sábado, 18 de novembro de 2017

Piadinhas e mais piadinhas, como sempre, quando se está no meio de trabalhadores braçais. Quando era Mecânico de manutenção da Sanremo ou da Termolar, depois quando fui beneficiador na serraria, escutei as melhores piadas da minha vida. Aquelas de ficar o dia todo rindo e semanas depois, quando a gente encontra o peão que contou, lembra e ri de novo. Pena que a maioria das piadas é super contextualizada com o serviço realizado, com as máquinas usadas ou com algum peão conhecido. Se tu contas para alguém que não trabalha ali ninguém vai entender nada. Anos depois, ao reencontrar um companheiro de trabalho destes, um clima de grande camaradagem se estabelece de novo, um alegre sorriso se abre nas caras sem nenhuma cobrança da ausência e com sincero interesse com o destino dos amigos em comum. Ontem, no meio de um trabalho pesadíssimo, tombando toras e usando a picareta para quebrar a rocha para fazer o leito de cada degrau da escadaria, escutei uma das poucas que dá para passar adiante:
Tu acreditas em fantasmas?
Claro que não!
É, eu também não, eles são muito mentirosos!
A surpresa te desarma e o trabalho fica mais fácil.

sábado, 11 de novembro de 2017

Porto Alegre, 2 de fevereiro de 2006
Estou triste hoje. Sim, triste, vendi minha moto ontem. Eu nem tinha sentido nada, a tristeza só bateu hoje. Fiz tudo que tinha que fazer e fui para casa como se a vida continuasse normalmente, mas não. Eu adorava aquela motinho. Ela era rara, muito pouco vendida. Curtia um monte sair com ela, me orgulhava. Para mim, era a melhor moto do mundo, me dava um baita prazer. Tinha o motor forte e uma aparência inovadora que muitos achavam horrorosa, mas para mim era uma coisa a mais que a tornava exclusiva. Eu andava com o peito inchado em cima dela e olhava com soberba para os outros motociclistas que ignoravam a sua tremenda capacidade. Dava toda atenção, enchia ela de cuidados, mas cuidando para não mimar. Em cinco anos só dei seis banhos nela, para não atrair olhos de cobiça. Nada de gasolina ou óleo especial, ela bebia o que todo mundo bebia. Claro, de vez em quando eu comprava uma relação com retentores, muito mais cara, ou um pneu original só para ela continuar especial. Ela já estava velhinha, com cinco anos, toda hora tinha uma coisa para fazer. Mas até isso me dava alegria. Parecia que eu estava fazendo a coisa certa: cuidar bem. Meu coração se preenchia. Não deixava estragar, só fazia manutenção preventiva. Qualquer coisinha eu ia correndo no mecânico. Ele é um cara legal, tão apaixonado por ela como eu. Sempre dava uma elogiada, como ela estava bem conservada ou como era macia. Nós dois ficávamos olhando ela e comentando sua beleza e boazudisse. Ele vê em mim um cara que gosta e entende de moto, não só um cara que usa moto. Eu vejo nele a mesma coisa, ele gosta e entende de moto, não é só um cara que conserta. A relação, minha e dele, com as motos tem afeto envolvido.
A história da venda foi trágica, mas talvez tu, leitor, aches divertida. Eu ia vir para Porto Alegre dia 16 de dezembro com a firme intenção de vender a moto aqui, ela tem a placa da cidade. Pergunta daqui, pergunta dali, pensei em vender por cinco mil. Alguém me alertou que era bom eu trocar o pneu traseiro antes de vender, o estado dele é uma das primeiras coisas que prováveis compradores olham. Serve como uma isca. O pneu original era caríssimo, então resolvi por o do mercado paralelo mesmo, já que não seria eu que ia usar e pouca gente percebe a diferença. Troquei o pneu, deu 150 reais, mas eu pensei: 150 é nada perto de 5000, além do que a viagem para Porto Alegre seria muito mais segura. Também paguei o IPVA, para não ter problemas na estrada e nem na hora de vender: R$ 228,00. Pensei: mas isso nem conta, vai ser o último gasto mesmo! Vim. Na estrada do mar um polícia me parou, na frente dele a moto apagou. Não fui eu que desliguei, ela apagou sozinha. Olhou os documentos, minha carteira de motorista foi tirada em Florianópolis e eu tô com barba por fazer na foto, fico meio bandidão. Ele não deu muita bola para os documentos, mas se interessou pela moto, nunca tinha visto aquele modelo de moto em 15 anos de PRE. Eu elogiei um monte a moto, como