quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

 A competição da eleição

Foi na cidade de Atenas na Grécia antiga que inventaram a democracia. A palavra vem de “demos”, que significa povo, e “kratos”, que significa poder. Ou seja, o poder emanava do povo. Qualquer cidadão podia propor problemas para debate e todos votavam na melhor solução exposta, aquela com a maioria dos votos ganhava. Ou seja, se realizava uma competição de ideias. O proponente falava em voz alta, no meio da plateia, o problema e sua proposta de solução, outras pessoas poderiam oferecer soluções alternativas àquela, no entanto, a decisão eleita como a melhor pela maioria era soberana e obrigatoriamente seguida por todos. Claro que, naquele tempo, esse sistema de tomada de decisão para o funcionamento da “polis”, cidade em grego, era muito embrionário e cheio de erros grosseiros aos olhos de hoje. Mulheres e pessoas escravizadas, por exemplo, não eram considerados gente, eram objetos negociáveis e sem direitos, como casas ou carretas, portanto, não faziam parte do povo e não tinham direito a falar ou votar na “ágora”, palavra que significa reunião ou assembleia. Somente uma pequena elite dominante, os homens livres nascidos na cidade, podia participar do processo. Isso significava menos de 10% da população, era um sistema aristocrático. Absolutamente qualquer assunto poderia ser colocado em votação por qualquer eleitor, inclusive assuntos estapafúrdios como qual o melhor tempero para salada da próxima festa na casa do Jorginho, qual atleta de arremesso de disco deveria ser o representante da cidade nos jogos olímpicos ou se o Vanderlei era mesmo o melhor flautista da cidade. Sim, eram nesse nível os assuntos propostos pelos eleitores atenienses. Um assunto, por mais idiota que fosse, poderia se tornar público e digno de apreciação por toda polis se proposto como tema de debate na ágora. Mas, perceba que dificilmente alguma pauta do interesse dos dominados seria colocada em debate, os dominantes é que determinavam o que seria apreciado nas assembleias. Naturalmente, esse sistema tinha críticos. Platão, o grande filósofo, talvez seja o mais conhecido deles. Na hora de defesa de seus pontos de vista, Platão não tinha a mesma eloquência de outros oradores e perdia no gogó, era um notório derrotado nas votações. Toda sua obra, de certa forma, é um grande deboche a democracia. Ele acreditava que os eleitores eram muito ignorantes e facilmente enganados por retóricas apelativas para o senso comum. Se algum bom orador surgisse com uma polêmica na hora das votações, ainda que falsa, a ágora se inflamava e votava contra propostas mais sensatas e em favor do polemizador. Bons oradores eram contratados por muito dinheiro por quem queria ver sua proposta eleita e obedecida por todos. O principal personagem dos diálogos de Platão era Sócrates, um homem muito feio, pobre e fedorento, que andava descalço e maltrapilho, mas que questionava inteligentemente os mais famosos e bem pagos oradores da ágora, os colocando questões constrangedoras que não sabiam responder. Platão queria provar, que mesmo os maiores vencedores de votações na ágora, eram ignorantes em assuntos pertinentes. Junto da democracia, surgiu a indústria da manipulação do povo. Mesmo com todos esses poréns, a ideia de democracia, onde cada pessoa valia um voto, era uma grande evolução diante de outras formas ancestrais para tomada de decisões existentes até então. A regra mais comum da época era que o poder vinha de um chefe tirano, filho do antigo chefe já morto. O poder costumava ser hereditário.  

Qual seria o sexo dos anjos? O debate sobre essa questão tomava o tempo de grande parte da intelectualidade europeia durante a idade média, mas hoje em dia não tem mais tanta importância, sumiu da pauta das decisões a serem tomadas, pois era um falso debate, sobre coisas irrelevantes. Algumas outras perguntas clássicas que pareciam já ter sido respondidas pela humanidade ensaiam uma volta: a Terra é plana? As ideias humanas vão evoluindo, nem sempre em direção a sensatez. Quando criança, visitei com a escola o Palácio Piratini e o Museu Júlio de Castilhos na rua Duque de Caxias em Porto Alegre. Na garagem do museu, havia uma carruagem em que o cocheiro ia sentado logo atrás dos cavalos, numa tábua no lado de fora, já o privilegiado passageiro ia abrigado dos humores climáticos numa cabine com janelas e portas envidraçadas, com cortininhas e bancos estofados em couro. Li na plaquinha explicativa que se tratava de um “landau” de uso exclusivo do próprio Júlio, então presidente do estado. O landau me impressionou, na época admirava muito um carro produzido pela Ford que tinha exatamente esse nome, cinco vezes mais caro que a Brasília amarela de meu pai. Entendi o significado daquilo, ter um landau era um privilégio de poucos, veículo digno de finos aristocratas, obviamente isolados fisicamente da plebe rude que tomava chuva na cabeça. No entanto, um Ford Landau era mesmo um grande avanço para uma sociedade melhor em relação àquele de Júlio. Era um veículo muito mais rápido, não exigia maus-tratos aos animais, não defecava ou urinava nas ruas, não fedia a suor, não sapateava cascos ferrados em pedras de granito do calçamento sendo muito mais silencioso, além de ser uma grande concessão da elite dominante com o condutor, um avanço social, pois o motorista ia dentro da cabine e também usufruía dos seus confortáveis bancos em couro, telhado, janela envidraçada e até ar-condicionado. Na minha cabeça de criança, os problemas humanos estavam todos equacionados com aquele carro. Felizmente, há muitos anos a Ford tirou o Landau da linha de produção porque consumia gasolina como uma plataforma de petróleo em chamas, era muito inseguro em caso de acidente, além de que aristocratas com motorista começaram a ficar mais raros e politicamente incorretos. As inquietações humanas mudam conforme avançam as técnicas e as dinâmicas sociais. Discussões sobre o sexo dos anjos foram soterradas para dar lugar a debates sobre direitos humanos e trabalhistas, preocupações ambientais ou até mesmo direitos dos animais.

No tempo em que os landaus de Júlio de Castilhos eram feitos por marceneiros habilidosos, não existiam cintos de segurança para os passageiros do veículo. Já quando a Ford produzia os seus em série, cintos de segurança começaram a ser oferecidos como opcionais que encareciam os carros, muita gente os dispensava na hora da compra, pois não havia legislação para punir que não os usava. Hoje em dia, temos um alarme se os cintos de segurança obrigatórios não estão afivelados mesmo num carro popular. Além deles, existem muitos outros sistemas eletrônicos de segurança que foram sendo desenvolvidos, como airbags ou freios ABS, todos para proteger os passageiros dos erros dos próprios motoristas ou de outros veículos. São todos recursos obrigatórios, não se vende mais automóveis sem eles, pois as estatísticas provam que para sociedade sai mais barato pagá-los na fabricação dos veículos do que arcar com despesas médicas depois. A história provou que os mecanismos de segurança são necessários para proteger as vidas da própria estupidez humana. Futuramente riremos da segurança dos carros atuais, assim como achamos engraçado a fragilidade da tábua em que sentava o cocheiro no landau de Júlio. A brutalidade da diferença social que aquele assento denuncia, também será destacada como absurda. No entanto, se questões sobre a obrigatoriedade dos acessórios de segurança fossem colocadas para o povo decidir numa eleição, muito provavelmente decidiriam por carros mais baratos e sem tais equipamentos, também não veriam problemas em o motorista ir na chuva, desde que a cabine do dono fosse protegida da intempérie. O eleitor médio não tem os conhecimentos necessários para saber da magnitude da importância coletiva dos acessórios de segurança. Enquanto foram opcionais, airbags e freios ABS foram sempre preteridos em favor de carros mais baratos.

Já está claro, para quem pensa o setor, que os automóveis não poderão ser guiados por seres humanos, essa mudança já está em curso, porque errar é humano. Os carros autônomos já estão sendo desenvolvidos com sucesso, as máquinas podem ser projetadas para conduzir o veículo com muito mais segurança: um computador não sente sono, não bebe, não se distrai, não se irrita, não se apressa, não se perde, não sente raiva, não tenta se vingar de uma fechada no trânsito, não esquece a necessidade de manutenção, não acende um cigarro, não precisa olhar para trocar uma música na playlist e não para na beira da estrada para um xixi. Essa ideia de um computador nos guiar por aí parece bizarra agora, mas pense bem: atualmente, ninguém refaz no papel as contas que uma calculadora eletrônica realiza para ver se realmente estão certas. Já confiamos cegamente no resultado apresentado no visor da máquina. Ninguém mais escreve uma carta, põe num envelope e posta no correio. Mandamos mensagens eletrônicas e confiamos que quem responde realmente é nosso interlocutor humano, o computador não está inventando as respostas. Médicos tomam decisões observando exames feitos por máquinas que nem precisam entrar nos nossos corpos para diagnosticar problemas de saúde. Falta pouco tempo para o próprio médico ser substituído por uma máquina, como nos alerta o historiador israelense Yuval Noah Harari, pois as máquinas também podem aprender a observar padrões nos exames. Aliás, poderão fazer isso com muito mais precisão que um falível ser humano.

Mesmo Platão, pensador genial que ainda é estudado 2500 anos depois de sua morte, não via problema em mulheres serem excluídas das votações ou a existência de pessoas escravizadas. Em nenhum momento, ele propôs mudanças sociais no sentido da inclusão desses dominados no processo decisório da ágora. Ao contrário, ele defendia que assim seria o certo para a ordem cósmica funcionar direito. Por fazer parte da elite dominante, jamais lhe ocorreria propor o fim desses absurdos morais. Se você não sente algum desconforto nas relações sociais, obviamente não é um dominado, nunca proporá mudanças. Porque? A vida está boa para você, já que é um dominante. Mas, vamos fazer um exercício mental imaginando que Platão ou algum outro cidadão ateniense propusesse a inclusão das mulheres e escravizados. A proposta não seria nem colocada em debate, pois o organizador da pauta do dia na ágora não permitiria. E, ainda que tal proposta fosse colocada em votação, perderia de goleada. Por quê? Ora, basicamente porque seria como perguntar: Você quer ter igualdade de direitos com seus dominados? Você quer deixar de ser dominante? Não, seria a resposta óbvia. Mas essa pergunta jamais foi formulada por qualquer grego e os privilégios se perpetuaram através dos séculos. Platão só era contra a democracia porque percebia que o sistema colocava a responsabilidade da decisão do que é melhor para a polis nas mãos de pessoas que não eram preparadas para tal, ignorantes. Aí está o que é a democracia.

Demorou 2500 anos, desde a criação desse sistema decisório, para a escravidão entrar em pauta e ser finalmente reconhecida como abjeta, mais tempo ainda para que pessoas pobres e sem posses pudessem votar e as mulheres foram as últimas a entrar no sistema como eleitoras aptas. No Brasil, somente em 1932, mulheres adquiriram o direito ao sufrágio depois de muita luta, porém, somente com o consentimento por escrito de seus pais ou maridos. Aparentemente, agora que os dominados estão incluídos no sistema e podem propor pautas para apreciação pública, o sistema está perfeito. Esse pensamento está tão equivocado como minha crença infantil que o Ford Landau equacionou os problemas sociais ao oferecer abrigo ao motorista ou que tenha resolvido os problemas de poluição tirando bosta e xixi de cavalo das ruas. Os eleitores ainda se inflamam na hora das eleições com falsas polêmicas, os temas pautados para apreciação nas assembleias muitas vezes não são relevantes, e, principalmente, a manipulação das opiniões grassa. Na eleição para presidente de 2018, Jair Bolsonaro, militar aposentado aos 33 anos por problemas mentais, era sem dúvida o menos preparado dos candidatos, ele mesmo admitia sua ignorância em relação a assuntos importantes como economia e relações internacionais durante a campanha. Mesmo assim foi para o segundo turno contra Fernando Haddad, mestre em economia e doutor em filosofia. Bolsonaro ganhou as eleições basicamente assustando o eleitorado dizendo que se Haddad fosse eleito, kits gay seriam distribuídos nas escolas para que as crianças virassem homossexuais e mamadeiras de piroca seriam distribuídas nas creches para que os bebês já fossem se iniciando sexualmente. Apesar de patéticas, essas alegações pautaram o debate da população e foram decisivas no resultado do pleito. Em outro caso conhecido, Manuela D’Ávila liderava as pesquisas para prefeito de Porto Alegre, mas, nas últimas semanas antes da eleição, brotaram boatos de que ela ofereceria carne de cachorro para a alimentação das crianças nas escolas e transformaria a cidade numa Venezuela. Assustada, a população votou no outro candidato, Sebastião Melo, tido como menos preparado pela imprensa local. Por mais que os boatos sejam uma galhofa ridícula, o povo não consegue distinguir o que é verdade do que é invenção. Não que o povo seja incapaz para decidir, mas sim porque ignora as verdadeiras propostas de cada candidato e suas consequências. Por mais que haja tempo para campanha, o eleitor médio está ocupado demais com seus afazeres para prestar a atenção devida ao debate. João, que trabalha no posto de gasolina, chega em casa exausto e não quer refletir sobre educação das crianças que ele nem tem. Maria, que sustenta sozinha seus dois filhos fazendo faxinas, ao chegar em casa ainda tem que preparar a janta para a família, nem tem tempo para pensar nas relações internacionais. Agora quem vota não são aristocratas que não trabalham e podem dedicar algum tempo para refletir sobre os destinos da polis. As demandas são tão diversas, que atualmente a democracia não é mais direta, mas sim representativa. Elegemos pessoas que pensam parecido e delegamos a elas o direito de decidir por nós, inclusive pagando salários para que se dediquem a isso. Ninguém que trabalha quer ficar refletindo sobre profundas questões econômicas, sociais, ambientais ou políticas, a reflexão pode se tornar filosoficamente exaustiva. Além disso, a população atual de eleitores aptos a votar em algumas cidades e países é tão maior que na antiga Atenas, que é impossível reunir todos em assembleia. Assim as possibilidades de manipulação aumentaram muito. Polemizadores com eloquentes discursos, exatamente como aqueles da ágora, são eleitos representantes. Depois de 2500 anos, o sistema não evoluiu muito, Platão diria que está até pior: aumentou a massa de ignorantes manipuláveis aptos a votar.

O grande problema de uma eleição é que se trata de uma competição. O sistema não prevê a construção de um consenso, mas sim a derrota de muitas propostas em favor de uma. A previsão de um segundo turno agudiza a competição, proporciona terreno fértil para conchavos de toda ordem e uma grande polarização ideológica. O sistema como está desenhado atualmente desenvolve e aduba o ódio na sociedade. Esse problema, ao longo dos séculos, só vem aumentando. Os esportes são uma grande ferramenta da elite dominante para se perpetuar no poder, solidificam no imaginário popular a justiça do sistema: é normal que muitos saiam derrotados e somente um seja vencedor. Não é por acaso que os esportes tenham papel tão importante na sociedade atual. Servem para ensinar a lei da selva ao povo: o melhor vence. O resto que resigne-se a derrota. Perceba que os dominantes de determinada modalidade são sempre os mesmos. Como exemplo, examinemos as regras dos campeonatos de futebol no Brasil. Os times da série A do brasileirão são quase sempre os mesmos. A regra determina que somente quatro dos vinte times cairão para segunda divisão no ano seguinte. Coincidentemente serão os quatro que geralmente retornam a primeira divisão depois de uma rápida punição de um ano. A estabilidade dos participantes da série A é notável. Dominante não quer deixar de ser dominante, portanto cria regras para que se perpetuem no poder. Há um belo discurso, que as regras são justas, que qualquer time do Brasil pode participar por seus méritos, mas a realidade é diferente do discurso. Os times que estão próximos ao grande manancial de dinheiro da série A são sempre os mesmos e isso proporciona comprar os melhores jogadores para que obtenham melhores resultados. É um circulo vicioso planejado para parecer justo. O povo cai direitinho nessa conversa manipuladora de eloquentes oradores que ganham farto tempo para discursar em todas as mídias possíveis. O próprio fato de os jogadores serem negociados como coisas, são “comprados”, já denuncia a perversidade corrupta da atividade. Mas o povo não só está acostumado com isso e aceita como justo como aplaude em pé e até colabora com dinheiro para que as coisas fiquem como estão.

O povo é dominado e facilmente manipulável pela elite, pois não tem tempo para filosofar sobre coisas reais. As mídias enchem as cabeças da população com debates intermináveis sobre questões absolutamente irrelevantes: a falta foi dentro ou fora da área, o Grêmio deveria escalar o Joelson no lugar do Bita? O novo técnico do Inter vai conseguir reverter a situação ruim no campeonato? Programas esportivos são colocados nos horários nobres, coincidente com a folga da classe trabalhadora, nas noites ou finais de semana. Quem trabalha não pode ficar gastando energia em reflexão em coisas pertinentes se está tão atarefado decidindo questões em falsos debates que preenchem suas mentes. Em todos os telejornais, jornais impressos, programas de rádio, sites de notícias, os espaços para o esporte são fartos. Se você notar, no início de uma transmissão de um evento esportivo, o narrador sempre faz questão de dizer que aquela é uma partida “muito importante”. No entanto, uma análise fria revela que qualquer partida só tem importância para a elite dominante ir passando a boiada por gerações enquanto João e Maria são distraídos para refletir sobre futebol ou outro esporte qualquer. Antônio Carlos Magalhães herdou o poder na Bahia e ficou nele até a morte quando cedeu o cetro para seu neto. José Sarney, no Maranhão, não larga o osso há 65 anos e seus filhos estão na política também. Os Amin e Borhausen em Santa Catarina. No Brasil inteiro as oligarquias se perpetuam no poder assim como o Flamengo ou o Corinthians no futebol. O poder acaba sendo hereditário, como antes da democracia ser inventada. Apesar de as regras democráticas preverem fim do mandato, os dominantes as criam de forma que se perpetuem no poder com um verniz de acaso ou meritocracia, assim como no futebol. Vereador vira deputado estadual, que vira federal, que vira senador, que se elege prefeito, depois governador e então tenta a presidência e lá se foram sessenta anos e seus filhos já são deputados. História comum que a regra permite. Nos Estados Unidos, mais de uma vez o mais votado não foi o eleito. Hillary Clinton foi a mais votada quando Trump se elegeu, porque a regra das eleições foi escrita de forma bizarra para garantir que sempre os mesmos oligarcas ficarão no poder. Em Osório, a mesma coisa. O sétimo vereador mais votado nas últimas eleições foi uma mulher negra, mas ela não se elegeu, porque a regra maquiavelicamente é desenhada para que os mesmos de sempre estejam na câmara. Somente homens brancos ocuparam as nove vagas. João e Maria são barbaramente manipulados a acreditar que as coisas só podem ser assim, já que sempre foram. Os próprios dominados, incrível fenômeno antropológico, seguem votando para ser governados pelos mesmos dominantes de sempre.

Platão admitia que a democracia pudesse funcionar somente se os eleitores passassem por uma escola de filosofia política, ética e cidadania. Ele argumentava, através de seu alter ego Sócrates, que ninguém quer uma pessoa ignorante no comando de um navio. Para que o navio chegue ao seu destino em segurança, é bom que o capitão seja uma pessoa instruída em navegação. A analogia é boa: Quem decide os destinos de uma cidade tem que ser uma pessoa especializada em administração pública, não qualquer um. Aqui no Brasil, de dois em dois anos temos um pleito em que qualquer um tem que decidir qual a melhor proposta para governar a cidade, o estado, o país, mas esse qualquer um não tem a menor ideia de qual seria a melhor e muitas vezes erra elegendo aberrações como o palhaço Tiririca ou o goleiro Danrlei como representantes. Quando o voto era por escrito, o rinoceronte Cacareco teve quase cem mil votos para vereador em São Paulo em 1959. Sério. Claro que a democracia com a qual Platão lidava no cotidiano e planejava para o futuro era como aqueles landaus de madeira de Júlio de Castilhos, onde os servos vão segregados dos aristocratas. Ele nem teve a oportunidade de conviver com democracias Ford Landau em que o motorista tem direito a usufruir dos mesmos confortos do patrão e mulheres e empregados votam, mas gastam muita energia. A democracia evolui, assim como os veículos de transporte de passageiros. Platão não podia imaginar, com as técnicas que existiam então, uma democracia autônoma, cheia de equipamentos de segurança, um algoritmo cibernético de decisão da polis que protege os cidadãos de seus próprios erros. Atualmente a técnica pode produzir um super computador que decida sem a necessidade de uma fratricida competição eleitoral. Basta programá-lo com as leis da robótica de Asimov e alimentá-lo com os dados do local. As instruções do programa são que as riquezas produzidas pela coletividade tem que garantir igualdade de acesso a casa, alimentação, educação, saúde, transporte, segurança, sossego, preservação da natureza e demais necessidades para todos e o excedente ser investido em demandas de ocasião do povo. Uma máquina assim instruída gerenciaria com tranquilidade a sociedade, não haveria pobreza, diferença social, acabariam os privilégios e a criminalidade seria quase zero. A máquina não se corrompe, não tem amigos ou parentes que queira beneficiar, não dorme, não cansa, não tem vícios nem ambições, não se inflamava com assuntos estapafúrdios. Numa situação como a da atual pandemia, que para um ser humano é difícil de lidar, pois nunca viveu, a regra da programação protegeria a coletividade em favor de apetites individuais, a vacinação seria obrigatória para todos por que a doença ameaça a coletividade. As máquinas sempre foram ótimas para resolver problemas mundanos com muito mais eficiência e rapidez que nossos melhores esforços. Qual ferramenta você prefere para cavar uma vala de um metro de fundura e vinte metros de comprimento: uma pá ou uma retroescavadeira? Big data é o futuro das cidades, sem competições, sem eleições, sem dominantes nem dominados. Lembrei agora da música Imagine de John Lennon, filósofo que morreu há quarenta anos, não da República de Platão, que morreu a 25 séculos.

