domingo, 19 de maio de 2019


Comecei a ter contato com a universidade pública em 1986, quando me inscrevi nas férias de julho para umas palestras de uma tarde para conhecer os cursos oferecidos. Fiquei encantado com a Engenharia Mecânica, as perspectivas eram grandiloquentes: eu poderia ficar na pesquisa, trabalhar numa estatal como a Petrobras ou partir para a iniciativa privada, ser empregado de alguma empresa ou fazer meu próprio negócio. Na época, sonhava em trabalhar na Coemsa, projetando grandes turbinas de hidrelétricas, aquilo me fascinava. Prestei a prova vestibular no final do ano, era um processo difícil. Tudo era no papel, não existia a internet, então fui até a reitoria conferir nos listões da parede se minha inscrição tinha sido homologada. Curiosamente, somente três Tiagos haviam se inscrito. Primeiro tinha um provão de cinco dias em todas as áreas do conhecimento. Passado um mês, quem tinha sido aprovado naquela primeira fase fazia as provas específicas para o curso que se tinha escolhido. Passei nas duas fases, para minha surpresa e da minha família, das 110 vagas tirei a colocação 62. Entrei triunfante na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, conhecida como a melhor do estado!
O curso era dificílimo. Apesar de ter tido uma formação de excelência na Escola Técnica Parobé, estadual, mas também pública, que permitiu que passasse no vestibular competindo com outros mil alunos do estado inteiro, vi logo que estava além de minhas capacidades. Um professor nos avisou: vocês tem que estudar oito horas de cálculo por dia, quatro de física e uma hora de geometria se quiserem passar nas cadeiras. Primeiro achei que fosse brincadeira dele, mas não, era sério. A quantidade de exercícios era massiva e os conceitos a serem aprendidos exigiam muita abstração e atenção. Além disso, tinha dias que eu passava seis horas por dia dentro de ônibus, indo de uma aula para outra. Tínhamos aula de desenho e geometria descritiva nos prédios velhos do centro, nos novíssimos prédios do campus do vale perto de Viamão eram as aulas de cálculo e física, no campus do hospital de clínicas as aulas de Estudos de Problemas Brasileiros e no campus olímpico as aulas de Educação Física no Jardim Botânico. As estradas eram péssimas e os ônibus lotados. Almoçávamos no restaurante universitário a preços baixíssimos. Era evidente o privilégio da matemática e da física diante das outras disciplinas na qualidade das salas de aula, dos laboratórios e bibliotecas. Era tudo novo, do bom e do melhor, os militares da ditadura valorizavam muito as exatas. No campus do vale era onde eu passava mais tempo, socado em bibliotecas e salas de monitoria para entender o que não tinha entendido na aula, ou seja, tudo. O campus era lindo, no meio da floresta, a convivência com os colegas era muito boa, mas nossas conversas sempre giravam entre as dificuldades em resolver alguma integral ou um problema de colisão de partículas.  
Tranquei a matrícula da faculdade por dois anos e fui viajar para Europa. Meu mundo mudou totalmente a partir dessa viagem. É preciso sair da ilha para se ver a ilha, tem muito mais coisa além do lugar onde moramos. Eu já sabia disso na teoria, mas na prática a cabeça dá um nó. Assim que chegamos noutro país, nos damos conta de que nossa cultura é só um fragmento da cultura mundial, nossa língua não é falada por muita gente, nossa religião é ridicularizada assim que viramos a esquina. Navegar é preciso, viver não é preciso.
Quando voltei, tentei sinceramente voltar para a engenharia. Esforcei-me muito, estudei aquelas oito horas por dia e fui bem nas avaliações, até fui convidado pela professora de cálculo para ser monitor da disciplina tão bem me saí, mas não aceitei. Depois de tanto viajar, de passar dois anos fora, eu não era mais o mesmo, meu entusiasmo pela engenharia mecânica diminuiu muito. Deprimi e precisei de ajuda psicológica, não tinha mais o foco necessário para estudar aquele assunto. Resolvi mudar de curso superior e depois de dois anos à deriva, prestei um novo vestibular, agora para Educação Física, para grande desgosto de meus pais. Me saí muito melhor nesse segundo certame, tirei sexto lugar, mas claro, era até covardia, já estava mais velho que meus concorrentes adolescentes, sabia muitas outras línguas, conhecia muito mais lugares do mundo e já tinha cursado um tanto da engenharia o que facilitava muito as provas de matemática, física e química. Comecei tudo de novo, na mesma universidade pública, mas agora num curso de humanas.
