segunda-feira, 17 de junho de 2019


Mandarinier, Bibi e Sala Jazz Geraldo Flach

Na rua em que morei toda infância, havia um estabelecimento comercial chamado Baratilho Viamonense. O Baratilho era um pequeno armazém, mas muito sortido de mercadorias. Tinha arroz, mas também tinha anzol, vendia bolitas de gude e salame, erva mate e barbante de sisal, cachaça e nescau. Era óbvio que as pessoas que lá trabalhavam gostavam do que faziam, faziam com amor, com dedicação, pois o lugar era saboroso de visitar, cheiroso. Por uma exigência de mercado, já na minha adolescência, trocaram de nome: Baratilho já não pegava bem, virou Minimercado Viamonese. Isso me entristeceu bastante. Baratilho era um belo nome, sonoro, erudito, literário, um marco histórico, uma tradição portuguesa. Resistiu o quanto pode ao avanço do capitalismo. Com a chegada dos supermercados nos anos setenta, moda trazida dos Estados Unidos, o máximo que um armazém podia fazer para sobreviver era imitar em pequena escala.  Eu não tinha sociedade com o boteco, mas gostaria que seu pomposo nome se perpetuasse. Alguns outros nomes me impressionavam na infância, me comoviam até, ainda hoje, também me faziam repetir o nome com diferentes entonações em voz alta, para meu próprio deleite, Baratilho Viamonense era só um deles. Se eu criasse uma empresa queria criar antes um nome forte como aquele, atemporal, um nome que ficaria na memória das pessoas.
Outro exemplo de nome memorável era o da empresa de ônibus União Cascavel. Não é Belo? O li pela primeira vez quando fui visitar um primo em Rondonópolis. A linha era de Porto Alegre até Porto Velho, demorava quase três dias para chegar ao destino, mas eu desci no meio do caminho, só um dia e meio de viagem. Fiquei maravilhado com o nome da empresa. A primeira definição de empresa no dicionário é: algo que se comete com arrojo. Nada mais arrojado que atravessar um país continental, subindo no mapa em linha reta, desde zona temperada até quase o Equador transportando pessoas por estradas desertas do planalto sul-americano. Até emas eu vi pelo caminho. Que nome apropriado para alguém que quer unir o país passando por Cascavel, era muito forte: UNIÃO CASCAVEL! Eu dizia em voz alta quando entrava no ônibus, um misto de erudição com solidariedade nacional. Infelizmente, logo a empresa trocou de nome para o cafona Eucatur, também cedendo aos apelos do marketing.
Quando fui morar em Florianópolis, já viajava nos ônibus da Eucatur. Que tristeza. Mas, para minha alegria, os nomes dos bairros de Floripa eram ainda poeticamente belos, portugueses, ancestrais: Caiera da Barra do Sul, Ribeirão da ilha, Ponta das Canas. Todos lugares lindos com nomes maravilhosos. Um deles, em especial, ficava reboando na minha cabeça: Costeira do Pirajubaé. Era um lugar pobre na beira do mar e estava sendo aterrado para a construção de uma rodovia. Era deprimente ver a decadência do bairro, mas o nome fantasticamente belo e sonoro, enquanto não for trocado por algum anglicanismo da moda, redime sua vulgaridade com nobreza: COSTEIRA DO PIRAJUBAÉ. Em Floripa tinha muitos nomes no plural, não sei por quê: Ingleses, Canasvieiras, Forquilhinhas, Ratones, Naufragados. Também tinha muitos nomes que se referiam ao acidente geográfico do lugar: Cachoeira do Bom Jesus, Vargem Pequena, Córrego Grande, Lagoinha do Leste, Pântano do Sul. Logo que cheguei para morar na cidade achava alguns nomes muito engraçados: Praia Mole, Barreira do Janga, Saco dos Limões, Gruta Funda. Um local onde trabalhei tinha o nome mais suscetível de piadas de todos: Saco Grande. Como trabalhava lá, me tornei um trabalhador do Saco Grande. Como não fazer piadinhas com esses nomes? Os rapazes do Saco Grande saúdam as moças da Gruta Funda! Piadinhas à parte, o fato é que Florianópolis tem uma grande riqueza de belezas naturais com nomes que fazem jus à magnitude do belo, era uma grande inspiração para quem escreve em português.