 Imagine

Imagine que não existe paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum inferno sob nós
Acima de nós apenas o céu
Imagine todas as pessoas
Vivendo o presente

Imagine que não há países
Não é difícil de fazer
Nada por que matar ou morrer
E nenhuma religião também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz

Você pode dizer que sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Torço pra que um dia você se junte a nós
E o mundo viverá como um só

Imagine que não existam propriedades
Será que você consegue?
Sem ganância ou fome
Uma fraternidade do Homem
Imagine todas as pessoas
Compartilhando o mundo inteiro

Você pode dizer que sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Torço pra que um dia você se junte a nós
E o mundo viverá como um só


  • 1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
  • 2ª Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que entrem em conflito com a Primeira Lei.
  • 3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.
  • Mais tarde Asimov acrescentou a “Lei Zero”, acima de todas as outras: um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

 

Lições de um sonho apocalíptico

Uma ocasião, li a entrevista de Francis Ford Coppola, o premiado cineasta americano, célebre por ter dirigido filmes que problematizam e revisam historicamente mazelas sociais como a máfia (O Poderoso Chefão, 1972), a guerra (Apocalypse Now, 1979), a marginalidade (O Selvagem da Motocicleta, 1983) e até mesmo as histórias de terror (Drácula de Bram Stoker, 1992). A conversa passava longe de seus filmes, ele discorria sobre os avanços da democratização do conhecimento através da internet. Numa época que ainda não existiam Facebook ou mesmo YouTube, ele previa que a popularização dos equipamentos conectados a rede poderiam tornar “tudo, acessível a todos, todo tempo”. Aquela frase me impactou muito e, apesar de incrédulo, a levei em consideração seriamente. Acreditei que tal previsão era para um futuro muito distante, mas quando ocorresse realmente, tudo seria maravilhoso, o mundo avançaria muito rápido para uma fraternidade global. Fiquei esperançoso, pois, nos seus filmes, Coppola sempre denunciou que a história é a prova de como a humanidade se transforma num oceano revolto por corrupção, violência e dolorosa agonia, esse filme de terror que estamos tão habituados a vivenciar.

Coppola tem muitos parentes na indústria cinematográfica. Uma filha, uma neta, uma irmã e também um sobrinho, nem todos com o mesmo talento. O sobrinho se chama Nicolas Kim Coppola, mas adotou o nome artístico de Nicolas Cage. O menino teve uma infância difícil, sofreu com família desestruturada: a mãe separada passava muito tempo internada em hospitais psiquiátricos tratando um transtorno bipolar intenso. A carreira como ator reflete isso, Nicolas alterna Oscars com Framboesas de Ouro. Obviamente, em algum momento Cage “encontrou Jesus”, pois muitos de seus filmes são propagandas religiosas disfarçadas. Em “Cidade dos Anjos”, de 1998, Cage vive um anjo que tem a função de levar as almas dos mortos e encaminha-las para reencarnação. Já no filme “Presságio”, de 2009, vive um matemático da melhor instituição de ciência americana que mimetiza a busca de outros grandes pensadores da história como Isaac Newton ou Johannes Kepler. Os dois, físicos revolucionários que dedicaram toda sua vida para decifrar a linguagem de Deus, a matemática. Acreditavam que, por ser perfeita, a ciência dos números era o único elo acessível ao ser humano para falar com Deus. Se bem estudada, poderia descrever o passado e prever o futuro com exatidão. Nesse filme, o protagonista consegue chegar à fórmula para entender Deus. Ainda que não fale uma única vez o nome de sua crença, há uma ideologia religiosa evidente que tenta se mostrar neutra. Cage só sai do armário religioso descaradamente em 2014, no filme “Apocalipse”. Nessa obra, as cores do quadro cristão são ainda mais carregadas, onde o ator vive um adultero pecador arrependido. Aqui, Cage parece assumir finalmente sua ideologia e afinamento com as Testemunhas de Jeová, mas em nenhum momento do filme isso é dito, somente “provado” com os “fatos” retratados no filme depois do arrebatamento previsto por aquela religião.

Passados quase vinte anos de que li aquela entrevista, a profecia de Coppola parece estar muito próxima de se concretizar. Os aparelhos celulares são relativamente baratos e o acesso a internet se popularizou dramaticamente. O conhecimento acumulado pela humanidade realmente está disponível na palma da mão para quem quiser a qualquer momento. Porém, a fraternidade universal que imaginei ainda está muito distante. Os saberes que seriam pertinentes para tal realização humana não são os mais procurados nas páginas da rede. Eu mesmo posso ilustrar o verbete da pesquisa sobre um típico internauta: vagueio a esmo entre testes de motocicletas europeias e gordas nuas. Há muito me indicavam uma série do ciberespaço que acreditavam que apreciaria. Mais de uma pessoa salientava que “Merli” era minha cara! Resisti e esnobei arrogantemente o professor de filosofia catalão, nem cliente de serviços de streaming eu era. Mas, com a pandemia do novo vírus corona, depois de ler “A peste”, de Camus, rachar muita lenha, cozinhar e lavar louça, planejar atividades on line para meus alunos, penei com o tédio e percebi a depressão começar a se enrolar nas minhas pernas devido ao isolamento social. Capitulei, assinei Netflix e assisti um episódio atrás do outro, como um fumante viciado, acendia um no toco do outro. Em pouco tempo, consumi e me emocionei com as três temporadas da série ficando com síndrome de abstinência de aulas de filosofia. Em cada capítulo, o professor Merli ensinava sobre um pensador diferente. A aula que mais me chamou a atenção foi a do inglês Adam Smith, que reflete sobre a competição, assunto que me é muito caro por força do ofício que exerço. Pelo menos na Catalunha, ficou claro para mim, os bons professores de filosofia se empenham em garantir que adolescentes aprendam que competições são abjetas e devem ser combatidas com amor, solidariedade e inclusão, o contrário da lei da selva proposto pela mão invisível da ideologia capitalista.

Logo depois de Merli, passei a varar madrugadas assistindo “Rita”, outra série sobre escolas públicas de países desenvolvidos. Eu que também sou profissional da educação, sadicamente me delicio satisfeito olhando aquela professora dinamarquesa sofrendo com as mesmíssimas dificuldades pelas quais passa um funcionário público subdesenvolvido tupiniquim. Legislações que engessam a ação pedagógica, chefias castradoras, enormes limitações financeiras, colegas de trabalho invejosos e traidores, alunos mal educados, pais absolutamente ignorantes e invasivos, interesses políticos que se sobrepõe as deliberações técnicas, homofobia, racismo, agressões físicas e verbais até contra profissionais, bulling sobre os incomuns, consumo de drogas entre os estudantes, alcoolismo da protagonista, a dificuldade de inclusão dos especiais, assédio sexual, a ansiosa espera pela aposentadoria dos professores mais velhos, famílias desestruturadas e até epidemia de piolhos são retratados com fidelidade. É até reconfortante para um docente brasileiro saber que na Dinamarca, um dos países mais desenvolvidos do mundo, praticamente as mesmas mazelas sociais assolam as instituições de ensino. De novo, o episódio que mais me causou reflexão foi o que debate as competições. Fica claro que há um grande cuidado dos professores para evitar a selvageria na prática dos esportes através das regras impostas aos adolescentes durante os torneios. O personagem principal, a professora Rita, sempre retratada como politicamente incorreta e com um passado familiar terrível, se atira as competições com uma gana feroz e incita seus alunos a massacrar os adversários, contrariando o diretor e sua supervisora. Mas a série evidencia que o cuidado solidário com os menos favorecidos, o contrário do que seria uma competição social, ou o livre mercado, permite a recuperação e reinserção dos socialmente vulneráveis como até mesmo a trajetória da própria professora Rita retrata.

Minha namorada, sabedora de minhas inclinações, me indicou um filme alemão, de 2011, disponível na integra no YouTube e totalmente legendado em português sobre a introdução do futebol na Alemanha em meados do século dezenove cujo título em português é “Lições de Um Sonho”. A obra ilustra bem a educação formal das escolas naquela época e em especial a Educação Física. Ginástica calistênica, castigos físicos, o descarado ensino da guerra como a coisa mais honrada que um cidadão do Império Alemão poderia ansiar viver, nada de mulheres na escola, a firme determinação de excluir os pobres do ensino formal. Mutilados de guerra são trazidos para dentro da sala de aula, palestrando e motivando os adolescentes a entender a nobreza do sacrifício do corpo de um indivíduo em batalha para o bem do coletivo da pátria. Nesse contexto, um jovem professor alemão, mas que viveu três anos na Inglaterra, país inimigo da Alemanha, é contratado experimentalmente para ensinar a língua e a cultura inglesa para os adolescentes. Após a resistência dos alunos em aprender o idioma bretão, pois entendem que logo seria uma língua morta diante do poderio militar alemão, o protagonista ensina o futebol, esporte recém-sistematizado nas ilhas britânicas. Aqui fica tão evidente o posicionamento ideológico do filme quanto no Apocalipse de Nicolas Cage. Há uma clara pregação, quase religiosa, do roteiro, “provando” que os dogmas esportivos são uma panaceia social para integrar as nações e resolver conflitos de forma amistosa e divertida. O professor, seus alunos e sua nova paixão, o fussball, são perseguidos e proibidos como coisa subversiva à ordem. Ao final, claro, há uma espécie de “arrebatamento” dos puros de alma com a prova de que os praticantes do esporte seriam uma casta moralmente mais sofisticada que pode elevar a civilidade da nação á um nível muito superior. Até os pobres e gordinhos são incluídos e reconhecidos como capazes. É um verdadeiro milagre divino! Os créditos nos ensinam que a história é verídica e que aqueles “fatos” teriam mesmo ocorrido e, depois daquele professor pioneiro, o futebol se disseminou por toda Alemanha, até ser finalmente permitido na Baviera, ultima província alemã a sucumbir à sedução do futebol, apenas em 1927.

Para este professor de Educação Física que vos escreve, caro leitor, parece evidente que, no longo processo civilizador pelo qual atravessa a humanidade na sua experiência na Terra, os esportes tiveram papel fundamental para afastar o ser humano da sua animalidade, colocando regras e limites nos conflitos, retirando a morte e as mutilações como coisas normais do cenário social. No entanto, não são um fim em si, mas um meio, uma ferramenta necessária numa etapa intermediária na construção de uma civilização humana igualitária, fraterna e socialmente justa. No meio do século XIX, quando surgiram os esportes modernos estimulados pela revolução industrial, o conhecimento era produto consumido somente por uma elite, mulheres eram coisas negociadas em troca de terras ou dotes, nem sequer votavam, os pobres não tinham direito a educação ou saúde, negros, asiáticos e indígenas eram escravizados nas colônias exploradas sob coerção de armas de fogo. O mundo era completamente diferente do atual, tínhamos um bilhão de habitantes no planeta e agora somos oito bilhões, os recursos naturais são finitos e não há mais territórios inexplorados. O passado é tão moralmente vergonhoso aos olhos do cidadão do mundo atual para algumas nações e castas sociais, que ações afirmativas se fazem necessárias para reparar os abusos cometidos com os oprimidos ao longo da história.

O livro Drácula, escrito pelo irlandês Bram Stoker em 1897, conta a história de um nobre Romeno da região dos Carpatos que renega a igreja católica por essa se recusar a enterrar em solo sagrado sua amada por não ser cristã, sendo então amaldiçoado a não morrer. Artistas como Coppola e Stoker, denunciam inteligentemente injustiças sociais praticadas por um status quo opressor e cruel. Suas obras trazem à luz mazelas sociais importantes que precisam ser debatidas e resignificadas, não podem cair no esquecimento. O código de ética humano é reescrito toda vez que lumiares assim nos fazem refletir. Fico feliz ao perceber que nas sociedades mais desenvolvidas como aquelas retratadas nas series da Netflix, Merli e Rita, as competições já são tidas como nefastas ao bem comum das sociedades catalã e Dinamarquesa. No entanto, fico triste ao perceber que obras muito contemporâneas como os filmes Apocalipse e Lições de Um Sonho, ainda pregam o fundamentalismo dogmático de ideologias conservadoras e representantes de um passado cruel. Por mais que a Globo e seus esportes, ou a Record e seu cristianismo, tentem nos convencer do contrário, o código de ética humano tem que ser reescrito de forma laica, sem as leis de qualquer deus e sem a lei da selva das competições capitalistas. Temos todo o conhecimento humano na palma de nossas mãos agora, como previu Coppola no começo dos anos 2000, precisamos estudá-lo e usá-lo para construir um mundo solidário e cooperativo, respeitador das diferentes crenças, do meio ambiente e de toda diversidade sexual e étnica humana. Coragem, companheiros, pois o processo civilizador fabrica muitos mártires.

quinta-feira, 25 de junho de 2020


Linha de frente
Agora, com a pandemia provocada pelo novo vírus corona, muito se fala dos heroicos combatentes da “linha de frente” na “guerra” contra a doença Covid-19. Os profissionais da saúde estão sendo muito valorizados, são homenageados com salvas de palmas das sacadas dos edifícios nas grandes cidades, as mazelas da profissão estão sendo debatidas em público até em telejornais. Péssimas condições de trabalho, baixos salários, falta de leitos, insuficiência de insumos para cuidados básicos de higiene e equipamentos de proteção são coisas que escandalizam toda a sociedade. Não é mais um assunto relegado aos vestiários de hospitais, no momento de troca de plantões. Todos estão percebendo que precisamos atirar dinheiro na cara daqueles trabalhadores para que saiamos vivos dessa. Percebeu-se rapidamente que a “PEC do fim do mundo” do início do governo Temer, que congelava os investimentos em saúde e educação por vinte anos, foi um equívoco brutal. Além das dificuldades dos complexos problemas técnicos envolvidos no cotidiano dos atendimentos à saúde que há três anos e meio estão sem qualquer atualização, coisas que exigem muito treinamento e conhecimento, alguns trabalhadores ainda têm que enfrentar arroubos ideológicos dos usuários do serviço. Verdadeiros “donos da verdade”, formados no Whatsapp e no Twitter, se acham no direito de receitar remédios, prescrever tratamentos, invadir locais de trabalho, tumultuando a já complicada situação. O resultado são profissionais ainda mais estressados, adoecendo eles mesmo, causando baixas nesse “exército” de combatentes.
Estou na décima quarta escola da minha carreira docente, em todas em que trabalhei o primeiro ano foi sempre de muitos atestados médicos para mim. O trabalhador da educação pega todas as doenças existentes na comunidade, até ficar imune a toda fauna e flora bacteriológica e virótica do lugar. Ficamos na maior parte do tempo confinados em salas apertadas, sem máscara, com mais de vinte crianças vindas de diferentes famílias, respirando, espirrando, tossindo, assoando narizes e, na educação infantil, até limpando urina, fezes, vômito, baba e restos de alimentos de pequenos corpos, muitas vezes febris ou diarréicos. Também costumamos limpar cortes, ralados e edemas das crianças que se acidentam. Nos casos mais graves, chamamos os pais para que encaminhem a criança para um serviço especializado de saúde. Mas, geralmente são os professores e auxiliares da educação que manejam a saúde da criança. E o fazemos com muito carinho, abraços, beijos e conversas ao pé do ouvido, pois a saúde não é só física, mas também mental, social, espiritual e ambiental. Muitas crianças só encontram um ambiente limpo, uma alimentação saudável e uma relação afetiva positiva na escola. Ouso dizer que nós é que somos os profissionais da “linha de frente” da saúde e quando alguma criança está com a sua muito ameaçada, encaminhamos pra os profissionais da doença.  
Há uma piadinha muito popular nos corredores de escolas públicas brasileiras – Tem duas coisas que professor pega pelo menos uma vez por ano: piolho e empréstimo. – O chiste é bastante revelador da condição de vida que o trabalhador da educação está imerso. Das profissões que exigem formação superior, o magistério é talvez a menos valorizada. Como sou um digno representante da categoria, exerço a profissão quarenta horas semanais, posso falar com propriedade: somos pobres. Moramos nas periferias, lá onde o estado se ausenta, onde não há policiamento, iluminação pública, calçamento ou postos de saúde. Somos a casta magnata da favela, vizinhos de nossos ainda mais pobres alunos. A maioria de nós “prefere” andar de ônibus, pois a prefeitura ou o estado patrocina o vale transporte. Porém, isso só é possível quando temos a sorte de pegar as quarenta horas na mesma escola, o que é raro. Normalmente, o professor gasta o horário do almoço para se deslocar de uma escola para outra, em periferia ainda mais longe. Para isso temos que apelar para veículos individuais, pois não há ônibus que ligue as duas escolas, pena que tal luxo o poder público não se incomoda em ajudar a pagar. Comemoramos quando um colega troca sua moto CG 125 2011 por uma bem mais novinha, 2017, financiando em 24 vezes a diferença de R$1500. O ruim é quando chove no inverno, momento que esse profissional motociclista tem que chegar meia hora antes para trocar suas roupas molhadas por outras secas. Professor casa geralmente com outro da mesma casta, os pobres com estudo se unem para então ascender para a classe dos que andam de carro, um Ka 2001 já bem rodado. O cônjuge que trabalha na escola mais distante dirige e larga o outro um pouco mais cedo no trabalho. Muito comum também é o consórcio de alguns que moram próximos, cotizam-se para abastecer e trocar pneus no Uno 2004 da colega proprietária. A rotina de assistir cinco profissionais saírem de um Celta 2003 com as janelas embaçadas às oito da manhã na frente da escola não espanta ninguém da comunidade escolar. Muitos trazem viandas para o almoço, outros pagam um extra para as cozinheiras da escola prepararem uma merenda, porque geralmente o ticket alimentação vai mesmo para o rancho no supermercado da boia dos filhos em casa. Muito comum também acontecer de o professor não admitir tanta pobreza e se sujeitar a trabalhar 60 horas semanais em mais de uma prefeitura ou em uma prefeitura e no estado. Sacrifica o convívio com seus familiares e suas horas de lazer ou sono para ganhar um pouco mais. Isso, infelizmente, não causa nenhuma surpresa aos filhos e cônjuges, porque normalmente um professor traz para casa provas e trabalhos para corrigir e se envolve durante horas no preparo de suas aulas.
Essa rotina de humilhações à que um trabalhador da linha de frente da guerra contra a ignorância está habituado, é invisível aos olhos da sociedade. Qual será a pandemia que irá visibilizar esses profissionais? Além da complexidade técnica das situações que normalmente um professor tem que enfrentar no seu cotidiano docente, que exigem muito estudo, atualização, treinamento e conhecimento, de uns tempos para cá ainda temos que enfrentar um exército de pais e familiares donos da verdade, com ideologias as mais diversas, querendo determinar como serão as ações pedagógicas para com seus filhos. Chegam a invadir e ameaçar os profissionais em seu local de trabalho. Até mesmo alunos um pouco maiores, pirralhos de catorze ou quinze anos, se veem no direito de filmar e contestar as aulas dos professores. Não são muitos os que resistem a tanto assédio moral, o troca-troca nas escolas é bem grande. Aqueles profissionais que têm alguma outra opção vão embora. A profissão de professor tem aposentadoria especial não por acaso. A maioria sucumbe com as mais diversas doenças psíquicas: síndrome do pânico, depressão, ansiedade, bipolaridade, se afastando em longos atestados médicos. O uso de psicotrópicos é largamente difundido como solução para continuar a trabalhar sob estresse acima do tolerável.
O sistema como está acaba gerando um professor sobrecarregado, de desempenho medíocre. As férias e feriadões acabam sendo ansiosamente aguardados, há os que estão comemorando a pandemia por poderem ficar afastados de pais e alunos. Nos seus poucos momentos de ócio, os professores querem folga para suas mentes. São poucos os que leem quando podem ficar em casa. Fico sempre angustiado quando vou a casa de algum colega e não acho a biblioteca ou quando a novela é mais comentada que um filme que exija reflexão. O desejo de estudar mais é quase inexistente na categoria, eu mesmo já desisti, não há quase nenhuma perspectiva de melhoria salarial para os que buscam se atualizar.
Na verdadeira linha de frente da saúde, a mesma linha de frente da guerra contra a ignorância, os combatentes estão bem cansados e desmotivados. Estou quase desejando alguma crise, semelhante a essa que vivemos agora na saúde, que chamasse a atenção da sociedade para os trabalhadores da educação para nos colocar na vitrine também. E que batessem palmas nas sacadas dos edifícios para nos homenagear com a devida justiça, nossos esforços sempre foram muito grandes, apesar de invisíveis. Ah, e que a sociedade finalmente entendessem que atirar dinheiro na nossa cara faria uma sociedade muito melhor para todos. Eu pego até piolho, mas quero ser bem remunerado para isso.

segunda-feira, 1 de junho de 2020


Kajsa
(Para facilitar a leitura desse texto, preciso fazer um alerta. O personagem principal da história é Kajsa, a pronuncia desse nome é algo que em português seria escrito Caisa, o Jota em sueco tem som de “I”. Não gostaria de ver ninguém se contorcendo para falar ca-jjjj-za.)