De 87, quando entrei na engenharia, a 93, quando mudei para Educação Física, muita coisa mudou no país. Uma grande mudança já na inscrição do vestibular, agora informatizada e com centenas de Tiagos. E não só Tiagos, mas Thiagos, Tyagos, Thyagos. Qual a razão de tantos Tiagos? Uma novela global na minha infância em que o galã tinha o nome de Tiago fez explodir a preferência pelo nome. Mas não era só mais Tiagos o que havia mudado. A redemocratização trouxe um ar fresco para as universidades. O foco nas exatas dado pelos militares já não existia. As humanas também recebiam verbas federais, a Educação Física era bem equipada e uma série de investimentos estavam sendo feitos na faculdade para modernizá-la. Se construiu o laboratório de pesquisa do exercício, LAPEX, com equipamentos tecnológicos caros. Que grande orgulho nós tínhamos de participar daquela faculdade tão moderna. Eu me saí bem na disciplina de ginástica postural e fui convidado para ser monitor da cadeira, aceitei na hora. Também passei a fazer parte do grupo de pesquisa em fisiologia do exercício. A Educação Física era muito séria e produtiva, vivíamos enfiados nos laboratórios estudando e pesquisando, isso me levou a muitos lugares, inclusive o exterior. Teve uma ocasião que fomos aos Estados Unidos para apresentar nossa pesquisa com crianças diabéticas. Fomos selecionados, devido a qualidade da pesquisa, para apresentar no American College of Sports Medicine os resultados. Como eu falava inglês, fui o responsável por ficar ao lado de nosso pôster explicando o que tinha sido feito aos pesquisadores estrangeiros.
A Educação Física era muito mais alegre que a Engenharia. As disciplinas tinha uma grande parte prática, então as aulas não eram aborrecidas. Além disso, ao contrário da Engenharia, a Educação Física era cheia de mulheres, então, muitas festas eram organizadas pelos alunos que estavam se formando. Isso nunca atrapalhou nossos estudos. As festas eram aos sábados e as aulas eram somente até sexta-feira. Eu mesmo adorava participar delas. Nosso grito de guerra nesses encontros era: “vamu se pelar”!!! No entanto, durante todo o curso, ninguém cumpriu a promessa de se pelar, bem que teria sido legal! O máximo que vi, depois de doze anos na universidade pública, foi uma bunda peluda de um colega muito engraçado, por uns dois segundos, no corredor do ônibus, na volta de um passeio que fizemos para Torres.
      Fui aceito no mestrado em outra universidade federal, a de Santa Catarina e fui morar em Florianópolis. Lá a mesma história se repetiu, muito estudo, muita seriedade, muita pesquisa. Participei de programas de pós graduação da engenharia e da educação física: Engenharia da Produção e Sistemas, Engenharia Sanitária e Ambiental, Engenharia e Gestão do Conhecimento e, finalmente, Educação Física Escolar. Estudei as bicicletas e porque as pessoas não andam com elas no Brasil para ir trabalhar. Passei outros dez anos frequentando as cadeiras da UFSC e vivi momentos maravilhosos de muito aprendizado e entusiasmo com o conhecimento. Nessa época lia muito e escrevia, era muito produtivo. Só me foi possível toda essa vida escolar porque as universidades eram públicas e gratuitas. Depois de vinte anos na escola, não é difícil aprender.
