sábado, 26 de outubro de 2019



Carpe diem
O dia está belíssimo, temperatura perfeita, comento com minhas irmãs via whatsapp e mostro, orgulhoso, uma foto da minha janela. Uma delas recomenda: carpe diem. O papo segue, muitas colegas professoras tatuam no braço essa frase em latim sem nem saber o que significa direito. Talvez porque viram no filme Sociedade dos Poetas Mortos com o ator Robin Williams, já falecido. O filme é um drama, um dos personagens centrais da trama se suicida no fim. Não estou dando spoiler porque o filme é de 1989, foi lançado há mais de 30 anos, tu já deves ter visto até na sessão da tarde. Robin era mais conhecido nos Estados Unidos como comediante, fazia stand up comedy. Apesar de fazer todo mundo rir, suicidou-se também. Contei para as irmãs uma conversa engraçada que tive com uma colega, professora de matemática. Ela me contou que viu Titanic no cinema com 14 anos! Protestei em voz alta: Bem capaz, não pode ser! A situação ficou um pouco chata porque ela entendeu que eu a estava acusando de mentir a idade, mas não. Estava surpreso que já passaram mais de 20 anos que o filme estreou nos cinemas.  Titanic é de 1997, mas me parece que foi ontem! Olho pela janela e aprecio o dia. Será que estou aproveitando o dia bem? Mesmo? Um dia assim é bom para passear, ou trabalhar no pátio, mas estou sentado no computador escrevendo... porque quero, não tenho prazo vencendo, trabalho da faculdade, dissertação, tese, nada. Professor de Educação Física não fica muito entusiasmado com sol, no trabalho já tem de montão. Procuro na wikipedia e acho rápido:
Carpe diem é parte da frase latina carpe diem quam minimum credula postero (literalmente: 'aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã'), extraída de uma das Odes, de Horácio (65 a.C. - 8 a.C.), e tem numerosas traduções possíveis: "colhe o dia" (tradução literal), "desfruta o presente", "vive este dia", "aproveita o dia" ou "aproveita o momento". O poeta latino exorta sua interlocutora, Leuconoe, a desfrutar do prazer que a vida oferece, a cada momento. No contexto da decadência do Império Romano, a frase resumia o ideal horaciano, de origem estoico-epicurista, de aproveitar o que há de bom em cada instante, já que o futuro é incerto. Entretanto a frase é frequentemente repetida, com um sentido (inexato) de convite ao viver alegre e despreocupado.
Ainda estou no zapzap, uma amiga me manda uma música. No Youtube aparecem outras sugestões. Fico um momento aproveitando o dia para escutar músicas, coisa que nunca faço. Uma puxa a outra e chego em Tom Jobim e Elis Regina cantando Águas de Março. Abro o vídeo e sinto uma emoção estranha de viagem no tempo, acho que vi esse clip no Fantástico na época em que foi lançado. Investigo e é de 74, pode ser. Reflito sobre a vida. Os dois monstros sagrados da MPB já mortos, como Robin Williams. Estou tão velho, todos meus colegas são bem jovens, não conhecem filmes que vi, ou músicas que gosto. As mulheres que acho interessantes me olham como um ancião. A vida está passando tão rápido, será que não a estou desperdiçando trabalhando? Tanta gente já morreu, não estou me referindo a Sócrates ou Epicuro, mas de caras que são meus contemporâneos como Tim Maia ou Raul Seixas. Como assim, Tim Maia morreu??? Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito para contar, dizer o que aprendi. Não falta muito para que seja eu o defunto.
O que é Carpe Diem afinal? Passear ao sol? Ou deixar uma grande obra lembrada com emoção pelas pessoas? Será que dá para fazer os dois? Sócrates suicidou-se tomando cicuta, ele poderia ter fugido, mas preferiu ficar e aceitar a condenação que lhe foi imposta. Raul Seixas era diabético e preferiu parar de tomar insulina, também optou pelo fim da existência. Tim Maia, de certa forma também se matou, bebia muito. Grandes artistas e filósofos, pensadores que mudaram o mundo, tem trajetórias breves, sempre concluem pela falta de sentido na vida. Concluo que minha obra não é tão relevante: não penso em me matar e estou considerando abreviar esse texto para caminhar ao sol. O dia está tão bonito! Chega de filosofar. Carpe diem! Aproveite o que há de bom em cada instante, Leuconoe, já que o futuro é incerto.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019