Kajsa sentiu-se muito bem, uma profunda paz tomou todo seu ser. Não sentia calor nem frio, a temperatura estava perfeita e a aconchegava. Sentiu prazer naquela sensação gostosa. Abriu os olhos e viu um céu muito azul, com uma cor bastante diferente do que estava acostumada a ver na Suécia. Não percebeu nem uma simples brisa, mas ouvia o marulho de ondas do mar e sentia seu cheiro. Aos poucos, algo a incomodou, talvez a dureza de onde estava deitada, talvez a claridade excessiva. Sua consciência voltou como se tivesse tomado um tombo, de soco. Sentou-se na pedra e olhou no entorno, ficou pasma, nunca havia estado ali. A paisagem que a cercava era de sonho, a sua frente um mar verde claro batia nas rochas lá embaixo do penhasco, a suas costas um morro coberto com densa vegetação arbustiva. Porém, um detalhe a intrigou poderosamente: a última memória que tinha é que estava trabalhando no escritório da seguradora em Estocolmo. Como havia parado ali? Onde era ali? Onde foi parar todo mundo?
Levantou-se de um pulo e percebeu mais coisas enigmáticas. Estava totalmente nua, sem nem um brinco ou anel, até mesmo a marca de sua aliança no dedo desaparecera. Procurou algum vestígio de trilha, mas não encontrou. Ela gostava de caminhar na beira dos fiordes no verão da Noruega, mas aquilo era uma situação totalmente diferente, há muitos anos não voltava lá. Definitivamente não estava na Noruega, todas as cores eram diferentes, o mar, o céu, as rochas, as plantas. Olhou para o chão e não viu sua sombra. Que sonho louco! Parecia tão real. Estendeu seu braço a frente e sua sombra apareceu, inclinou-se a frente e a sombra do tronco e de sua cabeça sumidos apareceu, mas só da parte do corpo que se inclinou. Riu com a situação e estendeu uma perna e depois a outra para ver se estavam mesmo ali, brincou dançando um pouco olhando aquela coreografia esquisita de sombras na pedra. Parou porque se aproximou da borda da rocha, sonho ou não, não queria cair do penhasco. Afastou-se com medo caminhando de costas o mais que pode da beirada, até se espetar num arbusto estranho. Pulou para frente de novo, olhou sua panturrilha e uma gota de sangue escorria. Olhou para o sol e viu que estava exatamente acima de sua cabeça, nunca tinha visto isso antes. Lembrou de seus amigos que haviam viajado para zonas tropicais, Klaus relatou aquela sensação esquisita da falta de sombra na Tailândia e Martin em Cuba. Bom, já tinha descoberto duas coisas interessantes: estava nos trópicos e perto do meio dia, todo resto ainda era mistério.
Ao pensar em meio dia, lembrou das recomendações de seu dermatologista e sentiu uma leve ardência nos ombros e nos seios. A radiação solar era muito agressiva para sua pele clara, evitava o sol ao máximo, por isso nunca se entusiasmou a viajar para Ibiza ou Maiorca, sonho de Magnus, seu esposo. Num impulso, cobriu com as mãos seus magros ombros, mas tirou assustada. Suas mãos e nariz já apresentavam manchas da idade e os ombros nem tanto. Procurou, já cheia de angustia, alguma bolsa ou mochila entre os arbustos, ela nunca sairia para um passeio na natureza sem seus três protetores solares, para as mãos, para o rosto e para o corpo. Lembrou dos óculos de sol, seus olhos começaram a sofrer com aquela claridade. Não achou nada. De um momento de pura paz, alegre e prazeroso, Kajsa passou a sentir um grande desespero, estava em apuros. Gritou por socorro, mas sua voz se perdia no infinito da paisagem sem resposta nenhuma. Ficou na ponta dos pés o mais perto que podia dos arbustos sem se espetar e gritou ainda mais forte fazendo uma corneta com as mãos. Mas era absolutamente inútil, estava numa prisão a céu aberto.
Kajsa assinou o acordo com o Sr. Svenson automaticamente, pediu licença e levantou-se perturbada, ele lhe olhou impassível. Foi rápido ao banheiro e sentou-se na tampa do vaso. Ficou olhando para frente, mirando a porta de fórmica branca, de olhos bem abertos, mas tudo que via era o que acabara de passar naquela rocha a beira mar. O que tinha sido aquilo? Não sentia mais a ardência nos ombros, até puxou a blusa para checar se estavam avermelhados, olhou a panturrilha também, mas nada. Tinha sido uma grande alucinação? Será que o cliente reparou? O que será que ela tinha preenchido naqueles papéis que acabara de assinar? Voltou rápido para sua mesa de trabalho, sorriu como se nada tivesse acontecido e Sr. Svenson sorriu de volta educado. Conferiu rapidamente tudo que escrevera, lembrou de cada palavra escrita, do caso todo, estava tudo correto, felizmente. Apertou a mão do Sr. Svenson e se despediu, ele saiu contente. Ela nem sentou-se de novo, foi até a sala de Ulrika, sua supervisora, pediu para sair um pouco mais cedo. Ulrika olhou o relógio por cima dos óculos de grossos aros que a deixavam tão mais bonita e jovem na opinião de Kajsa e disse que sim, afinal, só faltavam dez minutos para às cinco. Kajsa nem tinha visto que já estava no fim do expediente, mas agora parecia fazer sentido, lembrou tudo que tinha feito à tarde. Pegou suas coisas e saiu ainda confusa.  
Kajsa subiu em sua bicicleta e voltou para casa. Largou as chaves da casa sobre o aparador como sempre fazia e sentou-se no sofá. Mandou uma mensagem para Dr. Viggosen, precisava consultar o quanto antes. Largou o celular e ficou olhando o nada. Aquela experiência tinha sido muito real. Ainda sentia a dor do espinho, mas riu sozinha lembrando da dancinha com as sombras estranhas. Foi lentamente digerindo aquilo tudo, se acalmando. Ao fim, tinha sido uma vivência interessante e segura. Conhecera os trópicos sem nunca ter ido lá. Kajsa gostava da segurança, como uma boa sueca. Seu carro era um Volvo S90, o mais seguro de todos, apesar do apelo ecológico que um elétrico Tesla exercia sobre ela e o marido. Como agente de seguros, tinha seguro de tudo: de vida, de saúde, da casa, do carro. Tudo. Gostava assim. Percebeu que sua vida estava sob controle, como sempre esteve. Não tinha tido filhos nem pets para não ter imprevistos desagradáveis. Magnus finalmente chegou do trabalho, era engenheiro na Ericsson. Também largou suas chaves no aparador da entrada ao lado das de Kajsa, como sempre fazia. Os dois tinham uma vida bastante confortável, moravam num amplo apartamento em frente ao Kronobergsparken, uma área tranquila da cidade. Ela sorriu e o abraçou desajeitada. Ele percebeu que havia algo errado, mas esperou que falasse. Tinham aquele acordo de respeito mútuo. Começaram a arrumar a mesa para ceia, mas Magnus, a conhecendo bem, propôs sair para comer fora. Kajsa imediatamente aceitou e se alegrou, a alegria foi mútua. Caminharam de mãos dadas pelas ruas como há muito não faziam. Jantaram no mesmo restaurante que sempre comiam, sem turistas barulhentos e chatos, de comida típica Sueca. Voltaram para casa em silêncio, aproveitando o frescor do verão. Foram dormir cedo, Kajsa pediu que deitassem de conchinha. Magnus se encheu de ternura pela companheira e a acolheu. Ela nada disse e no outro dia, depois do café da manhã, beijou seu marido e partiu em sua bicicleta para trabalhar normalmente.
Ao chegar ao escritório, Dr. Viggosen havia respondido sua mensagem, poderia lhe atender às dez da manhã. Avisou Ulrika, que hoje estava mais bonita do que nunca, que logo sairia para consultar o médico. Kajsa a admirava, almoçavam sempre juntas, era uma mulher cheia de personalidade, muito segura de si, a própria cara da companhia.  Nem sentou na sua cadeira, desceu as escadas do prédio e pedalou até o consultório. Chegou meia hora antes da hora marcada, gostava assim. Ficou elaborando o que diria para Viggosen, também pensou que poderia ter elogiado a beleza da colega de trabalho, mas a porta abriu-se e o médico lhe convidou a entrar. Quando sentou-se a frente daquele velho amigo do colégio, relatou todo o ocorrido na tarde anterior com detalhes. A ardência nos ombros, o sol exatamente sobre a cabeça, a alegre dancinha com as sombras, o desequilíbrio, o espinho que lhe furou a perna, a sensação de bem estar e o desespero que seguiu ao se perceber sozinha num local isolado, a concretude da experiência, os gritos por socorro e a volta ao escritório na frente do Sr. Svenson que não percebeu nada de diferente. Deixou claro que tinha sido bom “conhecer” aquele local preservado, mas também muito angustiante. Viggosen a olhava com atenção, compreensão e um leve sorriso nos momentos engraçados do relato. Ele a tranquilizou, disse que era normal termos flashs, pensamentos complexos assim, de vez em quando, talvez fossem alucinações febris. Mediu sua temperatura e pressão, mas estava tudo normal. Perguntou há quanto tempo Kajsa não tirava umas boas férias, de uns dois ou três meses. Tanto tempo assim, há pelo menos vinte anos. Não receitou nada, disse que ela estava bem, qualquer outro sintoma que avisasse.
Kajsa saiu contente do consultório e voltou ao trabalho. Agora sentia-se confiante a contar para Magnus e rir da situação. Que experiência curiosa! Sentou-se em sua cadeira e passou a atender Sra. Frederikson que queria estender sua apólice a seu cachorrinho Tig, um antipático Pug que estava em seu colo. Sentiu novamente uma aconchegante paz, como a conchinha de Magnus na cama ou uma manhã de natal na infância. Fechou os olhos e apreciou aquele instante gostoso, mas quando os abriu, percebeu que estava sentada naquela mesma pedra a beira mar do dia anterior, a mesma claridade, o mesmo cheiro. Manteve a calma, lembrou que Viggosen disse que era normal. Sabia que tudo passaria rápido como da outra vez e voltaria a estar a frente da Sra. Frederikson. Desta vez tinha uma leve brisa marinha e estava um pouco mais quente, mas de novo, nem uma nuvem no céu. Ouviu um latido agudo, era o pequeno Tig que cheirava o ar olhando os arbustos. Ele saltou para dentro da vegetação e Kajsa sentiu uma forte obrigação de segurá-lo para que não se perdesse, Tig era importante para a companhia de seguros. Correu atrás do cachorro, mas lembrou que estava nua quando seus seios balançaram e seus pés doeram nas pedras, não poderia enfrentar os arbustos assim. Tig sumiu na macega e não adiantou chamá-lo. A sola de seus pés era fina, nunca havia pisado o meio ambiente com os pés descalços. Deu uma volta no promontório da rocha em que estava, devia ter uns seis metros por quatro e era relativamente plano, mas todo cercado ou pelo vazio do penhasco ou por arbustos. Olhou lá embaixo, as ondas vagarosamente esculpindo as pedras. Sair dali por mar estava fora de cogitação. Devia ser mais de dez metros de altura. Olhou os arbustos na direção em que Tig havia seguido, talvez por ali houvesse algo aproveitável. Mas não se via nada, havia muitas cactáceas e arbustos retorcidos e queimados pelo vento salgado da maresia. Seus ombros e seios começaram a arder novamente, mas ela não ligou. Tentou aproveitar da melhor maneira possível o momento, olhou a beleza do local, respirou fundo, pena não estar com sua câmera. Por mais que racionalmente se concentrasse a ver o lado bom daquilo, daquela intensa experiência psicológica, não conseguia. Sentou-se na pedra e agora a ardência dos ombros e seios já incomodava bastante, as canelas e os peitos dos pés expostos também ardiam. Esperou confiante o término daquele martírio, mas nada. Lembrou de seu pai, sua mãe, sua irmã mais nova, de sua casa em Uppsala e da escola que frequentou, dos colegas e amigos da rua em que morava, do Dr. Viggosen quando criança. Sentiu muita saudade do frio e da neve. A ardência da radiação solar estava insuportável, sabia que fazia muito mal, a sede também a castigava severamente. Mas era sonho, calma, um flash, como disse Viggosen. Não tinha relógio, mas achava que agora já tinha passado umas boas duas horas, muito mais tempo que no dia anterior. O flash já estava demorado demais. Pensou em pedir para Viggosen uma receita de alguma droga poderosa, não queria sentir mais aquilo de jeito nenhum. Passou a refletir sobre sua vida, como aquela situação era exatamente o oposto de tudo que sempre buscou para si: incerteza, ignorância, angustia, insegurança, imprevisibilidade. Percebeu que uma grande bolha de queimadura solar levantou no seu ombro esquerdo, estava sendo queimada viva. Caiu num choro incontrolável, o sol implacável parecia não se por nunca. Queria Magnus e sua conchinha em lençóis de linho, queria um gole de suco de maça, ou ao menos estar sentada em sua cadeira de trabalho, rever a Sra. Frederikson e até que Tig voltasse. Ao pensar isso, Tig voltou, saltitante e contente, cheio de pega-pegas presos no pelo. Kajsa ficou bem feliz com seu retorno, ela que nunca tinha gostado de cachorros, agora chorava e ria de alegria, mesmo ele machucando sua pele queimada com suas unhas duras, lambendo seu rosto, era o único elo com a realidade que tinha.
Tig e a Sra. Frederikson lhe olhavam com tranquilidade. Kajsa sorriu, tinha voltado do delírio! Afagou e elogiou o cachorro, coisa que normalmente jamais faria, deixou a dona contente e orgulhosa. Procurou a ficha da Sra. Frederikson no computador, preencheu os dados e imprimiu os papéis rapidamente. Despediu-se dela e fez mais afagos em Tig. Pegou suas coisas e saiu, sem nem avisar Ulrika. Pedalou rápido até o consultório de Viggosen, não havia duas horas que havia estado ali. Sentou-se na antessala e esperou. Quando abriu-se a porta do consultório, uma outra cliente se despediu do médico e ela entrou esbaforida sem esperar convite. Ele tentou avisá-la que estava saindo para o almoço, mas ela pediu uma receita de qualquer droga forte, estava definitivamente louca. Ele pegava suas coisas para sair e ela nervosa, contando tudo que havia passado desde que saíra do consultório: Tig, o sol inclemente, o total desamparo. Ele calmamente a olhava com seu leve e discreto sorriso. Ouviu Kajsa pacientemente e quando ela respirou, tomando fôlego para o relato, ele a convidou para almoçar, lá poderia contar melhor aquela história.
Desceram as escadas e caminharam pela rua com Kajsa apreensiva e angustiada. Ele comentava a beleza do dia e das árvores no Kungsträdgården. Ela também gostava, mas não conseguia apreciar nada naquele momento, queria só a receita para correr para farmácia. Entraram num restaurante fino, sentaram-se e ele já pediu ao garçom Surströmming com batatas sem nem olhar o cardápio. Ela pediu o mesmo, pareceu bom, mas achou estranho comida tão popular num lugar caro como aquele. Arenque é nutritivo e saboroso, ele a conhecia bem ao pedir aquele prato, ela se acalmou bastante. Bem acomodados, ele a autorizou a relatar com calma tudo de novo. Viggosen, ele mesmo, era um calmante eficiente. Ela respirou e começou a contar detalhadamente tudo que acabara de viver. A paz e prazer inicial, a preocupação com Tig ter sumido na macega, a longa espera sentada, a esperança que seria somente um flash, como o de ontem, logo acabaria tudo, as recordações da família, o desespero e o choro quando se percebeu sendo consumida pela radiação solar, a volta a frente da cliente que nada percebeu e contou até que seu sentimento a respeito de Tig tinha mudado. Estava certa de sua loucura. Quando parou de falar, o garçom colocou seus pratos na mesa. O perfume do peixe os encheu de apetite e comeram em silêncio. Ao acabar, pediram um vinho, Viggosen consultou Kajsa e escolheram um verde português. Somente agora Viggosen falou, mas não dela ou de sua situação. Começou a comentar assuntos aleatórios. Comentou que sua filha Emma estava fazendo um intercâmbio no Brasil, numa cidade litorânea chamada Florianópolis e estava gostando muito. Tanto que Viggosen e sua esposa até sentiam ciúmes. A descrição do promontório de rocha da história de Kajsa o havia lembrado muito as fotos que sua filha mandava. Comentou da tese de doutorado em antropologia que seu sobrinho Erik estava escrevendo na universidade, da empolgação que aquele assunto lhe trazia. Estudava as diversas Nossa Senhoras: Lourdes, Sallete, Guadalupe, Fátima e tantas outras. A comoção que cada uma causava na população. Kajsa ouvia educada, mas queria voltar logo para o consultório, percebeu que ali ele não falaria nada sobre seu caso. Tomaram quase toda garrafa daquele vinho fresco e saíram. Kajsa sentia-se leve, talvez tivesse bebido mais do que o recomendado.
Voltaram ao consultório de Viggosen comentando o bom trabalho do primeiro-ministro. Na Suécia, política é um assunto quase tão ameno quanto o tempo ou a beleza das flores. Na sala de espera do consultório, já havia uma senhora esperando, tinha hora marcada. Viggosen a avisou que iria terminar de atender outra paciente e já lhe atenderia. Kajsa sentiu-se um pouco desconfortável com o incômodo que estava causando, mas entrou. Sentou-se a frente do médico e ele continuou falando. O conceito de loucura havia mudado muito ao longo da história. Ter visões ou escutar vozes era tido como bom em muitos lugares e eras. Os xamãs suecos conversavam com trolls, gnomos e elfos há milênios e eram considerados sábios exatamente por isso. Os fiéis de Nossa Senhora de Fátima acreditam que três crianças conversaram com uma senhora morta há dois mil anos. Quem seriam os loucos, as crianças conversando com o fantasma ou os milhões de fiéis que acreditam que eles realmente conversaram com ela? Talvez essa fosse a curiosidade antropológica de seu sobrinho. Para aqueles devotos, nenhuma das três crianças era louca, mas sim iluminadas. A própria ideia de deus, uma entidade que é onisciente, onipotente e onipresente e ninguém nunca viu, é tida por muitas pessoas como uma ideia razoável, elas realmente creem nisso. Talvez não na Suécia, mas em países como Estados Unidos, Itália ou Espanha, a crença em um deus assim é partilhada pela maioria dos cidadãos. E ninguém é considerado louco por isso. Kajsa sentiu uma certa vergonha e baixou a cabeça, pois sua mãe e seus quatro avós, todos acreditavam em Deus enquanto vivos. Na sua família, ela era a primeira geração de ateus. Para disfarçar seu constrangimento de ser de uma família com possíveis antecedentes de insanidade mental, Kajsa contou de um tio que afirmava ter sido abduzido por alienígenas.
Viggosen continuou sem nenhuma preocupação com a paciente na sala de espera. Os artistas mais famosos já foram considerados loucos. Duchamp colocou um mictório de ponta cabeça numa galeria e chamou de fonte para revolucionar a arte. Numa época que todos tentavam pintar da forma mais fiel possível a realidade, Van Gogh batia com o pincel na tela de tal forma que suas pinturas davam somente a impressão de retratar algo real, mas transmitiam mais emoção que a própria realidade. A loucura pode ser libertadora e trazer sentimentos até então desconhecidos ao ser humano. Há quem pense que enfeitar o corpo com tatuagens e piercings é loucura, ou mesmo torcer para um time de futebol. No entanto, há fanáticos por essas coisas aos milhões. O matemático John Nash era um conhecido esquizofrênico, via e conversava com pessoas que não existiam, porém, isso não o impediu de ganhar o prêmio Nobel de economia na Suécia. Nash era um que admitia suas visões e diálogos com elas, mas quantas pessoas também não as têm e vivem sem sair do armário?