Depois de todo esse histórico, me causou muito espanto, mais de trinta nos anos depois do primeiro contato com a universidade pública, que existe uma campanha contra ela. Os argumentos são os mais bizarros: os alunos fumam maconha, andam pelados pelo campus, não há pesquisa científica. Fiquei atônito ao ver posts de amigos partidários do novo governo nas redes sociais defendendo até o fim das instituições públicas de ensino. Como nunca vi nem ninguém fumando maconha no campus, sou realmente da geração coca-cola, ou as faculdades de que fiz parte mudaram radicalmente desde que saí, ou as notícias são fake news e, nesse último caso seria uma tentativa vil de enlamear aquelas escolas. Fiz então uma investigação própria na internet. O que encontrei, muito facilmente, é que ainda são escolas de excelência e, ao invés de terem piorado nesses vinte anos, melhoraram muito, oferecendo mais cursos de graduação, mais possibilidades de pós graduação, inclusive no exterior, mais pesquisa e extensão e envolvimento com a comunidade. Que triste é o atual governo que só pensa em destruir patrimônio tão duramente pago ao longo dos anos pelos cidadãos brasileiros. Nestes 33 anos, desde 86, a universidade deu um salto quântico em qualidade. Tomara o povo reaja a esse ataque abjeto e ignorante e não permita o fim ou a privatização das universidades públicas.

domingo, 12 de maio de 2019


Os Silveira paz e a amor
Aos dois anos de idade, acredito eu, num entardecer de verão, tomei meu primeiro e último banho no lago Guaíba em Porto Alegre. A população já sabia que as águas estavam poluídas por esgoto e resíduos industriais que toda região metropolitana despejava livremente nos rios. No entanto, nas praias distantes do centro da cidade, ainda se considerava próprio o banho. A forte lembrança que tenho daquela prazerosa tarde foi de um momento muito alegre com meus pais, minhas irmãs e os Silveira, no fundo do pátio da casa deles em Ipanema. Eles moravam numa grande chácara, às margens do lago. Lembro bem de Maria Augusta, a matriarca da família, com água pelos joelhos, me encorajando a entrar um pouco mais para dentro do lago para observar o belo pôr do sol. Mas me sentia mais seguro de mão com minha mãe, com as marolas lambendo minhas canelas.
As visitas aos compadres de meus pais, eles foram padrinhos de minha irmã caçula, eram sempre maravilhosas e marcaram minha memória de forma muito positiva. Aquela chácara era mágica. Tinha um enorme jardim e uma linda casa de madeira com corações serrados nas janelas, tinha lareira e era decorada em todos os cantinhos, por dentro e por fora, parecia de contos de fadas. Dava para correr a vontade lá, muito gramado e canteiros de flores. Tinha casinhas de bonecas e de passarinhos pelo pátio da mesma madeira e cor da casa principal. Horta, pomar, várias composteiras, casa de caseiro, tinha até uma torre da Rapunzel! Ir lá era sempre uma diversão de muito aprendizado e fantasia. Eles tinham muitos filhos, mas eram um pouco mais velhos que nós, adolescentes, já estavam noutra onda, nunca os encontrávamos. Quem sempre nos recebia com toda a paciência era Maria Augusta. Ela era de origem alemã, então sempre nos ensinava alguma coisa da cultura ou do idioma germânico. Uma ocasião nos levou para cozinha e sentamos num “canto alemão”, um banco almofadado em “L” atrás da mesa. Nos serviu uma “apfelstrudel”, uma torta de maça, com chá. Ela falava docemente com uma vozinha agradável e rouca, com um vocabulário muito grande que nos enchia de perguntas e sempre tinha um grande repertório de histórias que acompanhavam as surpresas que ela nos proporcionava. Na sala tinha um relógio cuco, que a cada tanto saía e piava. O chá não era de saquinho, mas sim colocado num ovinho de metal que era mergulhado numa chávena de porcelana. Maria Augusta, assim mesmo a chamávamos, era orgulhosa dos filhos e nos contava suas aventuras: Sérgio criava abelhas e fazia mel, Francisco Alberto andava de bicicleta e corria, Cecília estudava música. A vida daquela família era cheia de belos detalhes carregados de histórias, fantasias, sonhos, cultura e erudição.