Osório e sua cultura exemplar
Por conta de algum daqueles acasos da vida que nos levam a lugares que nunca imaginamos sequer parar, fui trabalhar em Osório. Não tinha nenhuma ligação com a cidade, ela só me pagava o salário. Nem família, nem amigos, nada. Quando comecei a circular por suas ruas não conhecia ninguém, não sabia nada sobre o lugar. Aos poucos, por força da profissão, fui me aproximando das pessoas, da história da cidade e de seu meio ambiente. Atualmente, estou tão envolvido ao município que passei a admirar muito tudo que envolve a cidade. Como fui ciclista e um militante em favor da bicicleta como modal de transporte urbano, logo me chamou atenção a quantidade de ciclovias espalhadas pela cidade. Mesmo onde não há ciclovia, as vias são bem cicláveis e agradáveis de pedalar.  Outra coisa que é extremamente positivo na cultura local é o respeito aos pedestres, as faixas de pedestres são respeitadas! Os carros realmente param quando percebem alguém com intenção de atravessar a rua. Cadeirantes e cegos também tem vez, as esquinas tem rampas de acessibilidade e as calçadas tem piso tátil. Há um esforço do poder público também para estimular as artes. Ontem pela manhã, as crianças da escola assistiram uma peça de teatro na câmara dos vereadores e hoje à noite vai ser eu que vou usufruir desse prazer, conforto público e gratuito.  Fantástico, uma pequena cidade do interior gaúcho que aparenta ser norte da Europa. Muito desenvolvida. O meio ambiente também é valorizado, talvez porque a cidade está encravada entre um cordão lagunar de águas doces, algumas ainda potáveis, o começo da mata atlântica, com encostas de serra cobertas de florestas e o mar. O cidadão de Osório tem acesso ao ambiente natural com facilidade. Todos os cidadãos estão em paz na cidade, “de boa”, expressão que aprendi lá.
Trabalhando nas escolas do município, aprendi o hino de Osório. As crianças são ensinadas desde cedo a cantá-lo e o fazem com entusiasmo, principalmente o refrão. Como já aprendi a letra depois de velho, demorei a entender sua filosofia, completamente diferente de qualquer outro que aprendi na infância. Se prestares atenção nas letras dos hinos de outros lugares ou instituições, verás que são agressivas ameaças. Os hinos geralmente falam assim: ó, a gente é legal, moramos num lugar bonitinho, tem umas plantinhas aqui e um por do sol bacana, daí vem a parte que interessa, mas quem ousar invadir nosso território, um tiquinho que seja, vai tomar um pau!!! “Mas, se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta, nem teme, quem te adora, a própria morte”, diz, sutilmente, o hino nacional brasileiro. “Mostremos valor, constância, nesta ímpia e injusta guerra; sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra”, fala o rio-grandense, já nada delicado. O hino francês é ainda mais explícito: “Às armas, cidadãos! Formai vossos batalhões! Marchemos, marchemos! Que um sangue impuro banhe nossos campos!” São lindas composições, emocionantes, mas refletem a ideologia dominante no tempo em que foram escritas. Sempre é através da guerra que se chega à paz. A glória da vitória parece ser o valor mais importante, sempre aparecem essas palavras, olhe nos hinos de times de futebol brasileiros. Se eu for escrever o hino da minha casa num dia ruim de brigas com os vizinhos que põe som alto, vai sair coisa bem parecida. Quem escreve os hinos é alguém pequeno, triste, angustiado, com medo de ser ou mesmo já tendo sido roubado ou violentado, se fala muito em justiça nos hinos. Por isso chama a atenção o hino de Osório, que também fala de guerra, nem podia ser diferente porque até o nome da cidade vem do patrono da cavalaria, mas é diferente em essência: “onde a paz combate a guerra”. Através da paz e do amor que se percebe a possibilidade de evitar a guerra. Além disso, admite transitoriedade, fala mais ou menos assim: ó pessoal, nem sempre foi assim, agora tá assim, mas pode mudar, sei lá... “Mesmo que mudem divisas, será conservada a memória, ainda que mais se divida, Osório é marco da história!” É incrível a diferença, quem escreveu estava tranquilo, “de boa”, feliz, seguro de si. Eu me pergunto: será que o hino é assim porque o povo de Osório anda de bicicletas e vai ao teatro desde pequeno ou é o contrário, o povo respeita faixa de pedestre por que pensa e escreve assim? Não sei, sei que a combinação é boa.
Mas claro, essa cultura de paz da cidade, sempre pode melhorar. Tem tão poucas árvores nas calçadas de Osório, poderíamos plantar mais. Poderíamos tomar o exemplo do hino e em vez de ensinar o ódio, a vingança e a guerra, podíamos ensinar o amor, a empatia, o envolvimento com a natureza e a solidariedade. Que tal ensinar sobre alguns filósofos famosos na sua luta pela moralidade das sociedades. Que tal São Francisco e sua oração “onde houver ódio que eu leve o amor, onde houver discórdia que eu leve a união”? Que tal Jesus e seu “amai-vos uns aos outros”? Em vez de ensinar competições nas escolas, poderíamos ensinar a cooperação. Em vez de promover eventos esportivos, podíamos promover eventos cooperativos. Que tal Kant e seu “não faça para o outro o que não gostarias que fizessem para ti”? Alguém são, “de boa”, não gostaria de impor derrota a ninguém. Tenho certeza que em Osório o povo está preparado para entender esses ensinamentos. Vamos fazer brotar a cultura da paz e do cuidado uns com os outros e com a natureza. Vamos tornar a cidade um exemplo internacional de paz social. Eu, como professor de Educação Física e religião, ateu, estou tentando. Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz.