No Saco Grande, dei aulas em três escolas diferentes e duas associações. Numa das associações, atendíamos crianças em vulnerabilidade social no contra turno da escola. Tinha dança, música e esportes para as crianças. Uma ocasião, um professor de maracatu ensinava as crianças a tocar tambores. Mas muitas crianças já sabiam tocar muito bem. Um menino pegou um tarol e, percebendo minha total ignorância, começou a mostrar seus conhecimentos. O rapaz fazia do instrumento o que queria, variava de batida a todo momento e ia comentando comigo: ó, assim é samba, assim é maracatu, assim é militar, tem também assim, viu? Ele fez em cinco minutos uns trinta toques diferentes, além de brincar completamente à vontade: jogava as baquetas para o alto, fazendo malabarismos entre uma batida e outra, deslizava as pontas de madeira na membrana a fazendo vibrar, batia na parte metálica. Ou seja, fazia uma música riquíssima, erudita até, bela, com amor, com intimidade, num instrumento que eu imaginava só fazer tuc tuc. Um guri negro, pobre, da periferia, ensinou seu professor branco que morava no centro as possibilidades musicais de um instrumento que ama. Esse mesmo menino, outro dia, me contou que tinha visitado com seu pai um outro mundo. Fiquei surpreso e curioso, como teriam viajado para lá? Então, me explicou paciente: seu pai e ele tinham subido uma trilha que cruzava por cima do morro, do outro lado se avistava o oceano e a Lagoa da Conceição onde foram pescar. Para ele, que nunca saía do Saco Grande, aquela visão era realmente de um outro mundo.
Meu Tio Luiz contava que meu avô Dante não conseguia usar canetas com ponta retrátil. Ele não tinha coordenação motora suficientemente hábil para apertar o botão e fazer a ponta parar, mas sabia escrever bem, com amor. Sou descendente dele, assim que sofro do mesmo mal. Consigo usar canetas e escrever, mas não consigo buzinar um bibi simpático. Todo mundo sabe fazer bibi na buzina do carro, mas minha pobre motricidade fina me impede de realizar tão simples tarefa. Sempre sai um biiibi irritado, um bi só incompreensível ou ainda um bibiii antipático. É terrível. Sou um desastre como tocador de buzinas ou campainhas. Imagine eu tocando algum instrumento musical! Minha maior frustração na vida é essa, sem dúvida: não sei tocar nada, nem uma flautinha doce, uma gaita de boca ou violão. Admiro muito quem o faz. Na escola, sonhava em fazer parte da banda do desfile de sete de setembro, mas falhei miseravelmente num teste para admissão. Tinha que bater: tãrãrã, tã tã, tãrãrã, tã tã, tãrãrã, tãrãrã, tãrãrã, tã tã! Mas eu só conseguia fazer uma vez certo, na segunda já me perdia nalgum tãrãrã, mesmo tendo treinado horrores. É triste ser um retardado musical.
Como meu jovem habilidoso aluno percussionista do Saco Grande, eu também tenho experimentado outros mundos recentemente. Tenho saído do meu horizonte restrito e buscado novas experiências sensoriais, apesar de minhas grandes limitações. Uma amiga empresária me convidou para conhecer um restaurante que sempre a surpreende: Mandarinier. Já gostei do nome, um bom sinal. Na porta, o menu escrito caprichosamente a giz num pequeno quadro negro, até as bolinhas nos is eram desenhadas, outro bom sinal. Só entra quem reservou lugar, o restaurante é pequeno e aconchegante, mais um sinal de qualidade. A comida é maravilhosa e realmente surpreendente, feita obviamente com amor, com capricho. Quem lá cozinha é um erudito da gastronomia, tem intimidade com a coisa. O cardápio é sempre variado, para paladares finos, que querem experimentar coisas novas e diferentes, não é para qualquer um. Tortéi com ragu de cogumelos e coalhada, creme de batata doce roxa com creme azedo e agrião, tartare de caqui, quiabo tostado, clafoutis de amora, farofa de kiwe com purê de inhame, são coisas assim que tem lá, tudo bem temperado. Não é para quem fica catando o que não gosta no prato. É para pessoas que já tem um grande repertório de sabores e querem ficar longe do arroz feijão da vida. Eu adoro ir lá, nunca sei o que é clafoutis, ragu ou tartare, mas como tudo com prazer. É um outro mundo, uma explosão sensorial de aromas e sabores, chego a fechar os olhos para poder apreciar melhor pois é uma sensação de amor.

