segunda-feira, 4 de março de 2019


Lula Livre

Nos anos setenta, meu pai recebia mensalmente a revista Scala, de propaganda da África do Sul. Ele nunca assinou, o governo daquele país mandava gratuitamente, talvez por ele ser advogado. Era um óbvio esforço sul-africano para criar uma boa imagem ao redor do mundo. Era uma revista de altíssima qualidade, com fotos grandes e coloridas, escrita em português. As reportagens mostravam a pujança econômica e o bem estar social da população, o meio ambiente preservado e as riquezas minerais e, claro, muitas fotos de negros e brancos convivendo em harmonia. Mas as notícias que chegavam da África do Sul por outras fontes não eram nada boas. Depois de uma grande revolta de negros em Soweto em 1976, com centenas de mortos, meu pai mandou uma carta aos editores pedindo que não mais recebesse a revista por discordar das políticas do país. A Scala era pura Fake News.
Na década de oitenta, não só meu pai tentava se desconectar da África do Sul, o mundo os pressionava para que acabassem com a política de segregação racial conhecida como “apartheid”, que em holandês quer dizer segregação mesmo, na cara dura. Havia uma grande resistência da maioria negra que contestava aquele regime totalitário. Por isso mesmo, prisões, sumiços e massacres de negros ocorriam a todo instante. Devido aquele óbvio abuso, a situação começou a ficar clara aos olhos do mundo. Começaram uma série de restrições internacionais ao país para que mudasse as leis. A ONU sugeriu um bloqueio econômico, muitos países deixaram de negociar com eles. Houve também um veto na participação de eventos esportivos como copa do mundo e olimpíadas. Todos os países exigiam vistos para os cidadãos sul-africanos. Apesar de tudo, a elite branca que colonizara o país resistia. Prendia e matava as cabeças da resistência.
Um advogado que defendia os direitos humanos se tornou uma grande liderança entre os negros que lutavam por igualdade. Exatamente por isso, foi logo preso acusado de ser terrorista e comunista. Passados vinte anos na cadeia, submetido a trabalhos forçados e solitária, o governo resolveu soltá-lo, cedendo a pressão internacional, com uma condição: que ele abdicasse da luta pelo fim do apartheid. Aquele advogado, então, disse que naquelas condições, preferia permanecer preso. E ali permaneceu mais sete anos. Jamais trairia seus irmãos e sua presença no cárcere era muito mais poderosa para a luta pela liberdade do povo que sua própria liberdade. A lealdade à causa o impediu de fugir do compromisso com os excluídos. Um grito por sua libertação ganhou voz, primeiro na África do Sul, mas a magnitude de sua dignidade foi logo sentida além mar. Um grande movimento internacional por sua liberdade virou notícia. Shows de música que reuniam os grandes artistas da época atraiam multidões em estádios. Finalmente, depois de 27 anos, em fevereiro de 1990, o advogado foi solto e dois anos depois foi eleito presidente da África do Sul. Seu nome era Nelson Mandela e até o Nobel da paz ele acabou ganhando, humilhando aquela mentalidade tosca e atrasada da elite branca sul-africana.
Em junho de 1990, eu já morava em Amsterdam há nove meses, uma gestação. Já falava inglês e aprendia o holandês. Estava no meu segundo emprego e tinha uma patroa camarada, ganhava bem e juntava dinheiro. Uma manhã eu caminhava despreocupadamente pela cidade e vi um grande movimento na Leidseplein, praça distante um quarteirão do hotel onde trabalhava. Não entendi o que estava ocorrendo. Fui me metendo na multidão e conversei com algumas pessoas que ali estavam. Mandela tinha sido solto e tinha vindo para Holanda, ia falar ali na sacada do Concertgebouw, o grande teatro municipal. Eu era um guri, nem sabia direito quem era ele ou o que aquela visita significava, mas vi pelo entusiasmo da multidão que era importante. Demorou e mais gente se aglomerou a minha volta, colocaram faixas na sacada do teatro: Welkom Mandela. 
Nessa foto dá para ver eu de costas bem direitinho ali perto do poste naquele dia...
Viste eu ali?
Agora a praça toda e os arredores estavam completamente tomados, os bondes pararam de circular. Uma horda de jornalistas se espremiam na sacada principal do prédio e noutras menores, havia câmeras por todo lado. De repente, alguém fala ao microfone que a rainha, Nelson e Winnie Mandela estavam presentes. Foi o que bastou para a multidão enlouquecer. Começaram a pular e gritar o lema da campanha internacional pela liberdade de Mandela: Freeeeeeeedom, Nelson Mandela!!!! E era um coro uníssono repetindo aquilo sem parar, a massa pulava unida sem parar fazendo o chão tremer. Na sacada, entraram ele, sua esposa, a rainha da Holanda e outras autoridades. Eles abanando e a multidão, em júbilo, gritava ainda mais alto: Freeeeeeeeeeeeedom, Nelson Mandela!!! Freeeeeeeeeeeedom, Nelson Mandela!!! A rainha falou em holandês, lembrou que tinham sido também os holandeses que colonizaram a África do Sul, mas que a Holanda não concordava com o apartheid. Foi breve, agradeceu e comemorou a presença do casal sul-africano, foi aplaudida e passou a palavra. Me chamou a atenção que, quando Mandela começou a falar, em inglês, não se escutava um pio da multidão em total respeito. Basicamente, Mandela disse que a luta continuava e que agradecia a acolhida e o esforço feito pelos holandeses para conquistar sua liberdade. Ao terminar, Mandela foi aclamado de novo, com gritos e pulos. E eu ali no meio de tudo, atônito, mas gritando e pulando também! No outro dia, o jornal que minha patroa assinava, DE TELEGRAAF, noticiava que mais de trinta mil pessoas haviam testemunhado aquele momento e que tinha sido o maior ato público que a cidade já vivera. Depois daquele dia, logo saí de Amsterdam, eu estava pronto e podia nascer para o mundo e para a militância. Me tornei um fervoroso admirador de Madiba e sua luta. Em 2013, o Wikileaks viria a revelar que os Estados Unidos interferiu na África do Sul e determinou a prisão de Mandela e a manutenção dele no cárcere por tanto tempo para controlar o ouro e os diamantes produzidos naquele país. 
Nessa outra foto dá para ver eu de frente ali perto daquele poste na direita...
Viste, né? Sim, era eu mesmo!
Situação não muito diferente vive agora o Brasil. Também vimos ser preso nosso grande líder que luta por melhores condições de vida para o povo. Também a magnitude de sua dignidade está sendo sentida além mar. Também foi a intervenção direta dos Estados Unidos, revelada pelo Wikileaks, que o colocou na cadeia. Também foi por recursos minerais, no nosso caso o petróleo, que os americanos querem para si e não para dividir com os pobres da nação. Também ele não fugiu do país e segue leal ao compromisso com os excluídos. Também ele foi indicado ao prêmio Nobel da paz. O nome dessa liderança dos direitos humanos aqui no Brasil é Lula e o grito que está sendo ouvido aqui, mas começa a tomar proporções internacionais é: Lula Livre!! Se não o matarem antes, o que é bastante provável pois é prática americana comum, Lula será liberto por pressão internacional e voltará a ser presidente do Brasil e Nobel da paz humilhando essa elite tosca e atrasada que o persegue há quarenta anos. Podem fazer a Fake News que quiserem, mas, com o tempo, só cairão num vergonhoso ridículo, como a revista Scala.