Empolgado, Viggosen lembrava um exemplo atrás do outro. Chamava a atenção de Kajsa que loucura pode ser indistinguível da realidade. Por muito tempo, ser canhoto ou homossexual foi considerado loucura e até associado a possessões demoníacas. Hitler queria matar os homossexuais, ciganos e judeus, muitos o consideram louco, pois, realmente, era um maníaco genocida, mas ainda há muita gente que acha que ele agiu bem e fez o que deveria ter feito. Atualmente, o presidente americano Trump ou o brasileiro Bolsonaro, além de muitos outros políticos mundo a fora, não acreditam que preservar o meio ambiente seja de alguma valia. De novo, para uns isso é loucura, mais dois tiranos genocidas como Hitler, para outros, sinal de sanidade mental. Loucura seria viver imaginando cenários climáticos apocalípticos que nunca aconteceram. Talvez os “loucos” vejam ou sintam o que lhes falta. Quem se sente desamparado, “sente” a proteção de um deus, se conforta e agradece por isso. Até constrói templos em agradecimento. Na Suécia, quem perde alguma coisa pede um favor para um gnomo e esconde um doce no jardim como escambo, então acha o objeto e acredita que foi uma boa troca. Se os ratos ou o gnomo comeram o presente, tanto faz para aquele que crê que foi o gnomo. Quem tem câncer fica com muito medo e pede a cura para algum santo que crê possa ajudar e, para essa pessoa, o tratamento quimioterápico foi somente um instrumento dos poderes mágicos da entidade. Parece loucura, mas não para quem precisa daquela muleta metafísica. Nietzsche chamava de “gente superior” quem não precisa desse tipo de auxílio, mas a grande maioria da população é somente “gente” e se conforta com ilusões anestésicas. E nem é preciso pensar em coisas sobrenaturais para perceber que a loucura é onipresente na sociedade. Se um cliente pagar suas compras para o comerciante com uma nota de cem coroas, tanto um quanto o outro acreditando que aquele papel colorido tem valor de troca, os dois sairão contentes. O dinheiro é uma ilusão coletiva, uma ficção inventada em algum momento, uma verdadeira loucura. Se a alucinação é compartilhada por mais gente, deixa de ser loucura e vira até lei, qualquer um passa a ter fé numa alucinação coletiva. Louco passa a ser quem rasga ou queima dinheiro. As loucuras movem a economia mundial. Harari, historiador israelense, acredita inclusive que foram exatamente as ilusões, as histórias inventadas sobre deuses, gnomos ou dinheiro é que fizeram o diferencial do ser humano sobre as outras espécies. Viggosen lembrou ainda que a loucura não é uma coisa necessariamente ruim, tanto que muitas pessoas inclusive procuram ativamente estados alterados da consciência, querem ficar loucas pelo menos por alguns instantes usando drogas alucinógenas, como LSD ou a mescalina. A loucura é humana, faz parte da nossa natureza. É são aquele que enlouquece de vez em quando. Além disso, o que é considerado loucura depende muito do contexto histórico. A loucura não é o problema, o problema é como reagimos a ela.
Kajsa estava bem mais calma, não acreditava mais estar louca, mas ainda queria saber o que fazer para não ter mais aqueles flashs malucos, a fuga da realidade, o desespero e a dor que sentia. Viggosen a alertou que, por ser um ginecologista, não poderia prescrever drogas psicoativas como ela queria. Mas recomendaria férias, que era o que ela obviamente estava precisando. Escreveu no receituário sua recomendação de seis meses de férias, carimbou e assinou o papel. A encorajou a levar aquele atestado o quanto antes à assistência social, eles saberiam o que fazer. Se depois das férias ela ainda sentisse aqueles sintomas, ele a encaminharia para um colega psiquiatra. Levantou-se e conduziu Kajsa a porta com uma última recomendação. Porque não ia para Florianópolis? Lá tinha exatamente o que ela estava precisando. Emma poderia guiá-la por lá, era esperta e já estava bastante familiarizada com o lugar. Se quem tem desamparo procura um deus protetor, quem como ela tem toda segurança do mundo porque não procura alguma aventura na natureza desconhecida? Viggosen ainda acrescentou que achava que era por isso que ela tinha tido essas visões, o cérebro a estava indicando o que faltava em sua vida, como quem tem fome só pensa em comida.
Viggosen era um excelente médico, Kajsa sentiu-se bem melhor, subiu na sua bicicleta e antes de sair pedalando, conferiu seu celular. Três chamadas não atendidas de Ulrika. Resolveu voltar ao escritório antes de qualquer coisa, já era quase três da tarde. Entrou na sala da supervisora que sorriu e veio até ela, a abraçou e beijou. Kajsa ficou totalmente sem jeito, mas foi receptiva ao carinho da colega e estranhamente, sentiu uma atração inesperada por ela, talvez fosse seu perfume delicioso. Ulrika suspirou aliviada, em vinte anos trabalhando no mesmo local, era a primeira vez que não almoçaram juntas. Pediu explicações, mas não de forma a repreendê-la, mas com sincero interesse, percebeu que a amiga não estava bem. Sentaram-se no sofá e Kajsa contou tudo para a amiga. As últimas vinte e quatro horas tinham sido uma incrível montanha russa emocional. O promontório de rocha, as conversas com Dr. Viggosen, o aconchego de Magnus. Ulrika a olhava nos olhos e escutava com atenção e ternura, a conversa rendeu pelo menos umas duas horas, pediu o atestado do médico, o escritório estava fechando, disse para não se preocupar, ela mesma encaminharia o papel para a assistência social no dia seguinte. Levantaram e abraçaram-se de novo, longamente. Ulrika desejou uma boa viagem, como era mesmo o nome da cidade que iria? Floriapólis, Flonapólis, Flora... que? Desceram e pegaram suas bicicletas, despediram-se e Ulrika, se afastando, ainda gritou que a amava. Kajsa achou aquela manifestação de afeto bem inesperada, mas saiu bem feliz e pedalou para casa entusiasmada.
Enquanto esperava Magnus para o jantar, foi fazendo uma lista de coisas a fazer no dia seguinte. Primeiro, fazer um seguro de viagem, claro. Depois renovar seu passaporte, comprar as passagens, conversar com Emma, estudar o Brasil e as hospedagens possíveis por lá. Kajsa tinha entendido Florianópolis como uma sugestão de Viggosen, mas Ulrika já tinha definido seu destino, pareceu bom. Será que para entrar no Brasil precisava de visto? Com certeza teria que tomar alguma vacina para países exóticos. Precisava perguntar na embaixada brasileira. Teria que comprar um bom repelente, Brasil deve ser o reino da mosquitolândia! Poderia pegar malária ou alguma outra dessas terríveis doenças tropicais. Sua lista de afazeres crescia rapidamente, assim como seu entusiasmo pela viagem que já dava como certa, mas, de um estalo, lembrou de Magnus. Seu rosto se fechou, não queria levar Magnus para essa aventura que era uma coisa só dela. Não havia colocado ele em nenhum plano. De certa forma, ele era parte dessa vida que estava querendo se afastar. Mas de jeito nenhum queria magoar seu companheiro.
Magnus entrou e colocou as chaves sobre o aparador da entrada, como sempre fazia. Kajsa reparou que pela primeira vez as suas chaves não estavam no aparador esperando as de Magnus, mas sim atiradas ao seu lado no sofá da sala, tal era seu entusiasmo ao entrar em casa. Aquele detalhe bobo para qualquer pessoa sensata, a sacudiu, sua vida estava obviamente perturbada por uma avalanche de novidades. Deu um salto e abraçou e beijou o marido alegremente, como também nunca havia feito, ele até se assustou e riu. Antes que ele perguntasse o que houve, ela se prendeu a contar tudo, as alucinações, a angustia, a conversa com Viggosen, a compreensão de Ulrika, seus planos de viagem. Ele sorriu sem graça. Estava feliz por ela ter equacionado tão rápido problema de tal magnitude. Mas percebeu-se excluído dos planos. Ela se angustiou um pouco com sua fala de engenheiro, ele era modorrento, falava como se a vida fosse um cálculo exato: equação, problema, magnitude. Ela, como agente de seguros, achava tão mais bela a vida em probabilidades. Quando ele questionou se não seria uma loucura, isso sim, aquela viagem para um lugar tão longe e desconhecido de uma hora para outra, ela levantou-se e foi arrumar a mesa do jantar aborrecida. Ele nada mais disse, percebeu que tinha infringido aquela regra muito especial para os dois, de respeito mútuo. Mas ela, de certa forma, estava destruindo a vida pacata que lhe era tão cara. Foram dormir cada qual no seu lado da cama, como sempre.
O dia seguinte foi de muita movimentação. A agência de viagens foi a primeira visita da manhã. Lá tiraram a maioria de suas dúvidas. Florianópolis era um conhecido destino de suecos, para grande surpresa de Kajsa, havia até pacotes promocionais com muitos passeios incluídos. Era uma ilha próxima a costa, parecia bem aventuresco, mas ao mesmo tempo urbano o suficiente. Três pontes faziam o cordão umbilical da ilha ao continente, como em Estocolmo, pareceu seguro. Na cidade tinha desde luxuosos hotéis, até campings selvagens. Kajsa optou por um meio termo, fez reservas numa pequena pousada de uma praia conhecida, pareceu aconchegante. Achou tudo maravilhoso, principalmente depois de ver as fotos do quarto, a cama era muito parecida com a sua e tinha até ar-condicionado. Sim, tinha mosquitos, mas não ia morrer com suas picadas, poderia usar protetores solares já com repelentes. A vacina para febre amarela era opcional. A moça garantiu que não tinha onças ou outros animais selvagens perigosos na região, também avisou que no hemisfério sul era inverno agora, mas que o inverno deles era muito como o fim do verão na Suécia. Comprou as passagens sem nem falar com Emma e até deixou a volta em aberto para até seis meses. Estranhamente, Kajsa não sentia nenhuma culpa ou remorso de não estar trabalhando, ao contrário, seu trabalho parecia uma lembrança remota do passado. Foi ao local indicado pela agência de viagens para renovar o seu passaporte, o que foi felizmente fácil e rápido. Em uma manhã resolveu tudo. Mandou uma mensagem para Viggosen comunicando sua decisão e pedindo o contato de Emma. Voltou para casa feliz da vida.
Em duas semanas, Magnus a levou ao aeroporto Arlanda. Não tinha tido mais nenhum episódio de alucinação e aquilo lhe indicava como uma sólida certeza que estava certa na decisão que tomou. Ela tinha tirado sua aliança e ele reparou, aquilo o magoou um pouco, mas não disse nada. No entender dele ela tinha enlouquecido e o médico recomendou um afastamento total de seu cotidiano, era isso que ele dizia aos colegas de trabalho. Eles não eram realmente casados, eram somente amigos morando juntos, há muito tempo nem sequer transavam, mas gostavam de se apresentar como um casal e a aliança era o selo daquele acordo. Kajsa estava cheirosa e radiante no carro. Magnus a elogiou. Ela estava há dias se preparando para a viagem, mas seguia conferindo sua lista, não queria esquecer nada. Já tinha estudado tudo sobre Florianópolis, combinado com Emma a data de sua chegada, feito o seguro de viagem e um cartão de crédito especial com uma boa margem de gastos. Aos cinquenta e três anos sentia-se mais jovem do que nunca. Passaram pelo check-in e se despediram. Magnus sentiu que era carta fora do baralho, mas não ficou triste. Estava contente com a felicidade da companheira de tantos anos.
Ao amanhecer, Kajsa desembarcou em São Paulo onde faria a escala para Florianópolis. Estava descansada, dormira surpreendentemente bem durante a longa viagem, tinham sido doze horas até ali, mas ainda não tinha chegado. Passou pela alfândega e trocou de avião, agora um bem menor, sentou-se na janela para ir olhando o país. Ao levantar voo, Kajsa ficou impressionada com o tamanho de São Paulo, era uma enorme massa conurbada, muito maior que Estocolmo, cheia de estradas movimentadas e grandes indústrias, demorou a passar. Mas logo apareceu o que queria ver, a floresta e o litoral, pena estava um dia um pouco nublado, então só teve alguns momentos para observar. Mas ficou fascinada, sentiu-se como uma guerreira viking explorando outros territórios. O ponto alto da viagem foi a aproximação do aeroporto Hercílio Luz em Florianópolis. O avião sobrevoou toda a ilha, o sol nascia a esquerda e a ilha se avistava a direita, por sorte, exatamente onde ela estava, com o rosto colado na janelinha do avião. A iluminação da paisagem era perfeita. A ilha era tão linda, coberta de florestas, com muitas lagoas, baías e ilhas menores no entorno. Até lembrava um pouco Estocolmo, mas com a vegetação bem mais exuberante. O piloto anunciou a chegada ao destino e a temperatura, apenas um grau de diferença para quando saíra da Suécia. Ficou contente, o inverno no Brasil era muito mais ameno que na Escandinávia. Pois claro, deixara Estocolmo a 59º de latitude Norte e estava chegando do outro lado do mundo, 27º Sul. Trocara o Circulo Polar Ártico pelo Trópico de Capricórnio. Era uma mudança e tanto, a primeira vez que Kajsa cruzava o Equador e visitava o hemisfério sul. O aeroporto era bem pequeno, destes que um tratorzinho traz as escadas para as pessoas descerem do avião para pista. Quando saiu pela porta do avião, imediatamente sentiu o cheiro do mar que sentira nas alucinações, olhou o entorno e a cor do céu também era exatamente a mesma. Aquilo a trouxe uma paz interior inesperada.
Emma a esperava sorridente com um rapaz jovem como ela. Os dois a beijaram e Kajsa ficou bastante sem jeito. Emma percebeu e riu, explicou que no Brasil era assim, as pessoas se beijam ao se encontrar. Estava feliz em vê-la e a recíproca era verdadeira. Kajsa não a conhecia direito, a última vez que a tinha visto ela era uma criança de uns dez anos, agora já tinha dezessete. No entanto, conversavam animadamente como velhas amigas, uma por estar há vários meses sem conversar em sueco, outra por achar um porto seguro naquela terra distante. Os dois jovens ajudaram com as malas e conduziram Kajsa ao estacionamento. Emma apresentou João Pedro enquanto colocavam a mala no carro. Riram por só ter lembrado das apresentações agora, ele tinha mantido respeitoso silêncio até ali. João era o “irmão” dela no intercâmbio, Emma estava morando há seis meses em sua casa e já falava perfeitamente o português. Conheciam a pousada onde ela ficaria, era relativamente próxima a sua casa. Emma falava sem parar, perguntava do pai e da mãe, da Suécia e ao mesmo tempo ia dizendo tudo o que tinham planejado fazer com ela aquela tarde. Kajsa estava impressionada com a recepção calorosa. O carro seguiu lentamente por uma estrada sinuosa por entre morros e florestas, tinha muito congestionamento. João Pedro e Emma conversaram um pouco em português e riram. Os dois tinham matado aula para busca-la.  
A lentidão do trânsito agradava Kajsa que ia olhando tudo com interesse. Era tão diferente, tão claro. Tinha muita pobreza, muitas casas e comércios humildes, viu carroças puxadas por cavalos magros, também muitos carros e ônibus espremidos em vias apertadas e tortuosas, muitos cães soltos e pessoas na rua, grandes pássaros brancos. Tudo era estranho para ela. Passaram ao lado de uma linda lagoa com alguns barcos ancorados e subiram um morro íngreme numa estrada ladeada de florestas, de repente uma linda vista surgiu numa curva da estrada, uma baía de areias brancas e mar verde claro. O mar tinha exatamente a mesma cor daquele que Kajsa havia visto nos seus momentos fora da realidade. Mas ali era real, ela não estava presa no promontório. Emma ia o tempo todo falando por onde estavam passando, os nomes dos lugares, quando iriam visitar as atrações, como ela iria gostar. Entraram numa viela ainda mais apertada ao lado de um canal cheio de barcos de pesca e pararam a frente da pousada que tinha uma aparência maravilhosa, melhor que na foto. Kajsa fez o check-in e Emma avisou para tomar um banho, descansar um pouco, porque em uma hora e meia ia voltar para leva-la ao almoço, os pais de João Pedro queriam conhecê-la.
A pousada era maravilhosa, o quarto tinha uma bela vista para a praia da Barra da Lagoa, o banheiro era amplo e bem limpinho e até agora Kajsa não tinha visto um mosquito sequer. Aquela constatação a deixou bem mais tranquila. Tomou banho e desfilou nua pelo quarto, a grande janela a fazia perceber-se integrada a natureza lá fora, sentiu-se privilegiada com sua sorte e pensou em compartilhar com alguém aquele momento feliz. Lembrou-se de Ulrika, a decoração da pousada era bem do gosto dela. Tirou uma foto da vista e outra do quarto e mandou via internet. Cobriu-se de protetor solar com repelente e vestiu-se, armou-se com seus óculos de sol e um ridículo chapéu amarelo de algodão, mas que a protegia bem. Foi para recepção esperar Emma que lá já estava com João Pedro. Saíram animados. O carro fez o caminho inverso da manhã e Kajsa ia apreciando com gosto a paisagem. Abriram as janelas e aquele cheiro de mar como o do promontório a invadia, a claridade certamente era a mesma. Estava no lugar certo e de alguma forma aquilo a preenchia de um sentimento bom.
Chegaram a um pórtico luxuoso com dois guardas na guarita depois de passar por ruas estreitas e casinhas humildes. A cancela se abriu e ao entrar, pareciam ter mudado de país, o condomínio onde João Pedro morava era bem diferente do resto dos lugares onde haviam passado. As ruas eram amplas e retas, as casas eram luxuosas mansões e não tinham muros, o lugar não tinha movimento de carros, carroças ou cães soltos. Kajsa e Emma comentaram a brutal diferença social em sueco. Emma explicou que os pais dele eram ricos para os padrões brasileiros e havia uma segregação deles com o resto do povo, evidenciada por muralhas, vigilantes e cercas eletrificadas. Emma atualizou João Pedro em português sobre o assunto que trataram e Kajsa percebeu que ele sentiu uma mistura de orgulho com constrangimento. Pararam na garagem atrás de, Kajsa reconheceu de imediato, dois carros suecos! Sentiu uma instantânea familiaridade e simpatia com a família. Dois Volvo, como o dela, um V40 e um XC90. Kajsa exclamou sua surpresa e Emma de novo esclareceu que no Brasil, Volvos eram carros de luxo. Kajsa percebeu de que lado estava da equação social no Brasil. Sentiu uma certa vergonha e entendeu a cara de João Pedro. Três carros e uma casa tão grande, quantas pessoas morava ali? Somente três, João Pedro e seus pais, temporariamente Emma.
Ao descer do carro, Kajsa percebeu um delicioso aroma de carne assada. Na parte de trás da casa, na frente de uma linda piscina, o casal preparava um churrasco. Emma fez as apresentações, Antônio Carlos e Maria Helena falavam inglês, idioma adotado para o almoço, somente João Pedro não falava. Kajsa nunca tinha visto tanta carne junta. Tinha gado, porco, carneiro e galinha. O aperitivo foi com bolinhas de carne que todos mergulhavam alegremente num prato com areia. Emma esclareceu em sueco que eram corações de galinha na farinha de mandioca, um quitute apreciado em Florianópolis. Tudo era novidade para Kajsa. Ninguém sentava direito e parecia que não tinham intenção de fazê-lo, apesar de ter várias cadeiras. O local de assar as carnes era uma espécie de lareira alta do chão na parte exterior da casa. A cerveja era bem ruim, e estava demasiadamente gelada para o gosto dela, mas a comida era ótima, até a areia de mandioca era saborosa. Conversaram animadamente, ambos os cônjuges eram psiquiatras. Por um momento, Kajsa ficou receosa que Viggosen tivesse contado alguma coisa. As primeiras palavras que Kajsa aprendeu em português foram churrasco e cerveja. Achou as duas muito curiosas, principalmente depois de ver escritas.