Essa mesma amiga que me apresentou ao Mandarinier costuma ir a Sala Jazz Geraldo Flach. Minha irmã mais velha também frequenta o lugar. As duas me convidaram para assistir a um pequeno show de uma cantora riograndina. O nome do lugar já me agradou, apesar do anglicanismo, é sonoro, é poético, é respeitoso com a memória do pianista. É um espaço pequeno e aconchegante e, como no Mandarinier, só entra quem reservou lugar. Também se percebe o amor pelo belo já na porta que é pintada como teclas de piano. É surpreendente que fica num apartamento comum de um prédio residencial normal, então há um grande cuidado com o isolamento acústico da sala. Fui um pouco receoso, já que sou um cara bem manco em termos de música, nem bibi. A apresentação foi cheia de sabores diferentes para mim, longe do arroz com feijão. Teve ragu, tartare e clafoutis musicais me deixando impactado, surpreso mesmo. Não é para qualquer um, é para audiências finas. Os músicos até fecham os olhos para que o sentido da visão não interfira no da audição. O desempenho é arrojado, temperado. O corpo todo dos artistas se envolve na performance e o mesmo acontece com a plateia que se esforça, respeitosa, para não cantar ou dançar nas cadeiras. A intimidade de todos com a música de qualidade, com o belo, é evidente. Um plebeu se aborreceria ali, impaciente, porque a música é nobre, não é para quem fica catando coisinha no prato. Além do banquete musical, teve também, antes e depois, boa comida, fazendo da experiência um momento sensacional, com sons, cores, gostos e aromas maravilhosos.

À noite, depois do show, fiquei refletindo na madrugada sobre o belo que acabara de vivenciar. Lembrei do Baratilho Viamonense, da União Cascavel, da Costeira do Pirajubaé, da minha amiga empresária. Tanta coisa que aparentemente não tem nada a ver mas coloquei no mesmo balaio do belo. A sala Jazz ficou na minha memória, marcou. Lugar bem temperado, saboroso, surpreendente, sensacional. Não sei fazer ragu de cogumelos, tocar um instrumento ou cantar, nem bibi eu sei fazer, mas sei apreciar quem faz o belo e posso almejar um dia chegar lá, cometer algo com arrojo e dar um belo nome para a empresa. Não tem uma vida plena quem busca o belo e o encontra até no nome de um armazém?

domingo, 9 de junho de 2019


Quando Eduardo Cunha sabotava Dilma, foi o ministério público da Suíça quem o denunciou. Se não fosse algo de fora do Brasil ele estaria até hoje na presidência da câmara. Serviu de boi de piranha depois de tantos serviços prestados ao califado nacional. Desta vez foi um jornalista americano que denunciou Moro e Dallagnol. Caras assim não estão enrolados no cipoal de corrupção da mídia, da política, do empresariado, do judiciário e de parte do povo brasileiro. Com essa reportagem Glenn Greenwald se candidata ao seu segundo Pulitzer Prize, soltará Lula, revogará diversas outras prisões e provavelmente anulará a eleição de 2018. Moro e Dallagnol terão que ser presos, mais bois de piranha, talvez até outros membros do MP ou os desembargadores do TRF-4. Seu brilhante jornalismo revelará ao mundo o envolvimento americano no golpe e obrigará também a Globo a se explicar. Claro que sua vida está ameaçada. Quem será sua “garganta profunda”, a fonte de seus dados? Alô, próximo governo Lula: vamos acabar com a concessão pública da Globo por traição a pátria?