Àquela época, começo dos anos setenta, era de muito sofrimento no Brasil. Toda América Latina estava submersa em ditaduras de direita. Estávamos em pleno regime militar e, com as forças do mal no poder, muitas coisas eram proibidas, inclusive aglomerados de pessoas. Eu mesmo, nasci dois meses depois da emissão do Ato Institucional nº 5, que fechou o congresso nacional e tirou diversos direitos civis. Reuniões, para qualquer assunto, eram subversivas à ordem. Os Silveira, no entanto, inteligentemente resistiam à opressão. Construíram no pátio um templo, uma espécie de igreja católica informal, ou algo assim: era um local de reuniões subversivas. Era um casal ativo do MFC, Movimento Familiar Cristão. Organizavam encontros internacionais de casais católicos. Não havia nenhuma objeção do governo ditatorial a isso, porque o movimento era bem alienado nas suas análises. Porém, estavam a refletir as ideias de um comunista radical, Jesus. Aquelas reuniões deixavam angustiados alguns que queriam maior envolvimento político da igreja nos países. Meus pais, por exemplo, saíram do movimento e procuraram outras formas de luta mais efetivas. A teologia da libertação começava a surgir em defesa dos mais pobres, como Jesus ensinava. Lideranças como Frei Betto, Dom Hélder Câmara, Leonardo Boff ou mesmo Jorge Mario Bergoglio, o atual Papa Francisco, surgiram nessa época preocupados com os mais pobres. O trabalho de formiguinha nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) dessa gente começou a render frutos políticos. A volta da democracia, a constituição de 88 e a eleição de um operário para a presidência do país, Lula, fortemente apoiado pelas CEB’s e a igreja católica. Acredito que esses avanços progressistas vieram a culminar com a eleição da primeira mulher para presidência, Dilma. Talvez, aquele ato de construir o espaço de reuniões religiosas dos Silveira, aparentemente ingênuo, tenha sido revolucionário.  
Toda minha vida escolar foi durante o período militar. Os milicos viam as artes como inimigas. Pensadores que escreviam, atuavam no teatro, compunham músicas, pintavam ou esculpiam eram perseguidos. As cabeças criativas e pensantes eram inibidas nas escolas. Quem pensasse muito poderia vir a derrubar o governo. Na minha infância nunca tive oportunidade de viver a arte. Não tive aulas de música, teatro ou mesmo uma oficina de modelagem. Uma geração inteira, a minha, ficou cronicamente carente do convívio com o belo. Não sabemos fazer nem interpretar a arte, somos infantis nessa área como desenhos de pessoas palito. Eu não sei desenhar, pintar, cantar, atuar numa peça de teatro, tocar uma flauta doce, ler uma partitura, ou modelar argila. É triste. Somente a marcha de sete de setembro permitia algum esforço artístico. Mas, como eu tinha péssima coordenação motora, não conseguia entrar para a banda ou mesmo fazer alguma acrobacia com bambolês na avenida. Por ser loiro, me colocavam em destaque e deixavam carregar faixas no desfile. A pobreza estética dos prédios, dos uniformes, das salas de aula era evidente. A coisa toda era proposital. Pela manhã, ficávamos em fila e cantávamos o hino da escola e do Brasil ao hastear a bandeira. Então aprendíamos “Educação, Moral e Cívica”, disciplina regular ao lado de matemática e português. As artes eram relegadas a um terceiro plano, quando sobrasse um tempinho, para fazer decoração de páscoa ou cinzeiros para os pais. Precisava ser totalmente desapegada da realidade, no máximo uma natureza morta.

Felizmente o mundo muda. Em Porto Alegre foi eleito um governo democrático em 88 e foi como uma primavera para as artes. Criaram o orçamento participativo, onde qualquer cidadão poderia sugerir e decidir sobre onde seria aplicado o dinheiro arrecadado. A educação passou a valorizar as artes no currículo e começaram a surgir diversas escolas nas favelas e nas periferias mais excluídas da cidade. Muitos professores tiveram que ser contratados nessa época, pessoas formadas naqueles anos de chumbo da ditadura militar. Com aquela formação quadradona, dificilmente alguma coisa muito especial poderia surgir. Mas, o governo estava disposto, abria espaço e disponibilizava verbas para quem fizesse um projeto inovador.  Uma que outra professora iluminada conseguiu proporcionar a seus alunos experiências de qualidade. A maioria reproduzia aquilo que aprendeu, no entanto, a possibilidade estava aberta e alguns pesquisavam e, com grande esforço pessoal traziam as artes para onde elas sempre mereceram estar, a ponta de lança do desenvolvimento social. Uma outra geração teve oportunidades incríveis e agora, passados trinta e quatro anos da redemocratização, a contaminação das brumas do inverno militar finalmente dissipou.