Enquanto comiam e bebiam a vontade em volta da mesa, uma senhora negra, que não foi apresentada, entrava e saia da casa trazendo mais comida, principalmente saladas. Kajsa ficou um pouco desconfortável com aquela situação, era obviamente uma escrava moderna, muda. Discretamente, questionou Emma em sueco a respeito e sim, era uma serviçal. Aquilo a chocou bastante. Tinha estudado sobre escravidão na escola, diferença social, racismo e pobreza, mas sempre tratou o assunto como problemas do passado da humanidade. No seu cotidiano aquilo não aparecia. Na Suécia tinha diferença social, bairros pobres de imigrantes, mas era uma coisa que o país se envergonhava e as políticas públicas tentavam minimizar, mas aquilo era diferente, explicito. Conectou as coisas que Viggosen falou sobre loucura com aquele churrasco e pensou que aquilo sim era insano e não as inofensivas alucinações que tivera. Kajsa estava caindo no mundo real, começou a perceber a bolha de bem estar social em que vivia. A consciência veio a Kajsa como num tombo, de soco, como nas alucinações tinha vindo. A Suécia era um grande condomínio de luxo protegido pela muralha da distância, do mar e do frio. Kajsa sugeriu que tirassem fotos do evento. Imediatamente chamaram Dadá, a senhora negra. Ela veio prestativa e Kajsa a alcançou seu celular, somente agora lhe apresentaram Dandara, trabalhava na casa há 20 anos, desde antes que Maria Helena engravidasse de João Pedro. Ela, sempre muito quieta, tirou a foto do grupo na frente da lareira alta com os espetos de carne. Kajsa pediu uma foto do grupo com Dadá. Houve um certo constrangimento e João Pedro se propôs a tirar a foto. A serviçal estava tão à vontade quanto um gato na ponta do trampolim. Emma traduziu os agradecimentos de Kajsa e Dadá se retirou da área onde estavam e voltou para cozinha de cabeça baixa.
Terminado o almoço, Emma e João Pedro queriam levá-la para um passeio. Kajsa despediu-se de todos e partiram no carro. As duas suecas começaram a conversar em seu idioma natal, João Pedro respeitou o instante. Emma falou que poderiam falar o que quisessem, ele não entenderia nada. Comentaram sobre o que chocara Kajsa no almoço, Dandara, as muralhas, o tanto de carnes, a diferença do condomínio para os outros lugares da cidade. Emma concordou e disse também ter se chocado no início, mas que agora estava habituada, havia se inculturado. Subiram uma estrada sinuosa no meio da floresta e lá em cima pararam para observar um mirante. A paisagem era belíssima, florestas, mar, lagoas, barcos desenhando a água. João Pedro chamou a atenção de Kajsa para o condomínio onde morava, dava para ver dali. Realmente, era visível de longe e a diferença das outras casas era evidente. Kajsa pensou que aquela diferença social dava para se avistar até da lua, mas nada falou. Seguiram o caminho e a estrada desceu o morro do outro lado. Passaram na frente da escola na qual os dois estudavam e subiram outro morro alto, desta vez numa estrada cercada de casas, para, noutro mirante, ter o vislumbre do centro da cidade, das pontes e do continente. Visitaram uma linda avenida a beira mar e o manguezal que impressionou muito a visitante, parecia um safari, com árvores estranhas, caranguejos e pássaros. Muitas fotos depois, voltaram para a pousada. Às cinco da tarde largaram Kajsa para finalmente descansar da viagem. Na Suécia seria nove da noite, ela agora estava cansada, o dia tinha sido muito longo. Prometeram voltar no outro dia para almoçar num amigo nativo que também queria conhecer Kajsa.
Kajsa deitou na cama exausta e viu que Ulrika tinha respondido suas mensagens da manhã. Sentia sua falta no trabalho e queria estar com ela naquela pousada do Brasil. Aquelas manifestações de afeto aconchegaram o espírito de Kajsa de uma forma que a enterneceu. Magnus perguntava somente se tinha chegado bem. Mandou fotos do churrasco, dos mirantes, da avenida a beira mar e do manguezal para Ulrika, sua irmã, Viggosen e Magnus com comentários protocolares. A colega foi a única que respondeu imediatamente. Começaram uma frenética troca de mensagens até que Ulrika propôs uma ligação telefônica. Kajsa relatou aquele primeiro dia como uma revelação. Sentia uma coisa esquisita no Brasil, se percebia nascendo de alguma forma. As diferenças todas para Suécia, as cores, as vivências, a claridade, as casas, as pessoas e seus nomes, os cheiros, os sabores, eram muito estranhos, lhe desacomodavam. Sentia estar consciente pela primeira vez. Não conseguia nem pronunciar os nomes ou verbalizar direito o que sentia. Faltava-lhe palavras no repertório para descrever as coisas que via e sentia. Talvez, as palavras necessárias nem existissem em sueco! Ao mesmo tempo era uma experiência instigante, que a fazia querer mais daquilo. Era como se sua vida até ali tinha sido sem sal ou tempero e suas alucinações e aquela viagem tinham condimentado sua existência. Sentia uma ansiedade de viver mais que até então nunca havia experimentado. Uma angustia ao perceber o tempo que perdera até ali e o quanto ainda tinha para viver, talvez fosse pouco diante do tanto de mundo que tinha para conhecer. A amiga, do outro lado do mundo, comemorava o entusiasmo de Kajsa e a estimulava ainda mais. Ambicionava ter sua coragem e também sair do útero acolhedor da sua vida regrada. Era óbvio que Kajsa houvera nascido para o mundo. Tinha sido um momento sofrido, como qualquer nascimento, de incertezas e inseguranças, mas que possibilitava uma liberdade e um crescimento ilimitado. As duas começaram a chorar com o poder da metáfora que encontraram e aquilo as uniu como nunca. Ficaram mais de duas horas ao telefone. Kajsa sentiu uma proximidade de Ulrika que nunca havia sentido com ninguém.
Desligou o telefone e relaxou. Passou a refletir, rindo e chorando sozinha no quarto da pousada como uma boa louca. Sentia-se viva como nunca estivera. Via e sentia as coisas de uma forma totalmente diferente, percebia só agora o mundo que a família, o casamento e a pátria haviam lhe privado até ali. Há pouco mais de 24 horas, Kajsa tinha saído de sua casa em Estocolmo, mas já sentia que não era mais a mesma. Aliás, estava se conhecendo, já nem sabia mais direito quem era. O que era seu “Eu” estava mudando a todo instante. Tinha uma sensação estranhíssima de si. Precisou se afastar onze mil quilômetros de sua terra natal para perceber que as alucinações que sofrera, que tinha primeiro entendido como loucura, eram um pedido de socorro de seu corpo. O vômito de alguém que comeu algo estragado. Quando entrou na idade adulta, Kajsa se encaixou bem nos trilhos da vida-via férrea sueca. Aos vinte e poucos não via graça em nada, encaminhava-se para ser uma solteirona deprimida. Achou que seria melhor assumir o relacionamento com Magnus, que não lhe dava nenhum entusiasmo, mas tranquilizava a si, sua família e a sociedade. Arrumara um trabalho que não gostava, mas remunerava bem e lhe dava uma estabilidade financeira confortável. Assumira um longo financiamento do apartamento no Kronobergsparken. Conhecera Ulrika, uma boa amiga que se interessava por suas escolhas, respeitava e lhe estimulava. A vida parecia estar resolvida, com base sólida, equilibrada, clara e segura, mas era um pouco mórbida, uma tediosa espera pela chegada da morte, demencial. O que sentia agora era completamente diferente, um salto num abismo vazio e escuro, um caos, mas que lhe dava um grande prazer em viver, o saudável desequilíbrio que passava era alegre e estimulante. Kajsa passou a ver a loucura, ou aquelas alucinações pelas quais passara, como uma grande amiga. Fez a higiene dental e tomou uma ducha quente, adormeceu como se fosse a primeira vez que dormia.
Kajsa acordou ainda estava escuro. Nunca tinha dormido tão bem, se espreguiçou com calma e sentiu-se com doze anos. Passou a mão em seu rosto e sentiu algo diferente, talvez estivesse menor. Ou talvez ela nunca tivesse se tocado de forma que se percebesse. Pela janela, viu que o céu estava estrelado e a lua cheia. Levantou de um pulo e foi olhar a praia. Ficou maravilhada com a cena. A areia da praia estava prateada pelo luar e as ondas faziam pinturas vivas como as de Van Gogh. Será que ele também tinha passado pelo que Kajsa passou? Viggosen lembrou dele ao falar da loucura e agora ela via as luzes das casinhas a beira mar exatamente como aquelas das suas pinturas. A paisagem estava viva e em movimento, ela nunca tinha reparado nada assim. Sentiu uma conexão com ele e sua arte, com a praia e as casinhas e ficou bem feliz. Viu o movimento na areia, pescadores preparando um barco a remos. Vestiu-se rápido e saiu do quarto, queria presenciar aquele trabalho braçal primitivo. O porteiro da pousada se surpreendeu com aquela hóspede madrugadora, eram quatro da manhã. Entenderam-se de alguma forma em inglês e ele a guiou até uma ponte treliçada de aço que levava até a praia sobre o canal da barra. O canal estava movimentado com embarcações de pesca saindo para o mar. Kajsa estava tão feliz que correu pela areia da praia até o barco que tinha visto da janela. Alguns homens empurravam uma enorme canoa para a água sobre troncos, eram rápidos e falavam alto. Ventava e estava um pouco frio, mas os pescadores entravam na água como se fosse verão, estavam com poucas roupas, alguns até descalços ou com chinelos de borracha. Kajsa reparou que a canoa era de um pau só, delicadamente entalhada num enorme tronco, também que os pescadores eram magros e musculosos. Quando flutuou, subiram no barco agilmente e começaram a remar contra as ondas. A canoa avançava vagarosamente, o esforço sincrônico dos homens a bordo era hercúleo, as ondas estouravam na proa e faziam a canoa subir. Kajsa ficou bem apreensiva sobre o sucesso ou não da empreitada, mas os trabalhadores na praia nem mais olhavam para o barco, já recolhiam os troncos despreocupados. Comparando o trabalho arriscado daqueles homens com o seu, eles que enfrentavam os elementos da natureza com coragem e destemor, Kajsa se percebeu patética no seu escritório. No horizonte, uma luz avermelhada anunciava a chegada do dia enquanto a canoa se afastava da praia numa cadência bem mais calma depois da rebentação. A cena era tão linda que Kajsa pensou em pinta-la e entendeu porque o mar e as embarcações entusiasmaram tanto poetas, pintores e escritores ao longo da história. Ela nunca tinha percebido tanta beleza na existência. Sentou-se na areia da praia para admirar o nascer do sol no Atlântico. Lembrou que estava sem protetor solar, sem óculos de sol, sem repelente, sem o chapéu de algodão, sem a carteira ou celular, estava sozinha num pais estranho a milhares de quilômetros de casa, mas sentia uma felicidade que a tornava plena, estava embriagada de uma alegria difícil de explicar. Kajsa chorou de soluçar, tinha nascido e enfrentava os elementos da natureza.
Com o espírito cheio de luz dos trópicos, Kajsa voltou para a pousada e se tapou de protetor solar. Louca sim, mas queimada não. Pegou todos os apetrechos de uma turista sueca e foi tomar seu café da manhã. A pousada oferecia muitas frutas, aquilo agradou Kajsa. Só o abacaxi e a manga na Suécia seriam o preço da diária. Tomou um suco de uva porque não tinha de maça, mas gostou. Os pães eram estranhos, ela escolheu um sanduiche feito com uma bagette, tinha até alface e tomate lá dentro. Saciada, saiu faceira com seus planos, pretendia caminhar pela praia e tirar fotos. Atravessando a ponte treliçada, parou para olhar o movimento, os barcos entravam na barra voltando da pescaria, agora o sol já estava alto. Algo chamou a atenção de Kajsa na água no fundo do canal, uma enorme tartaruga marinha nadava despreocupada. Para seu deleite, o bicho vinha respirar de vez em quando na superfície. Kajsa tirou várias fotos e quando já ia saindo da ponte, percebeu um pinguim também fazendo a mesma coisa que a tartaruga, ia até o fundo e voltava para respirar. Talvez eles recolhessem os restos que caiam dos barcos pesqueiros. Kajsa só tinha visto pinguins no zoológico, eles não existem no hemisfério norte. Tartarugas marinhas só em documentários da televisão. Voltou a perceber-se como uma exploradora viking, uma grande exploradora viking de doze anos bem faceirinha. Saiu rindo sozinha da ponte com aquela imagem mental que criou.
Se colocou em marcha pela enorme praia da Barra da Lagoa, tinha toda a manhã até Emma vir lhe buscar para o almoço. Havia muitos restaurantes na beira da praia, mas conforme foi caminhando, foram escasseando. Logo só via a natureza, dunas e mar. O sol e a sede começaram a castiga-la, resolveu voltar. Pegou uma viela que ia até a praia. As paisagens construídas e humanas eram tão interessantes quanto a natural. Entrou numa loja de artesanato, lá dentro uma mulher fazia renda. O trabalho era minucioso e delicado, mas rápido. As linhas pendiam presas a pesos de madeira, e a mulher manuseava os pesos fazendo a trama sobre um rolo almofadado. Kajsa lembrou de Ulrika, como ela gostaria de ver aquilo. Pediu para filmar e comprou uma grande renda para amiga. Parou num pequeno restaurante e se entendeu em mímica com o garçon, tomou um suco de laranja. Pagou com seu cartão de crédito. Até agora não tinha visto nenhum mosquito, nem no manguezal, mas todo mundo aceitava cartão. Isso lhe provava que o Brasil era no mesmo mundo da Suécia, mas com certeza um outro lado do mundo. Talvez o lado de fora do útero que a conteve até ali. Voltou para pousada para esperar Emma.
Emma e João Pedro apareceram depois da uma da tarde, Kajsa já estava faminta. Eles vieram depois da escola em estranhas bicicletas, muito enferrujadas, as duas com uma prancha de surf pendurada ao lado. Nenhuma tinha garupa para ela. Emma a tranquilizou que aquilo tudo era para tarde, agora iriam almoçar na casa de um amigo. Foram caminhando, empurrando as bicicletas. Kajsa foi falando em sueco contando suas aventuras e emoções da manhã. Emma disse que talvez Kajsa já tivesse cruzado com Neno, pois ele é pescador na Barra da Lagoa. Para surpresa de Kajsa, a casa de Neno era bem próxima a pousada e era muito, muito humilde, amontoada em meio a outras, como numa aldeia medieval, sem garagem ou carros. Emma e João Pedro foram entrando sem pedir, um forte cheiro de peixe encheu de expectativas Kajsa, ela gostava de arenque. A parte de trás da casa dava para o canal e tinha uma pequena embarcação a motor amarrada praticamente dentro da área dos fundos. Tanto a casa quanto o barco eram feitos de madeira e estavam muito velhos. Neno os recebeu com alegria, já com a mesa posta. O cheiro da comida era de salivar, tinha peixe frito, arroz, aquelas mesmas areia de mandioca e a cerveja ruim do churrasco do dia anterior e uma tigela com uma gosma estranha. O pescador e os adolescentes conversavam animadamente, Emma traduzia o que achava necessário. Seu nome era Nelson, Neno era seu apelido. Kajsa ficou contente, primeiro nome que ela conseguia pronunciar adequadamente, pois era igual em sueco. Dadá e Neno, os pobres, com apelidos de quatro letras, os ricos com pomposos nomes duplos. Aquilo chamou a atenção de Kajsa, também o fato que tanto Emma quanto João Pedro estavam tão a vontade ali quanto no condomínio de luxo. Sim, era mesmo Neno aquela manhã na canoa que Kajsa testemunhara sair, ele a tinha visto na praia. Eles estavam comendo o resultado da pescaria. O peixe frito era somente salgado, sem tempero algum. Não era arenque, claro, eram tainhotas e garoupetas, peixes jovens e sem valor comercial que tinham vindo junto na rede, mas eram deliciosos. Kajsa sentiu como se tivesse voltado no tempo, a refeição tinha o sabor da infância, das coisas simples, sentiu-se de novo aquela guerreira viking com doze anos. A gosma era pirão de peixe, também agradou muito, tinha farinha e temperos vegetais colhidos ali mesmo no canteirinho da casa. Almoçaram com o acompanhamento do barulho de embarcações descendo ou subindo o canal. Cada uma que passava balançava fortemente o barco de Neno e ele saudava os amigos com gritos e um diálogo curto.  
Kajsa percebeu que ambas as casas que já tinha visitado no Brasil tinham uma arquitetura semelhante: da rua dava para se passar para os fundos onde tinha uma área com mesa para refeições e um local com água. Na dos pais de João Pedro, uma piscina privada, na de Neno, uma canal de navegação público. Kajsa ia tomando notas mentais, sempre imaginando contar para Ulrika. Nas duas refeições que fez com nativos comeu aquela “farofa”, o nome engraçado da areia de mandioca. Também percebeu que todo mundo ficava meio em pé para comer. Ela foi convidada a sentar nas duas refeições, mas ficava desconfortável sozinha na mesa, Antônio Carlos ficava girando os espetos de carne na frente da lareira, Maria Helena ficava em pé com um joelho sobre o assento da cadeira, Neno ia e voltava do fogão com mais pedaços de peixes fritos, os dois jovens levantavam-se a toda hora para pegar bebidas, guardanapos ou qualquer outra coisa que faltasse. Era tudo muito curioso para Kajsa que começava a pintar um quadro da cultura nacional brasileira. Os ricos comiam carne, os pobres pescavam seu próprio peixe, mas tanto ricos quanto pobres gostavam de cerveja ruim bem gelada. Neno até convidou para uma voltinha de barco, mas os visitantes tinham outros planos, iam surfar na praia Mole com Kajsa e pediram uma bicicleta emprestada.
Kajsa só entendeu os planos da tarde quando Neno levou sua bicicleta para frente da casa quando terminaram de comer, entregou a ela e, ao despedir-se dos três, disse que iria chamá-la de Cacá. Emma explicou em sueco que ele havia emprestado a bicicleta e inventado um apelido para Kajsa. Ela se alegrou, tinha sido aceita e batizada no Brasil numa classe social diferente daquelas que usam Volvos. A bicicleta dele era ainda mais enferrujada que a dos outros dois, mas também tinha ganchos para levar uma prancha de surf. Os três empurraram lomba acima as bicicletas, João Pedro permanecia quieto e as duas suecas iam tagarelando, trocando experiências. A diferença social era brutal entre casas, veículos, nomes e refeições. Neno a havia incluído na casta de baixo com o apelido que criara. Emma nem tinha percebido ainda a questão dos nomes, achava que era mais uma questão de informalidade de Neno. Mas, talvez Kajsa tivesse razão, sempre chamavam Dandara de Dadá e Maria Helena era sempre Maria Helena. Consultado em português, João Pedro também nunca tinha reparado, mas lembrou que Neno o chamava de JP e na escola tinha o apelido de Chuck, o boneco assassino do filme de terror. Riram com aquilo e João Pedro acrescentou que Dandara era o nome de uma heroína da resistência negra a escravidão no Brasil, uma guerreira do Quilombo dos Palmares e o Nelson de Neno vinha de Nelson Mandela, herói da luta contra o apartheid sul africano. Kajsa, ao ouvir aquilo, se encheu de orgulho por ser reconhecida como Cacá, uma resistente a opressão. Pensou em contar para Emma o motivo de sua viagem ao Brasil.
O morro parecia não ter fim, há quinze minutos empurravam as bicicletas lomba acima. Devia estar uns vinte graus de temperatura, mas Kajsa já suava bastante. A sua rua em Estocolmo tinha uma subidinha, mas aquilo era completamente diferente, muito mais íngreme e longo. Mesmo dentro do Kronobergsparken não tinha subida tão forte. Nem na Noruega lembrava de ter visto algo assim. Chegaram próximos ao alto do morro e subiram nas bicicletas enferrujadas, as primeiras pedaladas foram difíceis, mas logo ficaram fáceis. Kajsa lembrou da cena da canoa dos pescadores na madrugada: empurrando o barco na areia, remando fortemente contra as ondas, o ritmo suave depois da rebentação rumo ao belo tom avermelhado do amanhecer no horizonte. Claro que Neno era magro e musculoso, fazia tanto esforço físico no cotidiano. Agora ela ali também estava tornando-se uma pessoa que enfrenta os elementos da natureza. Empurrou a bicicleta lomba acima como a canoa na areia, pedalou forte perto do fim da subida como o início da remada, para só então desfrutar aquela paisagem de cartão postal da praia Mole deslizando lomba abaixo como o nascer do sol no mar.  