"Hino de Osório"

(Lei Municipal nº 3.120, de 14.12.99) 
Letra: Osvaldo Vieira de Aguiar 
Música: Loreno José dos Santos 

Braços abertos aos pontos cardeais 
E tendo o Sul à esquerda do peito 
Na encosta da serra, margeando o mar 
Está aqui o lugar que é perfeito. 

Ao sopro suave da brisa nordeste 
CONCEIÇÃO DO ARROIO, o princípio 
Da Vila, na ESTÂNCIA DA SERRA 
Que a OSÓRIO passou a município. 

Mesmo que mudem divisas 
Será conservada a memória 
Ainda que mais se divida 
OSÓRIO é marco da história 

Alto dos morros com visão natural 
Pairando qual pássaros no vôo a vela 
Espelham lagoas e seu manancial 
Geografia divina, repleta e bela. 

Esta cidade é mesmo um encanto 
Que integra a nação brasileira 
Cintilam verde, vermelho e branco 
No tremular de nossa bandeira 

Refrão... 

Onde a paz combate a guerra 
Se conserva em harmonia 
Lembrando ilustre filho da terra, 
Osório, o patrono da cavalaria. 

Refrão... ( 2 x)

domingo, 20 de outubro de 2019

Sobre os Jogos Cooperativos de Osório
Muitos dos valores sacralizados na sociedade brasileira moderna vieram da antiga Grécia. A democracia é o exemplo que mais salta aos olhos. No entanto, se estudarmos a democracia grega, veremos que se trata de um sistema de governo bem diferente do nosso. As ideias que tinham lá, a ideologia dominante de então, não mais avaliamos como justas ou mesmo sensatas. As mulheres eram consideradas coisas, meros homens que nasceram estragados, degenerados, do avesso, com vaginas no lugar de pênis, não tinham poder político nenhum. Os escravos, tanto homens quanto mulheres, também não tinham direito ao voto, pois não eram considerados cidadãos de Atenas. As decisões importantes, que iam para a Ágora para votação, eram feitas somente por dez por cento da população ateniense da época, os cidadãos plenos de direitos, homens livres. Era uma sociedade aristocrática onde somente os ricos decidiam os destinos do povo. Mas, ao longo do tempo, uma lenta sofisticação moral da sociedade foi contaminando os pensamentos dos cidadãos. Demorou uns dois mil e quinhentos anos para que a escravidão passasse a ser vista como descabida e as mulheres também serem aceitas como cidadãs plenas. Porém, a ideologia grega de decisões coletivas, onde cada cabeça vale um voto, se perpetuou e até hoje defendemos ideias em público para apreciação da população em eleições.
Se pensarmos na educação, a ideologia dominante daquela sociedade ancestral era também aristocrática. Parecia inútil gastar dinheiro em escola formal para pessoas que eram vistas como incapazes de aprender: mulheres, escravos ou deficientes. De novo, os homens livres tinham direito a professores pagos, o resto da população não. Mas, felizmente, também nessa área, uma lenta evolução ideológica transformou a sociedade para uma maior inclusão. Atualmente, as escolas públicas e gratuitas já são aceitas como normais no Brasil, lutamos inclusive para qualifica-las. Já está no imaginário popular que nenhuma criança deve ser excluída da educação formal, independente do sexo, religião, cor da pele ou qualquer outra diferença, nem mesmo os deficientes mentais devem ficar de fora. Existem até mesmo mecanismos de punição para os pais que não colocarem seus filhos na escola e os estimularem a frequentar as aulas. Em algum momento, os legisladores decidiram que assim seria melhor para a vida em sociedade, situação bem diferente de antigamente. A ideologia dominante deu uma grande guinada em direção a inclusão universal na educação, tornando a ideologia anterior uma aberração excludente.
O conjunto de ideias que regem a sociedade, a ideologia dominante defendida pelos cidadãos, vai mudando com o tempo de forma dramática. As escolas públicas, assim como as conhecemos hoje, nem sempre existiram. Foram começando a se tornar hegemônicas no ocidente a partir da revolução industrial. Tanto oprimidos quanto opressores, começaram a percebê-las importantes e dignas de investimento público para formar novos operários para as nascentes fábricas que surgiam. Evidentemente, o que seria ensinado nas escolas foi decidido seguindo a ideologia dominante da época. O conteúdo deveria ser útil para os trabalhadores da indústria: matemática e a língua escrita deveriam ser os principais assuntos estudados para formar operários capazes de ler e calcular operações do trabalho. Se sobrasse tempo, nalgum intervalinho, poderia se pincelar alguma arte, música ou história. Ainda hoje, matemática e língua portuguesa tem mais espaço na grade curricular com cinco períodos semanais cada. Já artes conta somente com um período, cristalizando na cultura popular o carácter menor, desprezível ou até fútil daquele conhecimento.