Fui convidado por uma irmã para assistir uma orquestra de estudantes de uma escola básica da rede municipal de Porto Alegre. Segundo ela, seria regida por Cecília Reinghantz Silveira. Lá fui eu ao teatro São Pedro, na noite de uma terça-feira, com a menor das expectativas. Imaginei crianças com flautinhas tocando Coelhinho da Páscoa, como seria na minha época. Porém, minha ideia de arte nas escolas foi estraçalhada no espetáculo. Uma orquestra enorme, com violinos, violoncelos, percussão e acompanhada de dois corais de adultos convidados me fizeram chorar profusamente. O espetáculo era um portal mágico de elevação espiritual. Nas duas primeiras músicas eu soluçava emocionadíssimo. O nome do espetáculo era Paz e Amor e apresentou músicas da resistência dos jovens na época da ditadura militar. Todas as músicas eram acompanhadas de um grande corpo de baile que coreografava tudo. Na frente da orquestra aquela frágil senhorinha de cabelos brancos, filha caçula dos Silveira, Cecília.

A vida vem em ondas como o mar, já nos ensinava Lulu Santos. No recuo da maré política, vivemos um momento de volta às trevas obscurantistas da ditadura. A volta dos militares ao governo, da direita, do autoritarismo, do asco às artes, do repúdio aos avanços sociais. Essa virada grotesca também foi impulsionada pela religião, mas dessa vez pelos evangélicos, numa interpretação distorcida dos ensinamentos de Jesus. De alguma forma bizarra, “amai-vos uns aos outros” virou “bandido bom é bandido morto”. Em vez de “perdoa setenta vezes sete” agora é “compra tua arma para se defender”. No lugar do “dividir o pão” ficou o “salva o teu e o resto que se lasque” da teologia da prosperidade de pastores pentecostais capitalistas. Justo agora que chega aos grandes teatros o resultado de uma geração formada em escolas progressistas, quando as artes estão maduras, doces e cheias de sementes, estamos mais próximos da burca que da Sorbonne.
Não conheço nenhuma outra forma mais efetiva de resistência do que a exercida por Cecília e seus alunos de escola pública. Ela é um rochedo que não se mexe mesmo nas piores ressacas. Devemos observá-la pois é um farol da liberdade no meio dessa tormenta. Se alguém que testemunhou o espetáculo era de direita, teve toda sua estrutura ideológica rachada. Tudo o que o atual governo abomina estava no espetáculo: gays, negros, cabelos black power e coloridos, dança, teatro, poemas de protesto, música boa e questionadora, diversidade total e beleza. O espetáculo todo era uma aula de civilidade. Eu mesmo, criado num ambiente mais sombrio, vi uma gordinha negra sair da fileira dos violinos da primeira para segunda música e preconceituosamente pensei: Claro, os piores só sabem uma música então saem para dar espaço para quem realmente sabe tocar. Em um minuto esse pensamento se provou machista, racista, gordofóbico, misógino, repugnante. A gordinha voltou para a frente do palco, acompanhada de várias outras gordinhas negras e começaram a coreografar a música com um sapateado. A guriazinha brilhava, era um diamante. O tosco era eu. Ainda bem que calado e chorando no escuro ninguém percebeu que eu sou um fóssil mal cheiroso, um bicho escroto.

Que educação maravilhosa os Silveira receberam. Conseguiram atravessar os anos de chumbo da ditadura fazendo com que seus rebentos tivessem acesso a arte e crescessem sua capacidade intelectiva. Que pessoas privilegiadas viveram naquela casa, em tanta paz e amor que transbordou para seus alunos de escola pública. Agora imagina se tivessem vivido lá em tempos democráticos! O que não sairia de lá?! Ainda bem vivi também numa casa bem abastada, não só em termos materiais, mas também em intangíveis culturais. Só assim posso reconhecer a magnitude do feito da Maria Augusta e do José Silveira que criaram a Cecília para ser um polo de amarração do belo, para que não fosse levado pelas ondas que de quando em quando assolam o país. Obrigado aos Silveira pela paz e amor que vocês, resistindo bravamente as ondas de ódio e guerra, com muito esforço nos oferecem. Acho que aquele cuco, as casinhas de boneca com janelas de coração, a chávena de porcelana e as apfelstrudel foram fundamentais para isso, mas também a vozinha rouca e os banhos de Guaíba ao pôr do sol.