A praia Mole era realmente mole, a areia era fofa, difícil de caminhar. Largaram as bicicletas empilhadas longe da água e as prenderam com um cadeado. As ondas eram fortes e arrebentavam em cima da areia. Não era à toa as bicicletas estarem tão enferrujadas, a maresia era visível a olho nu. Kajsa achou bonito, mas não gostou muito, estava desconfortável, mas não falou nada. Tinha muito vento, não daria para caminhar e muito menos entrar na água, era um mar forte demais. Emma explicou que o interessante ali era o surf, tinha boas ondas, os dois gostavam. Conheceram Neno ali, surfavam juntos nos finais de tarde. Ele era bem mais velho, tinha uns trinta anos, mas os mesmos hábitos da juventude, apesar do rosto já bem marcado do trabalho enfrentando o mar todo dia e sob sol. Enquanto os dois jovens colocavam roupa especial para entrar no mar, Kajsa tirava fotos e explicava a Emma, resumidamente, porque tinha vindo ao Brasil. Era uma sugestão de Viggosen, o pai de Emma, ele achava que Kajsa precisava de umas boas férias, sugeriu Florianópolis porque as descrições que fazia das coisas que via em suas alucinações pareciam com algumas fotos que Emma mandava dali. Viggosen acreditava que Kajsa deveria procurar aquilo para se curar. Mas até agora, Kajsa não tinha visto nada parecido com as visões que tivera. Emma e João Pedro já se alongavam para entrar no mar quando Kajsa descreveu o promontório de rocha que tinha visto, alto em relação ao mar e cercado de arbustos retorcidos e cactáceas. Emma parou de se alongar, conversou com João Pedro em português, colocou o tênis de volta e soltou as bicicletas, sabia onde era o lugar. João Pedro entrou na água com sua prancha e as duas saíram de bicicleta pela estrada.
Pedalaram uns dois quilômetros e subiram empurrando as bicicletas outro morro. Entraram numa trilha ao lado da praia Mole. Acorrentaram as bicicletas numa árvore e seguiram caminhando. A trilha era muito bonita, passava por uma pequena praia, por ranchos de pescadores, por campos com vacas, bem no alto do morro tinha uma rampa de asa delta de onde se via toda praia Mole, até identificaram João Pedro surfando! Emma caminhava rápido e Kajsa tinha dificuldade em segui-la, não estava acostumada a caminhar em trilhas tão precárias, olhava o caminho com cuidado, não queria torcer o tornozelo. Mas conforme caminhava sua ansiedade aumentava, a vegetação ficava cada vez mais parecida com os arbustos do promontório. Caminharam cerca de uma hora, até que Emma parou e se voltou para Kajsa. Ali João Pedro tinha tirado umas fotos dela que enviou para seu pai ainda no verão. Kajsa chegou arfando do esforço da subida e levantou a cabeça, Emma a olhava sorridente com a roupa de surfar bem no meio de um promontório de rocha. No momento que viu aquela cena, Kajsa a reconheceu de imediato. Sentiu uma sensação estranhíssima, seu mundo caiu. Lembrou de uma foto que tinha visto nalguma rede social de Viggosen, agora era óbvio e nítido. Olhou em volta, o mar, a temperatura, a claridade, os arbustos espinhosos, o cheiro e a cor do mar, era tudo igual, menos o sol sobre a cabeça. Sim, era ali mesmo. Emma lhe chamou a atenção que era inverno e já quase quatro da tarde, talvez na foto não tivesse mesmo sombra. Toda a mística no entorno das alucinações que tivera desapareceu totalmente. As duas sentaram olhando o mar e Kajsa contou detalhadamente tudo que vivera ali. A paz, a dancinha, o tempo de espera, as bolhas de queimadura, Tig, não ver saída, o desespero, o flash acabar na frente dos clientes do escritório. Agora conseguia rir, mas tinha sido apavorante. Viggosen tinha razão. Estar sentada ali, tranquilamente conversando com Emma, era um remédio milagroso. Agora sentia-se até frustrada, nem suas ilusões eram reais. Emma riu, contou que às vezes vinha ali com Neno, João Pedro e outros amigos fumar maconha, pois estados alterados da consciência podem ser muito bons. Kajsa lhe deu razão, porque agora sentia-se órfã de sua loucura, queria ela de volta. O sol começou a se por e voltaram caminhando lentamente pela trilha, cada uma com suas reflexões.
João Pedro já lhes esperava inquieto na praia Mole, tinham muito o que pedalar até em casa. Maria Helena ia xingar se chegassem à noite. Se despediram, os adolescentes voltaram para casa e Kajsa para a pousada na Barra da Lagoa. Ela estava bem cansada, mas ainda teve que subir todo aquele morro, na volta a subida era menos íngreme. Largou a bicicleta de Neno no mesmo lugar que tinha visto ele pegar, por sorte não estava em casa, não conseguiria conversar em português. Caminhou o pequeno trecho até a pousada desanimada. Entrou no quarto e deitou na cama, tinha fome, mas nenhuma vontade de sair. Mandou muitas fotos para Ulrika e uma pequena seleção para Magnus, Viggosen, sua irmã e alguns amigos como Klaus e Martin. Escreveu uma longa mensagem para Ulrika contando a experiência da madrugada, a emoção que sentiu ao ver a paisagem viva como nos quadros de Van Gogh, o esforço dos pescadores, a beleza do amanhecer, a alegria infinita que sentiu ao perceber-se sozinha e sem carteira, celular ou protetor solar, mas com muita gana de viver. Contou do apelido que recebera de Neno e como aquilo a tinha alegrado, não era mais Kajsa, a insossa agente de seguros, mas Cacá, a jovem aventureira Viking. E no fim, com tristeza, relatou o encontro com o rochedo das alucinações, como tinha sido desapontador. Que sua loucura era uma mera ilusão, uma febre pela qual passara, continuava a mesma Kajsa, velha e sem graça, que tinha um casamento de fachada e comprava Volvos por serem seguros. O entusiasmo da manhã tinha se transformado em total frustração à noite. Percebia sua vida agora como uma prisão e as alucinações tinham sido uma grade aberta por pouco tempo. Mandou a mensagem e foi tomar um banho quente entristecida.
Pensou que Ulrika não iria responder, já era mais de meia noite na Suécia. Fez a higiene dental e ao deitar na cama percebeu que ela tinha telefonado. Kajsa se alegrou e retornou a ligação. Ulrika era quatro anos mais moça que Kajsa, mas sempre sabia o que dizer na hora exata, estava acordada só para receber os relatos da amiga. Compreendia sua decepção ao encontrar o promontório de rocha, a mística das alucinações tinha evaporado. Mas de jeito nenhum Kajsa tinha voltado a ser a mesma, isso era impossível. Ulrika começou a relembrar toda a trajetória dela desde que se conheceram na seguradora. Aquela Kajsa que era uma moça morna morreu. Aquela apagada, deprimida, que trabalhava sem parar para não pensar em mais nada, que dificilmente ia passear nas férias ou mesmo nos finais de semana, que não se empolgava nem para ir a um cinema, que mantinha uma rotina rígida, morreu depois das alucinações! A nova Kajsa que nasceu agora era uma mulher decidida, autônoma, independente, empoderada, que cruzava o mundo atrás de auto conhecimento e clareza de espírito. Ulrika lembrou a colega que ela há duas semanas estava indo ao médico com sintomas evidentes de burnout e agora estava fazendo trilhas selvagens num país distante, provando comidas típicas de culturas diferentes, conhecendo jovens cheios de vida em praias paradisíacas. Kajsa se emocionou e começou a chorar. Era verdade, não precisava voltar a ser aquela pessoa morna. Ulrika era ateia, mas filha de pastor luterano, pregava usando o conhecimento que tinha herdado do pai, seguiu falando, inapelável. Lembrou de uma passagem bíblica sobre os mornos em que Deus ameaça vomita-los. Kajsa agora era quente, cheia de vida, estava há pouco mais de 48 horas vivendo um sonho de muitos suecos, conhecendo terras além mar, era uma legítima viking, uma guerreira, uma desbravadora apaixonante. Ulrika terminou seu discurso de forma surpreendente. Afirmou que amava Kajsa ainda mais depois das alucinações, a admirava pela coragem e que seu exemplo tinha a feito repensar muito de sua vida. Kajsa, que soluçava, pensou não ter ouvido direito e começou a rir. Como?
Ulrika era chefia na seguradora, decretou que segunda-feira iria se dar férias e também iria ao Brasil viver aquelas emoções com Kajsa. Desde que tivera as alucinações, Kajsa vivia uma avalanche emocional, realmente não sentia mais falta de Magnus, nem lembrava dele. Percebeu que Ulrika não viajaria até Florianópolis para ter emoções como as dela, era uma mulher prática. Kajsa a conhecia bem, sabia de suas preferências, sentiu-se um pouco acuada, Ulrika vinha obviamente atrás dela. Kajsa ria, aquela possibilidade lhe alegrava, na verdade até lhe excitava. Enfim, transigiu, agora chorando de rir com a amiga ao telefone, afinal havia saído daquele platô de vida que não a satisfazia. Custou a dormir, estava bem animada.
No café da manhã, Kajsa estava radiante. Nem parecia aquela mesma turista cabisbaixa da noite anterior. Conversou com a sorridente atendente da pousada com a ajuda do celular para traduzir o que queria: frutas e comidas típicas de Florianópolis. A moça fez um prato com vergamotas poncan, goiabas, um pequeno pão branco de trigo e um “romeu e julieta”, um pedaço de goiabada com queijo. Comia animada olhando a praia, o sol já ia alto quando reconheceu as vozes que gritavam: Cacáááá!!! Levantou e colocou a cabeça para fora da janela olhando para baixo. Neno e os adolescentes abanavam alegres de dentro do barco no canal. Kajsa achava muito estranho que os adolescentes a ficavam pajeando, mas adorava. Pegou suas coisas de turista, óculos, chapéu ridículo, bolsa de praia, desceu as escadinhas correndo e entrou no bote rindo, lembrou do que Ulrika falou da convivência com os jovens. Mal ela embarcou, saíram a navegar pela barra. Era sábado e os dois estudantes não tinham aula. Emma explicou todo o plano: iam dar uma voltinha em mar aberto, já que o tempo estava bom, até a ilha do Campeche. João Pedro tinha pago o combustível para o motor. Os três tinham trazido uma grande caixa térmica com bebidas e comidas. Neno ia na popa segurando a cana do leme com um velho boné socado na cabeça, Kajsa sentada perto dele, Emma e João Pedro imitavam a cena do filme Titanic na proa conversando sem parar em português. Neno a alcançou um copo com limão e gelo e deu um pequeno discurso que Kajsa não entendeu. Emma explicou que era caipirinha, uma bebida típica com cachaça, limão e açúcar. Neno havia oferecido porque ela logo iria vomitar tudo, então ele queria lhe dar um bom motivo para passar mal. A caipirinha foi aprovada com uma exclamação contente de Kajsa, mais uma palavra deliciosa para seu vocabulário brasileiro. Ela nem gostava muito de beber destilados, mas aquele era diferente. Foi orientada a olhar para o horizonte para não ficar mareada. O barquinho subia as ondas com lerdeza, parecia que não ia conseguir, depois as descia correndo. Quando na crista, se via ao longe, quando embaixo, somente o azul profundo do mar. O compassado barulho do motor, tup, tup, tup, era abafado pelo vento. O tamanho da embarcação era infinitesimal diante da magnitude do oceano, mas Kajsa não sentiu medo, ao contrário, sentiu-se maravilhosamente viva. Foi para a proa do bote, levantou os braços para o alto e gritou triunfante que era uma guerreira viking. Emma traduziu e Neno brincou que a caipirinha já tinha feito efeito.
A paisagem era lindíssima e de longe os morros nem pareciam tão altos. Neno ia apontando as praias que passavam: Galheta, Mole, Gravatá, Joaquina. Emma apontou o promontório no qual estiveram no dia anterior, Kajsa achou tão minúsculo visto dali. A cada dia ficava menor, era uma metáfora de sua vida: ela estava numa prisão a céu aberto, mas desde que decidiu viajar tinha se libertado das alucinações e aquele rochedo a beira mar tinha ficado num passado remoto e esquecido. Parecia ter se tornado somente um marco divisor: Kajsa antes e depois da rocha. As ondas estouravam nos costões, mas daquela distância Kajsa se sentia totalmente à vontade. Neno ofereceu um colete salva-vidas, mas ela recusou, estava gostando daquela liberdade. A insegurança e imprevisibilidade da situação teriam lhe angustiado muito em outros tempos, mas agora Kajsa era Cacá, uma outra mulher, totalmente segura de si. Não precisava mais de Volvos com dez airbags, sentia-se muito melhor em frágeis caícos de madeira velha subindo e descendo ondas no oceano. 
A viagem demorou mais de duas horas, mas felizmente ninguém ficou mareado. Finalmente o barco subiu na areia fofa da praia da Ilha do Campeche. Havia dois restaurantes na pequena baía, mas os dois estavam fechados, talvez por ser inverno, mas não estavam sozinhos na pequena ilha, um guarda parque veio avisá-los que poderiam ficar por somente quatro horas e não poderiam deixar lixo de nenhuma espécie. Saltaram do bote e Neno enterrou sem muito cuidado a âncora. Kajsa olhou para a pequena embarcação que parecia estar cravada na areia como uma lança a flutuar no ar, tal a transparência da água. No horizonte, há uns dois quilômetros, estava a grande Ilha de Santa Catarina onde ficava Florianópolis. Desembarcaram a caixa térmica de comida e colocaram na sombra das árvores. Neno teve o cuidado de colocar um pedaço de madeira e uma pedra sobre a tampa, Kajsa não entendeu o porquê. Os adolescentes correram pela areia branca como crianças felizes num playground e sumiram na floresta. Sempre a chamando de Cacá, Neno a convidou com gestos para segui-lo, pegaram uma trilha no meio do mato e logo ele parou e surpreendentemente falou algumas palavras em inglês. Mostrou algumas escavações na rocha do chão, era uma oficina lítica de indígenas primitivos que afiavam machados de pedra lascada ali. Neno gesticulava animado, mostrando como faziam. Kajsa ficou muito impressionada com aquele testemunho da idade da pedra, mas será que realmente seriam do neolítico? Na dúvida, fotografou tudo. Seguiram a trilha e chegaram num ponto alto onde se descortinava todo o oceano Atlântico, uma paisagem belíssima. Neno voltou-se para ela e para as rochas e apontou geoglífos, enormes pinturas rupestres no alto do rochedo. Kajsa se encantou com aquilo, mas Neno nem deu muito tempo de contemplação, seguiu com a caminhada. Pararam novamente numa espécie de gruta, cheia de pinturas rupestres na entrada, nas paredes e no teto da pequena caverna, algumas esculpidas em baixo relevo na rocha. Neno gesticulava, apontava e falava sem parar, mas Kajsa não entendeu nada. Se fossem mesmo autênticas, a ilha inteira era um sítio arqueológico de importância maiúscula. Voltaram para a praia dando uma grande volta na ilha. A vegetação do lado do oceano era igual a do promontório das alucinações, arbustiva, mas o lado do continente era de grandes árvores. Coatis os esperavam na areia, farejando sua caixa de mantimentos. Neno correu para espantá-los.
Os adolescentes tinham sumido. Neno explicou com gestos e uma palavra bem conhecida em inglês o que eles provavelmente estavam fazendo. Subiu no barco agilmente e pegou um enorme saco de papelão e alguns espetos. Voltou para baixo das árvores e abriu o saco que continha carvão. Vendo aquela movimentação, o guarda parque se aproximou de novo e disse que acender fogo não era permitido na ilha. Neno argumentou que levaria as cinzas consigo no bote e o convidou para um churrasco. O rapaz então cedeu, os convidou para assar o churrasco na cozinha do restaurante. Kajsa percebeu a negociação e ficou perplexa, na Suécia jamais alguém desobedeceria a ordem de uma autoridade e muito menos se arriscaria a oferecer propina para obter alguma vantagem. Mas os dois pareciam extremamente tranquilos, não havia a menor tensão, o diálogo era amistoso e sorridente. Na cozinha do restaurante tinha uma lareira alta, como aquela da casa dos pais de João Pedro, mas enorme, Neno a chamou de “churrasqueira”. Rapidamente acenderam o fogo e espetaram a carne que tinham trazido. Neno e o guarda conversavam animadamente e riam. O guarda se chamava Lenoir, mas preferia ser chamado de Lélo. Com aquele apelido, Kajsa imediatamente identificou a classe social do rapaz. Neno fez as apresentações, ele era Neno e ela Cacá. Estava tudo em casa, o grupo virou uma família, o rapaz ofereceu e abriu uma cerveja ruim bem gelada.
A carne já estava quase pronta quando entraram na cozinha os adolescentes. Foram atraídos pelo cheiro. Os dois sem saber onde por as mãos, com aquela cara alegre de quem fez alguma peraltice muito boa, mas finge normalidade. Lélo aprontou uma grande mesa na rua, de frente para baía, não tinha a menor intenção de se esconder. Kajsa ajudou com os talheres e Emma com os pratos. Em sueco conversavam sobre a ilha, as pinturas rupestres, as oficinas líticas, a negociação de Neno com o guarda. Emma disse que sim, Florianópolis inteira era um sítio arqueológico importante e tinha muito mais daquelas pinturas e escavações na rocha para ver, queria até mostrar um monumento megalítico enorme perto da pousada, planejava fazer a caminhada amanhã com Kajsa. Sentaram na mesa olhando a paisagem e conversando, enquanto João Pedro e os homens riam e bebiam juntos lá dentro da cozinha cuidando os espetos na churrasqueira. Sim, a corrupção que testemunhara era bastante comum no Brasil, Maria Helena deu um carro para João Pedro, mas ele nem idade tem para tirar a licença para dirigir. As oficinas líticas que Kajsa viu tinham uma curiosidade, estavam a três metros do nível do mar, isso indicava que o mar desceu muito, pois elas devem estar banhadas para funcionar. Emma já tinha visitado a ilha no verão e estudado aquilo na escola há pouco mais de um mês, achava um assunto apaixonante, foi ela que propôs o passeio até ali. Kajsa se sentiu muito bem acolhida: Emma planejava passeios, João Pedro até pagava combustível e Neno patrocinava o barco e a carne.
Depois de uns segundos de silêncio, contemplando a paisagem, Emma falou que ela e João Pedro tinham acabado de perder a virgindade. Kajsa se surpreendeu com a declaração, agradeceu a confiança que Emma depositava nela para contar, disse que percebeu o clima entre eles. Emma seguiu falando, disse que foi bom, mas nada muito especial como diziam que seria, sinceramente achava melhor sozinha no banheiro. Kajsa queria dizer: bem-vinda ao clube! Mas se conteve, não queria desapontar uma moça cheia de esperanças. Deu um discurso professoral, que na primeira vez é assim mesmo, difícil se entender direito. Sexo é uma linguagem que se aprende fazendo, como caminhar ou andar de bicicleta. Nas primeiras vezes que um bebê caminha, anda todo torto, titubeia e cai, no sexo não é diferente, é preciso muita prática par se chegar a perfeição. Também alertou para o fato que João Pedro, por ser também inexperiente, talvez não tenha sido um bom parceiro. Emma achava que o problema era com ela, porque ele gostou, até gozou. Kajsa começou a ficar nervosa, não tinha formação para aquela conversa, era uma simples corretora de seguros em crise, nem filhos tinha justamente para não se incomodar com aquele tipo de papo. O relacionamento entre as duas estava tão bom até agora, tão leve, uma turista e uma jovem guia turística em começo de carreira. Perguntou sobre a prevenção e Emma a tranquilizou, ufa. O que diria para Viggosen? Diria alguma coisa? Ele já deve ter feito várias falas, era ginecologista, Kajsa não precisava ensinar nada, se acalmou um pouco. Contou para a adolescente que para ela também, nunca tinha sido muito bom. Nem sozinha tinha se divertido muito, talvez não tenha achado os parceiros ideais. Kajsa se flagrou falando para Emma coisas que nunca tinha dito nem para si. Percebeu que estava contaminando a experiência da menina e calou-se bem na hora que os rapazes chegavam com a carne e cervejas para o almoço.