Dentro da escolarização, a ideologia dominante também foi transformando a Educação Física. Junto ao surgimento das primeiras escolas públicas na revolução industrial, a disciplina tinha a intenção higiênica de formar operários saudáveis, alunos com corpos aptos para o trabalho. Muitas sessões de ginástica calistênica nessa época. Logo, com as grandes guerras mundiais, o foco das atividades era militarista, a formação de combatentes capazes de defender a nação. O atletismo, as lutas e os exercícios de força são introduzidos nas aulas. Finda a segunda guerra, sem mais a necessidade de formar soldados, a Educação Física voltou a priorizar o desenvolvimento de um corpo são, mas agora também considerando a mente como parte indissociável do corpo: “mens sana in corpore sano” era um mantra que foi introduzido e é até hoje repetido. As aulas passaram a considerar também a socialização dos alunos como importante, assim as danças e os esportes foram introduzidos. Logo em seguida, com o golpe militar de 1964, a ideologia mudou de novo passando a valorizar a obediência às regras e as autoridades. Desde então, a Educação Física escolar passou a ser fortemente embasada nos esportes, com grande investimento público para esse fim. As maiores e mais caras salas de aula de qualquer escola são sempre os ginásios de esportes e o material didático mais caro são sempre as bolas, tabelas, redes, traves e demais equipamentos destinados ao ensino dos esportes.
Apesar de, com o fim da ditadura militar em meados da década de oitenta do século XX, a Educação Física voltar a refletir sua prática sobre outros paradigmas, como a criticidade dos alunos ou sua emancipação, a ideologia baseada nas competições segue dominando. É natural que isso aconteça, porque os professores que agora trabalham nas escolas, assim como todos agentes da mídia no país, foram formados naqueles anos de chumbo ou logo após. As ideologias são muito resistentes a abalos, demora até os novos textos chegarem as bases das faculdades das capitais e ainda mais lentamente nas do interior. Os esportes ainda dominam amplamente o panorama escolar brasileiro, assim como em todas os meios de comunicação. Porém, a filosofia que rege a disciplina atualmente está muito distante daquele corpo alienado da realidade social como era até então. Os professores buscam conscientizar os alunos de seus papéis sociais, sua inserção numa sociedade excludente, assim como seu protagonismo em relação ao meio ambiente. A Educação Física ficou muito mais complexa do que já foi.
Diante desse breve histórico é que chegamos ao nosso município. Anualmente se realiza na nossa cidade os jogos escolares de Osório (JEO). Todas as atividades desse grande evento são competitivas, coerente com a ideologia dominante que envolve todo o sistema escolar brasileiro onde as competições ainda são muito valorizadas. As seleções de todas as escolas do município se apresentam para as competições, repare que até mesmo a palavra “seleção” denuncia exclusão. Assim mesmo, escolas municipais, estaduais, particulares e até federais se apresentam, ávidas por competir. Além desses jogos, eventualmente também se realizam os jogos da primavera, outra semana de competições em que se tenta privilegiar os alunos que não foram selecionados para o primeiro evento, uma forma de amenizar os efeitos da exclusão. Nesse segundo, somente as escolas municipais são convidadas.