era econômica e durável, nunca estraga. Eu disse que ia vender e ofereci, ele disse não, mas gostou. Fiquei feliz, sinal de que seria uma barbada vender. Vesti o capacete, coloquei as luvas e tentei ligar a moto: nhéco, nhéco, nhéco, nhéco e nada, o polícia ali, olhando. De novo: nhéco, nhéco, nhéco, nhéco e nada. Tiro as luvas, futrico um pouco, começo a suar: nhéco, nhéco, nhéco, nhéco e nada. O polícia se desinteressou totalmente e foi parar outro carro. Futrica um pouco mais, suo profusamente de casacão e capacete no solão, mas ela pega... com quase todo acelerador puxado: RUUÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ!!! Coloquei as luvas correndo e sai dali antes que ele achasse um artigo para me multar. A moto ia bem a 80 km/h, beleza, mas a 60 falhava e parada apagava. Cheguei em Poa e deixei a moto na oficina com a ordem: limpa o carburador e troca a vela. No outro dia fui buscar, R$ 37,50. Pensei que seria só isto, mas não era, ainda falhava. Como é que eu ia vender uma moto falhando? Voltei lá: só pode ser a bobina, eles disseram. Dois dias depois voltei de novo: R$ 220,00. Vai somando... Puta merda, porque esta moto não esperou mais um dia para estragar? Não era a bobina. É o coletor, me disseram, mas só tem na Yamaha. Fui na Yamaha: R$ 150, mas não era o coletor. Cada vez que eu ia tirar dinheiro no caixa eletrônico era um custo, o cartão tá todo descascado e a tarja magnética já nem funciona mais direito, tem que fazer dez vezes a operação para dar certo. Deixei a moto para uma investigação mais aprofundada, uma semana. Aproveitei o tempo para fazer uma nova carteira de identidade, na minha eu ainda estava com 14 anos. Na foto da nova, percebi depois, eu saí com a barba por fazer, meio escabelado e suado, ficou pior que a antiga. Depois de passada a semana, me disseram: R$ 450! Era um punhadinho de peças que o cara me apontava com o dedo mindinho para não escondê-las. Somou? Pois é, R$ 1235,50, mas ficou boa, bá, ficou tri boa. Pensei, vai ser uma sopa vender está super máquina por 5000! Anunciei no natal na Zero e no Correio, não vendi. Para compensar, ganhei uma camiseta bem legal do MST de natal do pai. Fui em todos os picaretas de Poa, ninguém queria a minha já nem tão adorada moto. Percebi que tinha um elefante branco nas mãos. Fui para Rio Grande e Pelotas (o tio Luís me disse que lá era certo que eu vendia) mas lá, também, ninguém quis. Aquela aparência inovadora, que para mim era linda, para todo mundo era mesmo horrorosa. Ofereci em Canoas, Cachoeirinha, Alvorada e Viamão, nada. O motor forte, que para mim era um prazer, para todo mundo era um gastador. Esteio, Sapiranga. A bela raridade virou rapidamente uma bruxa medonha. Novo Hamburgo, São Leopoldo. Os outros motociclistas, que eu, arrogantemente, sempre achei ignorantes, agora eu invejava por serem tão espertos de terem uma bosta de moto para passar adiante fácil. Vendi, então, para o primeiro que me fez uma oferta, a única que me fizeram, em Gravataí; R$ 3000. Tirando a gasosa que eu gastei para ir pra lá e pra cá com a moto e toda manutenção, sobrou uns R$ 1500 para mim dos cinco mil que eu queria... Peguei o cash e levei correndo, de casacão e capacete na mão, 2 km até o banco, num solão de rachar coco, três ridículos bolinhos de notas de cinqüenta. Cheguei todo suado, com a camiseta do MST molhada, barba por fazer, todo escabelado, com aquelas coisas na mão, tava uma coisa. A mulher do caixa começou a contar bem rápido: vap, vap, vap, vap, vap, um bolinho, vap, vap, vap, vap, vap, outro bolinho, vap, vap... Esta é falsa! Gelei. Como assim, falsa? É falsa, passa os documentos! Eu passei o que tinha ali: identidade tirada ontem em Porto Alegre, com barba por fazer, escabelado e suado na foto, carteira de motorista tirada em Florianópolis, com barba por fazer, cartão do banco todo descascado e com a tarja magnética sem funcionar! Eu argumentei: juro que só vim a Gravataí vender uma moto... Mas já vi até as manchetes nos jornais: “Bandidão do MST tenta passar dinheiro falso em Gravataí!”, me imaginei algemado na delegacia, o delegado dando-lhe pau em mim num cantinho escuro, depois na cadeia, os presidiários socando-lhe o pau em mim num cantinho escuro.