 Comeram em silêncio. Kajsa perdida em reflexões sobre sua própria sexualidade, Emma lançando olhares para João Pedro que desviava o mais que podia fingindo interagir com os dois homens que eram os únicos que falavam e riam, já um pouco alcoolizados. O cardápio era simples: costela bovina, farofa e uma curiosa salada de batata gelada com maionese e ovos. Terminada a refeição, Lélo se dispôs a lavar os pratos para pagar sua parte de alguma forma, Neno deitou numa sombra para sestear e os adolescentes sentaram-se numa pedra a olhar o mar. Kajsa ficou sozinha na mesa, ainda engasgada com o que dissera para Emma. Precisou vir do outro lado do mundo, interagir com uma menina recém deflorada num paraíso tropical, para perceber que era frustrada sexualmente. Olhou para Neno deitado na sombra com o boné sobre o rosto. Ele era jovem, magro, bonito, musculoso. Será que um amante latino seria um bom parceiro sexual? Não, não lhe dava nem um mínimo interesse. Magnus? Talvez no passado, mas agora não. Kajsa lembrou de Ulrika e imediatamente ficou excitada. Quando olhava sua supervisora como mulher, não como chefia, ela lhe atraía. Era estranho, Kajsa nunca tinha tido experiências eróticas com outra mulher, mas agora estava louca para experimentar. Será que as alucinações tinham sido provocadas por aquele acanhamento sexual? Será que um enorme orgasmo estava entalado no seu clitóris ou no seu cérebro atrapalhando o bom discernimento das coisas? Kajsa estava cheia de perguntas e poucas respostas. Sentia-se ao mesmo tempo uma velha com o libido represado por cinquenta e três anos e uma intrépida guerreira viking de doze anos descobrindo sua sexualidade.
O silêncio imperava na pequena ilha favorecendo as reflexões de Kajsa. De repente, um aracuã pousa na outra ponta da mesa a fazendo despertar do transe em que estava, havia muitos pássaros cantando e ela nem havia percebido. Levantou-se e foi até o mar, despiu-se ficando só de calcinha e sutien e entrou na água. Emma e João a viram e correram até o barco. Subiram na embarcação e a fotografaram mergulhada nas águas transparentes. Kajsa não nadava desde os dez anos de idade, ou algo assim, sentiu-se viva e feliz. Apesar de ser inverno, a água estava boa. João Pedro e Emma também se despiram e se atiraram do bote. A alegre algazarra na praia despertou Neno que finalmente levantou-se da sesta e se aproximou, alertou que estava relativamente frio para aquele batismo de Kajsa nas águas brasileiras, até o vento secar ia demorar. Os três saíram da água batendo queixo, apesar do sol. Kajsa tinha uma toalha na sua bolsa de praia, Emma outra e Lélo foi buscar mais uma para João Pedro no restaurante. Quando Lélo voltava com a toalha para o rapaz, Neno já saia da praia rindo, constrangido com as duas gringas malucas que se secavam em público, foi buscar os espetos e a caixa térmica. Os três homens brasileiros ficaram absolutamente sem ação quando as duas suecas resolveram trocar-se ali mesmo, ao lado do barco, bem tranquilas com seus mamilos enrijecidos e pelos pubianos quase a mostra, secaram-se rapidamente e vestiram suas roupas secas de novo, sem sutien ou calcinha. João Pedro se sentiu obrigado a fazer o mesmo, até para abafar o erotismo dos outros dois, mas era óbvio seu constrangimento. Emma percebeu e comentou com Kajsa, a diferença cultural era evidente. Os brasileiros beijam e abraçam estranhos, mas se chocam ao ver um cantinho de peito feminino fora de contexto. Despediram-se de Lélo e partiram. A volta foi bem silenciosa, Neno de ressaca na popa e os três banhistas abraçados com frio a meia nau.
Por volta das cinco da tarde entraram no canal da barra, o sol já se punha atrás dos morros. Ao passar entre os faróis, Kajsa sentiu-se em casa. Aquele pensamento a espantou. Há quatro dias, casa era um lugar bem diferente. Pararam o barco no atracadouro da pousada e Kajsa desembarcou. Percebeu que Emma estava com os beiços roxos e a convidou para um banho quente, mas ela disse que estava bem e logo chegaria em casa, o carro de João Pedro estava perto da Casa de Neno. Despediram-se e o bote sumiu numa curva do canal. Kajsa subiu rápido as escadas e entrou no banho. Ligou o ar-condicionado no quente e logo estava bem aquecida. Deitou na cama olhando para o teto e se deixou descansar, estava esgotada. Percebeu seu corpo afundando no colchão e a respiração ficando bem lenta, entrou num estado de profundo relaxamento. Fechou os olhos e pensou que adormeceria, mas não. Estava mais desperta que nunca e em sua mente desfilava todas as paisagens do dia. Começou a perceber uma suave ondulação, como se seu corpo ainda estivesse no barco em alto mar. Aquela sensação não sentia desde a infância. Lembrou do mergulho nas águas da baía e como aquilo a tinha alegrado, das pinturas rupestres e das oficinas líticas. O dia tinha sido cheio. Quando pensou na conversa com Emma sobre sexo lembrou de Ulrika e tocou sua vulva sentindo uma vertiginosa excitação. Levantou de um pulo assustada e pegou seu celular.
Emma tinha mandado as fotos de Kajsa nadando submersa ao lado do barco, eram fotos maravilhosas, parecia estar voando, pois a sua sombra indicava a distância ao chão de areia. Imediatamente encaminhou para Ulrika, junto com as fotos das oficinas líticas, das pinturas rupestres, das paisagens de sonho da Ilha do Campeche e da viagem de barco. Passados uns minutos intermináveis para dar tempo de pelo menos ver alguma imagem do passeio, ligou para a amiga. A primeira coisa que perguntou é se Ulrika estava falando sério de se dar férias e vir ao Brasil. Sim, já tinha até comprado a passagem via internet. Chegaria em Florianópolis quarta-feira às oito da manhã. Kajsa começou a chorar e rir ao mesmo tempo, exultava. Começou a contar todo seu dia, desde o café da manhã com Romeu e Julieta, os gritos por Cacá do barco, a recusa do colete salva-vidas, o quão insignificante o promontório ficou de longe, a praia de águas transparentes, a trilha com testemunhos neolíticos, os coatis, a negociação com o guarda parque, o churrasco de costela entre os pobres com apelidos de quatro letras na baía paradisíaca, o mergulho, o frio da volta. A conversa com Emma rendeu muito papo, foi a parte do relato que Ulrika mais gostou. Ela chamou atenção de Kajsa para o contraste do ânimo da noite passada para aquela. De como ela tinha crescido em um dia. Kajsa realmente tinha nascido, saído do útero que lhe tirava a liberdade. Aberto os braços e as pernas e mergulhado nos elementos da natureza sem medo e sem salva vidas ou airbags. Estava crescendo visivelmente e até ajudava os mais novos como Emma. Sobre a sexualidade, Ulrika falou que achava que tinha como contribuir para as descobertas que Kajsa estava fazendo. As últimas conversas com Ulrika lhe entusiasmaram muito, enchiam seu coração de esperança.
Pela manhã, Kajsa tomava seu café olhando a praia e refletindo sobre o dia anterior quando Emma chegou de bicicleta, sozinha e macambúzia. João Pedro estava muito diferente com ela. Parecia não querer mais nem que ficasse no Brasil. Kajsa tentou consolá-la, talvez a situação voltasse logo ao normal. Para Emma nada tinha mudado entre eles, foi só sexo, mas ele entendia obviamente de outra forma e ela não conseguia decifrá-lo. Percebeu uma diferença cultural ou de gênero importante e não sabia como reverter o mal estar. Mas o fato é que ele preferiu não vir, apesar de ser domingo e os planos serem muito legais. Ao lembrar disso, a menina se alegrou, começou a falar da caminhada que fariam enquanto espetava um pedaço de melão no prato da amiga. Era pertinho dali, Kajsa não precisava se assustar ou levar muito equipamento, talvez uma hora de caminhada, logo voltariam para almoçar. Esperou Kajsa dar por terminado o desjejum e vestir todos seus apetrechos de turista com certa impaciência e se puseram em marcha.
Pertinho da porta da pousada tinha uma trilha que subia o morro. Passaram por vielas entre casas humildes e logo estavam em meio a floresta de encosta da mata atlântica. A vegetação era tão luxuriante que Kajsa ficou extasiada, havia um cheiro de mata no ar. Emma já havia passado por ali com a escola, então nem deu muita bola, seguia subindo o morro rápido sem dar tempo para as fotos de Kajsa. Aos poucos a trilha se abriu, ficou menos íngreme e a vegetação ficou muito semelhante àquela do promontório, arbustiva. A paisagem ficou de sonho, de uma perfeição de tirar o fôlego. Mesmo porque Kajsa estava ofegante da subida e parava a toda hora para uma foto. O caminho ficou fácil e plano, caminhavam exatamente na crista do morro, de um lado se via a grande lagoa da ilha e a praia da Barra e de outro o oceano. Emma a apressava, dizia que depois a vista ficaria ainda melhor. Melhor que aquilo? Kajsa nunca tinha visto tanta beleza. A altura em relação ao mar era muito semelhante aos fiordes da Noruega, uns duzentos metros, mas de resto era tudo diferente e espantoso, tinha longas baías de praias de areias brancas, costões de pedra e morros cobertos por aquela vegetação curiosa que já era familiar a Kajsa. Tudo muito claro, o azul do céu, o verde do mar, o sol da manhã já estava alto. Kajsa nunca tinha visto cores tão vivas e estimulantes. Em pouco tempo chegaram até grandes rochas, matacões de granito cinzento. Emma finalmente parou, se empertigou e começou a discursar tudo que aprendera com o professor de geografia. Apontou as pedras e falou que eram monumentos megalíticos, organizados de tal forma que serviam de observatórios astronômicos para determinar os solstícios e equinócios. No início, Kajsa não deu muita atenção para a explicação, mas logo lembrou das pinturas rupestres da Ilha do Campeche que haviam visitado no dia anterior e passou a levar muito a sério a aula da adolescente. As pedras eram muito grandes e pesadas, mas estavam obviamente arrumadas em ordem no chão, como em Stonehenge na Inglaterra. Kajsa ficou surpresa, nunca tinha ouvido falar de Florianópolis antes das alucinações e muito menos que tinha outros observatórios astronômicos primitivos no mundo, mas como monumentos megalíticos podem ficar assim sem a devida publicidade? No sul da Suécia tinha os Ales Stenar, em Kåseberga, mas lá não tinha uma função de observatório astronômico, pelo menos que ela soubesse, era somente um grande barco de pedra. Emma, entusiasmada, apontava outras pedras no horizonte que serviam de alça de mira para observações astronômicas, uma delas em especial, o promontório de rocha das alucinações de Kajsa! O que? O promontório, além de tudo, não era só uma rocha a beira mar? Nesse instante um raio gelado correu a espinha de Kajsa. Todo o desapontamento que havia sofrido por aquele lugar desapareceu e sua mística voltou integralmente, Kajsa sentiu-se una com aquelas pedras e com os povos primitivos que as colocaram ali, tão mais sábios do que ela. Lembrou da falta de sombras nas alucinações, era solstício de verão! De alguma forma, as alucinações a sintonizaram de forma muito harmoniosa com aquele lugar.
Kajsa ficou um longo tempo em silêncio, Emma percebeu que tinha tocado em algum ponto sensível da amiga e respeitou seu momento. Devia estar uns quinze graus de temperatura e algumas nuvens cobriram o sol, mas Kajsa sentiu conforto com o vento frio que as envolvia. Seus corpos ainda suavam do esforço da escalada. O cheiro de peixe e sal do mar subiu até ali. Ela olhava as pedras e imaginava o esforço que foi necessário para por em pé e em cima do morro aquelas imensas rochas em posição. Quantos Nenos, Lélos e Dadás, trabalhadores magros e musculosos, foram necessários para deixar tudo pronto. Aquela capacidade, tanta fibra e força, era tão distante da sua realidade, que Kajsa se percebeu inferior a eles. Kajsa e Emma sentaram-se no dolmen principal do monumento e ficaram a contemplar o horizonte. Neste instante, ao longe, Kajsa viu uma baleia saltar para fora d’água como num documentário de televisão. O corpo inteiro, gigante, todo para fora d’água, mesmo àquela distância podia ser visto com detalhes. Não é possível descrever com precisão a emoção que sentiu naquele momento. Com um grito de alegria, apontou para Emma onde avistara e ela ainda pode ver aquele corpo gigantesco caindo, esparramando água. Um misto de choro e riso descontrolado das duas se seguiu. Pulavam e gritavam de prazer, sem tirar os olhos daquele pedaço de mar. Mais quinze segundos e outra baleia pulou também, no mesmo lugar, com a mesma magnífica exuberância da primeira. Foi um dos momentos mais felizes de suas existências. Em pouco tempo de observação já tinham testemunhado dois saltos maravilhosos, pensaram que teriam um festival de baleias saltando. Ficaram mais meia hora ali, até começar a bater o queixo de frio. Então resolveram voltar a pousada. Aquele momento as uniu muito. Kajsa sentia-se jovem como Emma, estava com um frescor de vida que nunca havia sentido, nem mesmo na idade dela.
Desceram o morro e a atividade as aqueceu o corpo, resolveram ir direto almoçar, já era quase meio dia. Atravessaram a ponte treliçada do canal da barra e caminharam pela praia até um restaurante que as agradou. Apesar das mesas ao ar livre de frente para o mar serem convidativas, estava frio e resolveram entrar. O garçom era bem parecido com Neno. Emma decifrou o cardápio e sugeriu ostras gratinadas e risoto de berbigão dizendo que eram especialidades da cozinha local. Kajsa achou ótimo que agora tinha uma guia turística que conhecia muitas atrações sensacionais, sabia ler o cardápio em português e traduzir para o sueco. Emma pediu uma cerveja com nome alemão. Beberam e era bem melhor que as que tinham provado até ali no país. Kajsa nem era muito de cerveja, mas como tudo em sua vida estava de cabeça para baixo, até gostou da sugestão. Enquanto esperavam a comida, conversavam sobre os planos da tarde. Ali perto tinha uma projeto de preservação das tartarugas marinhas, poderiam ir caminhando à tarde e ficava aberto aos domingos para visitação. Emma, para variar, já tinha visitado com a escola. Kajsa ficou impressionada com a qualidade da educação no Brasil assim como a preservação da natureza e dos testemunhos primitivos. Emma alertou que sua escola era particular, bem diferente das escolas públicas da maioria da população. Também que os brasileiros viviam reclamando que a natureza e os monumentos megalíticos, oficinas líticas e pinturas rupestres estavam largados à própria sorte.
A conversa derivou para Emma e seu João Pedro. O sexo tinha atrapalhado a relação entre eles, Emma acreditava que seria ao contrário, ela tinha os olhos vivos, um olhar desafiador, era cheia de vida, quando ria enchia a sala de alegria, cheia de ideias, contava pequenas histórias que aconteceram entre eles ou mesmo com outros namoradinhos no Brasil e na Suécia, confusões na escola, falava mais e mais alto que uma sueca “normal”, era muito confiante. Kajsa não era páreo para competir com ela em matéria de papo divertido ou minimamente interessante, só saberia falar de seguros, seu carro, seu apartamento, seus lençóis de linho, talvez um pouco sobre as políticas do governo ou da economia. Mas Emma propunha uma conversa diferente, aquilo era um diálogo em sueco num país do outro lado do mundo, ela não tinha nenhuma desculpa para se esquivar de qualquer assunto. Além disso, ela era a adulta da dupla, tinha muito mais experiência de vida, precisava contribuir de alguma forma. Sentiu-se obrigada a voltar a falar de sua intimidade com Magnus com aquela menina de dezessete anos. Suas experiências eram poucas, teria que usar o material que tinha. Repetiu as mesmas frases da conversa da ilha do Campeche, mas, aos poucos, surpreendeu-se bem à vontade para abrir seu cofre subconsciente que até mesmo para ela era uma novidade. Entre Magnus e ela, sexo era raro, também nunca tinha sido muito satisfatório. Kajsa achava que para ele também não era grande coisa. Ultimamente estava mais interessada em experimentar com uma colega de trabalho que chegaria a Florianópolis em poucos dias. Sim, Kajsa tinha dito isso em voz alta, para uma sueca, filha de conhecidos, estava definitivamente louca! A comida chegou e seu cheiro preencheu todo o ambiente. Era bonita, perfumada, colorida, e saborosa como tudo no Brasil que Kajsa experimentara até ali. As duas comeram enquanto Emma contava mais causos e Kajsa refletia sobre sua loucura.
Seria loucura desejar alguém do mesmo sexo? Ou a insanidade seria ficar com alguém do sexo oposto sem desejo nenhum? Kajsa estava confusa, seus questionamentos internos atrapalhavam a degustação da comida. Ela queria concentrar-se no sabor do risoto de berbigão, que era algo de se comer babando tudo, mas ficava mastigando seus conflitos. Raspava uma ostra coberta com queijo derretido e lembrava de toda sua trajetória com Magnus. Ele era um cara legal, se conheceram na universidade, tinham sonhos em comum, realizaram quase todos. Mas o mundo deu tantas voltas desde então. Ela não era mais aquela universitária do interior, meio pobre, meio ignorante. Nem ele! Em termos materiais os dois se saíram muito bem. Ele tinha saído de Ramvik, um pequeno vilarejo de beira de estrada, muito mais ao norte que Upsalla. Tinha se formado em engenharia e conseguido um bom emprego numa grande companhia, tinha chegado muito mais longe que sua família poderia imaginar, ganhava muito bem, assim como ela. Os dois juntos tinham tudo que queriam e uma gorda poupança. Mas aquilo tudo agora parecia fazer tão pouco sentido. Para que? Nem filhos tinham. Quando voltasse para Estocolmo, teria que falar com ele sobre separação. Não queria sacrificar sua felicidade por uma heteronormatividade hipócrita. Os últimos dias tinham sido de vertiginosas descobertas para Kajsa, tinha chegado a conclusões surpreendentes. Não sentia-se uma coroa de 53 anos, sentia-se mesmo uma viking adolescente, uma guerreira que viajava pelo mundo e descobria novos territórios. Kajsa se emocionou na confusa bruma translúcida de seus pensamentos e ficou com os olhos marejados. Por sorte, Emma não notou nada e levantou para pegar a sobremesa já servida em pequenos potinhos numa mesinha no canto do restaurante: sagu de vinho tinto. As duas riram do estranho doce, não tinham a menor ideia do que fossem aquelas bolinhas gosmentas. Seriam pequenas frutas? Sementes? Cerais? Ovos? Ovas? Comeram curiosas porque não saberiam nem perguntar ao garçom o que era. Kajsa ficou aliviada com aquela engraçada dúvida, não precisaria explicar sua emoção para Emma.
Kajsa pagou e saíram caminhando pela praia. Emma foi alegre contando outras histórias de encontros engraçados com coisas do Brasil, mas Kajsa só fingia ouvir. Pensava em sua vida. Para que voltaria a Estocolmo? Sua vida parecia tão sem sentido agora. Seu casamento e seu trabalho já pareciam ter ficado num passado distante e sem graça. Lembrou das aulas de filosofia na escola, da mais fundamental pergunta filosófica grega: sua vida vale a pena? Se entristeceu, porque para avaliação até ali a resposta era não. O raio gelado que sentiu na espinha aquela manhã olhando aquelas pedras a intrigava. As alucinações, a decepção com o promontório, a volta da mística com os monumentos megalíticos, até as baleias saltando, pareciam estar mostrando a ela outra vida, mais excitante. Sua vida era uma rotina interminável. Desde pegar as chaves do aparador para sair de casa pela manhã até largá-las no mesmo lugar ao final da tarde, as jornadas se repetiam ad infinitum. Lembrou das conversas com Viggosen, dos xamãs terem visões. Será que ela era uma xamã? Riu com a possibilidade, sua vida era o mais distante possível dessas superstições bobas. Mas as experiências que estava tento estavam modificando totalmente sua vida, ela nem se reconhecia mais, nem mesmo ao tocar o próprio rosto.
