo e metafórico para o momento humano no planeta. Infelizmente, não estamos vivendo uma ficção, o próprio nome do fundador da empresa já denuncia que a tal da Meta será o marco de transição da humanidade para a terceira onda de DESenvolvimento da humanidade da natureza: um produto barato, acessado por todos voluntariamente, viciante, que passa despercebido, faz o volume dos indivíduos aumentar incontrolavelmente e controla tudo. Praticamente, quem tem algum aparelho para acessar internet no mundo tem Facebook. Os usuários se viciam nas drogas endógenas que o programa induz que o cérebro produza (dopamina, serotonina, endorfina, ocitocina) como quando comemos um bombom de chocolate bem açucarado ou tomamos um gole de Coca-cola. A máquina engolidora de mongas (eu inclusive) da indústria cibernética está puxando o mundo pelo botão do casaquinho. Algumas Gretas da vida já estão soprando os apitos de alerta sobre as redes sociais, mas a máquina é de tal magnitude, volume e inércia que arrasta qualquer um e ainda não tem botão de emergência. O que o Facebook prova é que os algoritmos podem ser usados tanto para o bem como para o mal, assim como qualquer máquina, e estão entrando nas nossas vidas para ficar. 



No seu livro “A terceira onda”, de 1980, Alvin Toffler já nos alertava da futura onipresença e onisciência dos computadores no controle de tudo. Quarenta anos após a publicação de Toffler, aparentemente chegou a terceira onda de desenvolvimento que previu. A primeira onda de desenvolvimento da humanidade foi o surgimento da agricultura, deixamos de ser uma espécie nômade caçadora e coletora, viramos sedentários e passamos a armazenar excedentes de produção para quando não há tanto sol e água. A segunda onda foi a indústria, deixamos de esperar o sol fornecer a energia para nossa subsistência e fomos buscar energia armazenada por milhões de anos no subsolo para superalimentar nossa espécie em detrimento de todas as outras. Finalmente, a terceira onda, a revolução da análise de dados que estamos vivendo. Computadores sabem que gostamos de sapatos de couro bico fino marrom no momento que olhamos alguns segundos para uma propaganda deles nas redes sociais e passam a insistir para que consumamos mais calçados desse estilo. Se pesquisarmos o nome de Marília Mendonça na internet, imenso material de reportagens, fotos e vídeos dela aparecerão como sugestão dos algoritmos para nosso desfrute. É bom que algum computador saiba a hora exata de injetar mais um miligrama de medicamento na veia do paciente da UTI para salvar sua vida. Mas não é bom que algum computador saiba seus vícios para ficar lhe tentando a comprar mais da droga que você nem pode pagar. Uma plaina pode ser usada tanto para o bem como para o mal, depende da consciência do usuário, com um algoritmo de programação é a mesma coisa. Se uma montanha de açúcar ficar acessível para uma criança, sua atitude vai ser pueril, de consumo ingênuo e aos gritos e gargalhadas, no entanto, levará a sua morte.

Não se engane, os algoritmos dos computadores estão chegando para dirigir o planeta, literalmente. Já há carros, caminhões e trens dirigidos autonomamente. Mesmo em áreas mais sensíveis e caras, que exigem muito estudo de um ser humano, seremos substituídos com vantagens. Médicos, por exemplo, serão logo substituídos com eficiência por robôs, pois o trabalho de um médico é observar dados, analisá-los e tomar decisões a partir deles e isso um robô faz muito melhor que um ser humano. A democracia representativa é outra área que será logo substituída. Já elegemos “Trending topics” automaticamente, Marília Mendonça é um deles. A transição para a democracia direta é um fato que está aumentando de volume rapidamente. Por um lado pode ser bom, robôs não têm a menor tendência à corrupção se não forem programados para isso. Por outro, pode ser o catalisador de uma reação química explosiva no planeta: seres humanos se multiplicando descontroladamente num meio ambiente finito, sem água e com temperatura elevada. A maioria é ingênua, tem pensamento pueril, está mais preocupada com satisfazer seus desejos mais imediatos, como comer uma montanha de açúcar ouvindo música alta sabendo quem traiu quem nas redes sociais. A democracia direta pode se tornar rapidamente um democratismo tirânico onde a maioria de pensamento hegemônico esmaga a minoria que pensa diferente. 

Meu pai está encantado com o pensamento de um filósofo lituano de origem judaica, Emmanuel Levinas. Não tive acesso ainda aos escritos do pensador, a não ser por trechos que meu pai compartilha e comenta com os filhos. Pelo que entendi até agora, Levinas, que sofreu as barbáries do nazismo, argumenta que o centro da filosofia deve ser a ética, os valores que construímos no convívio social. Antes de pensar em si, devemos pensar nos outros. Por exemplo: Se vamos salvar o meio ambiente é para que outros seres humanos usufruam dos confortos de ter água potável e uma temperatura agradável no futuro. Veja que a filosofia de Levinas é humanista, coloca os seres humanos no centro da vida. Já é muito melhor que a filosofia que pensava só no eu. Repito, não conheço Levinas, não li seus livros, somente procurei alguma coisa superficial na internet para compreender o encanto de meu pai. No entanto, aparentemente, um programador que se oriente por Levinas para programar um algoritmo de democracia direta construirá um mundo eticamente mais sofisticado e melhor para todos os seres humanos do que outro que não o faça. No entanto, percebi que o pensador judeu se omite em relação a outras espécies de seres humanos além da humana, ele se omite em relação as abelhas, por exemplo.

Creio que o programador que escreverá o algoritmo de democracia direta que acabará legislando e governando o mundo, além de não pôr só os desejos pessoais do eleitor no comando das decisões, deve por as necessidades do planeta, como ser vivo e sujeito de direitos, a Pachamama dos indígenas sul americanos, e todas as outras espécies de seres vivos, desde lesmas até gramíneas e corais, em igualdade de direitos com o homo sapiens, para que tenhamos a possibilidade de alongar a experiência humana no planeta e não sejamos extintos pela nossa própria eficiência em acabar com outras espécies que nos aborrecem. A democracia cibernética, que está entrando num galope silencioso na vida de todos, pode ser uma máquina engolidora de mongas ou uma panaceia social, dependendo da consciência do programador. Qual botão que escolheremos interagir com essa máquina, o distraído da ponta do casaquinho como Jair ou o atento de emergência como o professor?

P.S.: Abaixo, reproduzo parte da letra da música de maior sucesso de Marília Mendonça. “Infiel”. Não consigo reconhecer a competição de duas mulheres por um homem como sendo feminismo. Feminismo, no meu entender, é a luta política por igualdade de direitos entre homens e mulheres. Uma feminista de verdade ajudaria a outra mulher a reconhecer no traidor um canalha. Acredito que Caetano estava distraído e seu casaquinho foi puxado pelo botão. 

O seu prêmio que não vale nada, estou te entregando

Pus as malas lá fora e ele ainda saiu chorando

Essa competição por amor só serviu pra me machucar

Tá na sua mão, você agora vai cuidar de um traidor

Me faça esse favor