Pensando em atualizar a Educação Física da cidade para esse novo paradigma em que se convida o aluno a experimentar novas vivências corporais não competitivas, problematizar as questões da exclusão intrínseca ao esporte, questões de lesões, além das questões ambientais, o grupo de docentes da disciplina da rede municipal de escolas públicas, em 2016, passou a propor jogos cooperativos que ocorressem concomitantes as competições já normalmente realizadas. Numa reunião com o executivo em 2017, o projeto “Mexendo na Regra – Promovendo a Inclusão nos eventos esportivos da cidade de Osório”, apresentado por mim, foi aceito e ampliado: em vez de duas semanas anuais, se projetou fazer três. Uma concomitante aos JEO, em Maio, outra em Outubro, junto aos jogos da primavera e ainda uma terceira inédita, entre as duas, em Agosto, logo após o recesso de inverno. A proposta era oferecer atividades não competitivas, lúdicas e cooperativas em contato com a natureza e separadas das competições apesar de no mesmo espaço, o parque da vila olímpica de Osório. Infelizmente, esse projeto logo emperrou nas diversas alegações impeditivas do professorado do município.
Passados mais três anos da primeira frustrada tentativa, outro professor da rede, Tiago Medeiros, apresentou um projeto mais enxuto e palatável para o gosto dos docentes da cidade: somente dois dias no ano e somente os alunos das séries finais do ensino fundamental. Novamente aprovado pelo executivo, o Projeto “Jogos Cooperativos de Osório” (Jocó) foi mais longe que o Mexendo na Regra. Conseguiu realizar sua primeira edição.
No dia combinado, conduzi meus alunos ao parque da vila olímpica. Lá chegando a primeira frustração: somente três escolas do município aderiram a proposta. O sistema de som estava montado e funcionando para as autoridades que iriam se manifestar na abertura do evento, como sempre acontece nas competições do JEO. Porém, essa foi a segunda decepção, nenhuma autoridade apareceu para falar, nem boas vindas ou bom dia, nem mesmo um alô. As duas situações reveladoras do descaso aos esforços dos professores envolvidos. Sintomáticas também da importância que tem as competições e o descuido com a cooperação. Apesar de já esperada, a negligência da população da cidade, desde administradores, passando por professores e até os alunos, para com a cooperação contrasta com o grande envolvimento de todos nos eventos competitivos. Não surpreende que o povo de Osório conviva naturalmente com a exclusão na vida cotidiana se ela é ensinada na escola e nos meios de comunicação como óbvia. O que surpreende é que mesmo professores, profissionais da educação, não achem relevante o ensino da inclusão e da cooperação na escola.
O professor Tiago Medeiros, organizador desses primeiros Jocó’s, que refletiu a organização do evento e sua intencionalidade, planejou lindas atividades cooperativas no meio da mata, sobre verdes gramados, sob a sombra das árvores ou sob o sol. Mas mesmo ele, com essa intenção em mente, se equivocou em algumas atividades competitivas apresentando-as como sendo cooperativas. Os alunos participaram alegres integrados ao meio ambiente, surpresos com as inéditas experiências. Isso como primeiro evento com essa intenção, de promoção da inclusão e cooperação, foi maravilhoso. A falta de prática, de base teórica, de material de consulta, nos leva a todos a construir, deliberadamente, uma sociedade excludente, que não aprendeu a cooperar. Se todos nós, professores, alunos e administradores, sempre só estudamos como usar um martelo, com todas as regras para acertar a cabeça do prego com excelência, como vamos saber fazer um bolo de chocolate? Colaborar com alguma atividade cooperativa nos parece fútil, aborrecido, inútil. Não vai ter um campeão? Não vai ter medalha? Me perguntavam as crianças.
As decisões consideradas importantes na Ágora da Grécia antiga, que eram apreciadas pelo eleitorado e colocadas em votação, eram coisas muito simples: onde vai ser a próxima festa, se o cidadão “A” seria punido por fornicar com a escrava de “B” ou qual atleta deveria ser escalado para representar Atenas nos jogos olímpicos. Atualmente, a ideologia dominante mudou radicalmente. Quando colocamos algo em votação é por assuntos mais relevantes. A história não está parada, ela não acabou. Nós determinamos o rumo que a sociedade tomará. A escravidão grega, que era lei, demorou 2500 anos para ser revogada. O sufrágio ser autorizado só para homens livres levou 2600 anos para ser questionado. Sem dúvidas temos o que aprender com a Grécia antiga. Mas quanto tempo mais demorará para percebermos que suas competições atléticas eram também aristocráticas e imorais? Não podemos refletir como modernizá-las? Acho que devemos. É utopia imaginarmos um mundo totalmente inclusivo, mas caminharmos nessa direção faz o mundo evoluir moralmente.