Ao chegar no projeto de proteção das tartarugas tiveram que pagar o ingresso. Kajsa se surpreendeu, até aquela visita, todas as outras tinham sido de graça. Tudo era bem barato no Brasil. A visita foi surpreendente, havia muitas espécies de tartaruga marinha. Kajsa identificou aquela que havia visto da ponte treliçada do canal da barra, era a menorzinha de todas, assim mesmo era muito grande. Um guia solícito as atendia em inglês e explicava tudo, desde a postura dos ovos na areia, alimentação baseada em águas-vivas, vida no mar atravessando oceanos, a quase extinção, a recuperação do número de indivíduos adultos desde o começo do projeto, a vida na natureza. Tinha algumas tartarugas confinadas em pequenas piscinas azuis de fibra de vidro. O rapaz explicou que elas estavam se recuperando de ferimentos, tinham sido feridas em redes ou comido sacolas plásticas de supermercados que parecem águas-vivas na água, logo seriam soltas na natureza. Kajsa teve de novo aquele mesmo insight vertiginoso. Aliás, tudo parecia vertiginoso de uns dias para cá. Trabalhando na seguradora e casada com Magnus, ela vivia numa segura piscininha azul, protegida de qualquer perigo, longe de agressões naturais, mas com uma vida bem acanhada diante de seu potencial. A consciência lhe veio como num tombo, de soco! Sua existência era dentro de um cárcere tranquilo, um útero acolhedor, aquilo estava claro. Ao viajar para tão longe, Kajsa estava solta na natureza selvagem, havia nascido. Cabia agora a ela decidir, voltar para a insossa e modorrenta piscininha de Estocolmo que lhe daria certeza de muita longevidade, ou enfrentar os elementos da natureza numa excitante e incerta vida ao ar livre cruzando o mundo?
Voltaram caminhando pela praia e pararam no mesmo restaurante em que haviam almoçado. O garçom parecido com Neno acionou uma estranha máquina e espremeu algumas canas de açúcar na hora para encher dois copos de garapa com limão. Kajsa nunca tinha provado coisa tão doce e deliciosa. Voltaram para pousada saciadas de sabores, cheiros, imagens e histórias. Emma pegou sua bicicleta e partiu. Kajsa deitou-se na cama e virou uma metralhadora de imagens para Suécia. Queria partilhar com todos sua alegria, nunca tinha sido muito participativa de redes sociais virtuais, mas agora sentia quase que uma obrigação de mostrar o mundo fora das piscininhas para aqueles que queria bem. Lembrou da alegoria da caverna de Platão, temeu ser criticada por ver a realidade diferente das sombras da fogueira, mas tinha que fazer isso. Mandou fotos da trilha, dos monumentos megalíticos, do mar onde haviam visto as baleias saltando, do risoto de berbigão e das ostras gratinadas, das tartarugas confinadas nas piscinas com explicações sucintas. Para Ulrika não, para ela queria palestrar. Telefonou, mas não obteve resposta. Abriu o frigobar do quarto e pegou um suco de uva, seria sua janta. Kajsa percebeu que dentro da geladeirinha da pousada no inverno brasileiro, era menos frio que o outono na Suécia. Mandou alguns áudios para a amiga, tomou banho e dormiu, estava exausta.  
Segunda-feira amanheceu e Kajsa sabia que não teria a companhia de sua amiga adolescente que devia estar na escola. Fez a higiene e desceu para o refeitório da pousada já toda apetrechada para longas caminhadas sob sol, mas percebeu que o dia estava bem nublado. O céu plúmbeo até lembrava a Suécia. Ao pensar em seu país, lembrou dos receios que teve ao chegar ao Brasil, mosquitos e queimaduras solares. Até ali, os mosquitos não a haviam incomodado e o sol também não era tão assustador. Claro que estava no inverno, talvez no verão fosse outra história. Sentou na mesa com uma taça de café preto e uma daquelas baguettes recheadas. Enquanto comia, lembrava das aventuras do dia anterior e das reflexões que fizera. Pegou seu celular e viu que tinha muitas mensagens não lidas. Emma falou que Maria Helena tinha ficado muito braba com João Pedro por ele não ter as acompanhado aos passeios do domingo para ficar jogando videogame, então ele as acompanharia à tarde. Visitariam mais geoglífos e pinturas rupestres no norte da ilha. Magnus e sua irmã, comemoravam os passeios de Kajsa com certa discrição, talvez com alguma inveja. Klaus e Martin responderam somente com emojis simpáticos. Já Ulrika não, ela tinha tentado ligar de volta e mandou vários áudios entusiasmados. Estava louca para chegar, queria ir nos mesmos lugares, já tinha até alugado um carro para a manhã de sua chegada. Nem ocorreu a Kajsa fazer o mesmo, carros nem sobem trilhas! Mas talvez fosse útil para algum passeio distante.
Procurou algumas frases em português na internet, ensaiou em silêncio e conseguiu perguntar para atendente do refeitório seu nome. Veri, Veridiana, mas poderia chamar de Veri somente. Claro, como Dadá, Neno e Lélo, quatro letras, uma trabalhadora pobre. Foram simpáticas uma com a outra, Veri também tentava falar algumas palavras que sabia em inglês, riam juntas de sua própria ignorância. Kajsa perguntou se ela conhecia alguma atração turística próxima. A senhora tirou de trás do balcão um pequeno folder, o abriu e havia um mapa do entorno da pousada. Mostrou as praias da barra e mole, mas Kajsa já conhecia ambas, os faróis dos molhes e os monumentos megalíticos também. Tinha dois locais próximos ainda não visitados pela ávida turista europeia: as piscinas naturais e a pedra da Boa Vista. A senhora a acompanhou até a rua e apontou por onde ela deveria seguir e deu o folder para Kajsa. 
Kajsa saiu faceira caminhando pela viela apontada por Veri. Passou por muitas casinhas humildes, mas todas tinham muros altos, algumas até com cercas eletrificadas no topo, a plaquinha com uma caveira e um raio não deixava dúvidas, havia um óbvio temor de invasão da propriedade. Era curioso, o que ladrões poderiam querer em vizinhança tão pobre? Kajsa tirou muitas fotos, alguns muros exibiam bonitos desenhos coloridos que tiravam um pouco a impressão de prisão da rua. Logo a viela acabou e se transformou numa trilha no mato. Em pouco mais de quinze minutos, Kajsa chegou no que acreditava ser as piscinas. Em meio as pedras dos costões, águas transparentes como aquelas da praia da ilha do Campeche. Ali, no entanto, se podia ver uma grande variedade de peixes coloridos, caranguejos, ouriços, caramujos enormes e estrelas do mar! Sim, estrelas do mar vivas no seu ambiente natural. Kajsa ficou maravilhada e pensou em se banhar, mas estava frio e não sabia se conseguiria subir de volta para as pedras, então somente fotografou. Sentou-se nas pedras olhando aquele espetáculo. Lembrou do seu cubículo de trabalho na seguradora, sem horizontes, sem vida, sem cor. Fórmica cinzenta ou branca por todo lado. Ali o horizonte era infinito, a praia era de areia branca, o oceano verde claro, as nuvens no céu em diversos tons de cinza, os morros cobertos de verde, as pedras pretas e marrons. Sentiu frio e resolveu voltar.
Ao chegar a viela novamente já havia se aquecido com a atividade física de caminhar pela trilha. Consultou o folder para ver a outra atração não visitada, ainda era cedo. Na capa do folder o nome da pousada e embaixo, com letras bem coloridas, estava escrito: Florianópolis, a ilha da magia! Kajsa ficou curiosa com aquele título, desconfiou o que poderia ser, mas resolveu perguntar a Veri para se assegurar. Veri já tinha trocado de roupa, estava saindo da pousada empurrando sua bicicleta já sem seu uniforme. Usava uma camiseta vermelha com a estampa do rosto de um senhor barbudo onde se lia: Lula livre. Imediatamente, caiu uma ficha importante do Brasil: Lembrou que Lula era um ex presidente brasileiro, conhecido até por ela na Suécia, aquela imagem da estampa da camiseta era tão icônica como a de Che Guevara nas feiras de rua em Estocolmo, seu nome tinha quatro letras, era um trabalhador. Kajsa apontou a figura no peito de Veri e sorriu dando a entender que sabia de quem se tratava, as duas riram. Ficaram grandes amigas a partir desse momento. Abriram o folder para ver a Pedra da Boa Vista, a atração que faltava. Veri apontou o caminho e esclareceu o enigma, traduziu o subtítulo do mapa para o inglês com uma pronuncia bem compreensível, já devia ter feito aquilo diversas vezes: magic island. Era a tradução que Kajsa havia imaginado e explicava muito das coisas que andava sentido na ilha.
Veri largou novamente sua bicicleta do lado de dentro do muro da pousada e fez sinal para que Kajsa a seguisse. Subiram caminhando a mesma trilha que Emma havia mostrado no dia anterior. Veri caminhava bem mais lentamente que Emma, era uma companheira de trilhas mais da idade de Kajsa. Lá em cima pegaram um pequeno desvio e chegaram numa grande rocha granítica, a vista era de 360 graus. Dava para ver quase toda ilha. Kajsa se exclamava com a beleza do lugar enquanto Veri sorria com a felicidade da nova amiga. Com o celular, a sueca fez um pequeno filme, fazendo uma grande volta, a brasileira se mantinha as costas da câmera, não queria aparecer nas filmagens. Kajsa começou a filmar por uma ilha no Atlântico, foi virando para a ponta do Gravatá, Pântano do sul, Porto da Lagoa, Canto, Lagoa da Conceição, Costa, Rio Vermelho, Barra e de novo oceano. Era tudo lindíssimo, mesmo com o céu tão nublado, o verde das florestas de encosta era magnífico, era abundante e muito mais evidente que os vilarejos da paisagem. Quando Kajsa baixou o celular, Veri apontou uma manga d’água se aproximando pelo mar, elas iam se molhar. Kajsa ficou impactada com o volume de água que caía do céu e como a nuvem era baixa. Sentiu-se novamente uma jovem viking tendo aquela visão tão impressionante da natureza. Tirou uma foto e seguiu a amiga. Voltaram rápido pela trilha, mas ainda pegaram um bom aguaceiro. Kajsa temeu escorregar na descida agora embarrada, o que realmente aconteceu, mas não se feriu, só sujou toda suas calças. Veri se despediu já toda molhada e partiu na sua bicicleta. Kajsa entrou na pousada para se trocar e tomar um banho quente, havia esfriado muito com a chuva.
A manhã tinha sido movimentada, tinha feito muita coisa, Kajsa estava contente. Mesmo depois do banho e de se agasalhar bem, sentiu uma leve dor de cabeça, mas não deu muita importância. A chuva parou e Kajsa rumou sozinha para o mesmo restaurante do sósia de Neno em que havia estado com Emma. O vento da praia soprava forte, seus ouvidos doeram e Kajsa pensou que talvez uma touca seria bom agora. Parou numa pequena loja e comprou um linda touca bem colorida. No restaurante, se comunicou com o garçom com mímica e algumas palavras em inglês e todas as que já sabia em português. Descobriu que era irmão de Neno, seu nome era Osni, claro, com quatro letras. Escolheu o cardápio pelas fotos, filés de anchovas, salada de alface com tomates, batatas fritas e pirão de camarão com cerveja holandesa. Kajsa estava se achando uma mestra da comunicação intergaláctica, estava orgulhosa de si, nem precisava mais da muleta Emma de tradução. Mandou uma mensagem para ela avisando onde estava, já era quase uma da tarde e talvez ela aparecesse de bicicleta na pousada a lhe procurar. Depois mandou muitas fotos e áudios alegres para Ulrika sobre os passeios da manhã, os nomes de quatro letras, a camiseta de Lula e a ilha ser da “magia”. Estava bem feliz. Comeu com apetite, mas uma dorzinha no ouvido começou a incomodar.
Voltou para a pousada caminhando pela beira mar e ao atravessar a ponte treliçada já viu o carro de João Pedro estacionado. Ele e Emma já a esperavam no saguão, os dois comentaram sobre sua alegre touca peruana. Peruana? Que desapontamento, jurava ser artesanato local. Tinham planos, ela até pensou em recusar devido a dor de ouvido, mas não teve coragem, Emma parecia tão contente de ter de volta a companhia do amigo brasileiro. Rumaram contentes para o norte da ilha, um lugar chamado Costão do Santinho. Pararam o carro perto da praia e caminharam pela areia até as pedras onde começava uma trilha muito bem sinalizada. O vento assobiava e incomodava Kajsa, apesar da touca que cobria suas orelhas. Visitaram muitos locais com pinturas rupestres e geoglífos enormes escavados nas rochas. Eram desenhos parecidos com os da Ilha do Campeche, mas muito melhor sinalizados e com acessos muito melhores para os turistas. Enormes rochas a beira mar ricamente desenhadas, talvez servindo de faróis para viajantes primitivos se guiarem de longe. Apesar da beleza da paisagem e do interesse que aquelas mensagens pré-históricas lhe despertavam, Kajsa estava desanimada e Emma percebeu que sua amiga estava debilitada. Abreviaram o passeio e voltaram para pousada. Despediram-se e Kajsa entrou sozinha. Ligou o ar condicionado no calor máximo, se acomodou na cama com roupa, toca e tudo e adormeceu profundamente.
Ainda estava escuro quando Veridiana entrou no quarto. Kajsa achou estranhíssimo, mas estava muito mal para protestar, levantar-se muito menos. Veri a colocou sentada na cama e alcançou a ela uma cumbuca com um líquido quente. Kajsa bebeu passivamente a amarga beberagem enquanto Veri entoava alguns cânticos e fazia gestos com um ramo na frente de seu rosto. A coisa toda parecia meio sonho, as estrelas eram bem visíveis pela janela como nos quadros de Van Gogh. O céu tinha limpado e a noite era belíssima. Kajsa sabia estar louca desde as alucinações, mas ali as coisas chegaram ao extremo. Ela poderia jurar ter ouvido Veri dizer EM SUECO perfeito: Eu sabia que tu tinhas adoecido, pois eu sou uma bruxa. Dito isso, Veri pegou sua cumbuca e seu ramo e saiu do quarto.
Kajsa passou o dia deitada. Emma não apareceu. Ela também não tinha forças para procurar o carregador de seu celular que tinha desligado. Levantou-se tremendo umas duas vezes somente para aliviar-se rapidamente no banheiro. Pensou ter pego uma doença tropical grave, talvez morresse, precisava procurar ajuda, mas não tinha forças. Sentia muito frio. O sol já ia alto quando Veri entrou novamente no quarto e repetiu todo aquela pajelança curiosa lhe alcançando a cumbuca quente. A beberagem entrava no seu corpo ardendo. Kajsa estava totalmente entregue a benzedeira brasileira, obedecia sem esboçar a menor reação. Ao recolher a cumbuca vazia, Veridiana falou novamente em sueco perfeito: amanhã sua amiga chega e você já vai estar boa, eu sei por que sou uma bruxa. Kajsa a olhou com incredulidade, lembrou que Ulrika chegaria na Quarta-feira, mas estava totalmente sem forças para retrucar e os olhos de Veri não deram muita importância para o choque de Kajsa, somente saiu do quarto. Kajsa não tentou encontrar explicações e adormeceu.
Na manhã seguinte, Kajsa acordou quando o sol se levantava. Sentiu-se bem e sentou-se na cama. Levantou e olhou o movimento dos pescadores na areia. Reconheceu Neno e Osni conversando enquanto arrumavam os remos no barco. Lembrou das vindas de Veri ao quarto, sabe-se lá o que tinha bebido, mas funcionou. O dia estava lindo, Ulrika teve sorte ao marcar seu voo para o Brasil naquela data. Ao lembrar da amiga, colocou o celular a carregar. Tinha muitas mensagens não lidas, de Emma e Ulrika, principalmente. Ulrika, já estava em São Paulo preocupada com Kajsa que não respondia! Kajsa a tranquilizou e recomendou a amiga que pedisse uma poltrona de janela a direita do avião, para ver a ilha de cima ao chegar. Emma avisou que mataria aula para ir ao aeroporto com ela receber Ulrika. Fariam uma festa sueca em Florianópolis. Num primeiro momento, Kajsa sentiu-se invadida, mas depois pensou que seria bom ter Emma para amaciar os ímpetos da amiga. Racionalmente, sabia que era ridículo tal pensamento, mas a verdade é que tinha receio do que Ulrika faria ao lhe ver. A adolescente seria uma espécie de preservativo entre as duas. Emma combinou de se encontrarem na pousada às sete. Já eram seis e meia, Kajsa se arrumou rápido e foi para o refeitório.
Ao entrar no salão, Veridiana sorriu e a cumprimentou alegremente. Kajsa falou em Sueco, mas ela nada entendeu. As duas sacaram seus celulares e começaram uma conversa estranha com tradutores de internet. Veri confirmou, era mesmo uma bruxa, tinha levado a beberagem na cumbuca, receita de feiticeira, e estava feliz que tinha dado resultado, mas não sabia falar sueco. Teria sido uma alucinação febril? Como descobrira que Kajsa estava doente? Como assim bruxa? As perguntas cresciam na cabeça de Kajsa ao mesmo tempo que se resignava do quinhão de loucura que lhe acompanhava de uns tempos para cá, custava a se habituar, só isso. Emma entrou e sentou-se a mesa depois de pegar um copo de suco. As duas estavam animadas com a perspectiva da chegada de Ulrika. Emma não quis pedir ajuda de João Pedro dessa vez, queria que fosse uma coisa só de meninas suecas, seria legal. Comeram e saíram felizes despedindo-se de Veri.
Entraram num ônibus lotado em direção ao centro. Estava tão cheio que Kajsa propôs esperar outro, mas Emma alertou que o outro estaria tão cheio quanto, era assim mesmo no Brasil. As duas se agarravam como podiam enquanto o ônibus sacolejava subindo e descendo morros enormes. Apesar de já estar totalmente lotado, o motorista seguia parando em todas as paradas para pegar mais passageiros, era surreal! As janelas estavam todas fechadas e embaçadas, pouco se via do dia invernal lá fora, mas do pouco que se enxergava eram vistas maravilhosas de paisagens de sonho que somente Kajsa e Emma pareciam desejar olhar. Os outros passageiros apenas seguiam sua rotina diária de ida ao trabalho, alguns sortudos que conseguiam sentar até dormiam de boca aberta. O ambiente era abafado, mas Emma parecia estar habituada, conversava normalmente. Kajsa relatou o dia anterior, os passeios nas piscinas naturais e na Pedra da Boa Vista com Veri, a descoberta de que Florianópolis era a ilha da magia, a camiseta de Lula e os nomes de quatro letras dos trabalhadores, o almoço no restaurante e o diálogo multilíngue com Osni, a indisposição que lhe abateu, as entradas de Veri no quarto, a quente beberagem, as frases em sueco. Emma ouvia tudo com atenção. Ao chegarem no centro, desceram no terminal e trocaram de ônibus para um que levava ao aeroporto, chegariam bem na hora do desembarque de Ulrika. Nesse segundo ônibus conseguiram sentar juntas, pois pegaram no começo da linha no sentido inverso ao do “rush” da manhã. Kajsa comentou que a experiência de pegar um ônibus lotado no mundo em desenvolvimento era bem interessante como curiosidade antropológica, mas fazer aquilo todos os dias deve ser muito ruim, não estava habituada a ficar tão encostada em corpos de desconhecidos. Emma então tomou a palavra, contou que realmente havia estado na pousada na tarde do dia anterior, mas Veri explicou que Kajsa estava doente e febril e não queria receber visitas. Contou também que sim, havia uma tradição de bruxas e magia na ilha, benzedeiras e feiticeiras como Veri eram parte da cultura local e tinha até cidadãos que nunca haviam visitado um médico ou tomado um remédio comprado. Na família de João Pedro essas tradições eram desdenhadas, mas nas de Dadá e Neno eram assumidas com orgulho. Pela experiência de Kajsa, aparentemente a pajelança ancestral funcionava.
Desceram no aeroporto e olharam o painel de informações de voos. Ulrika já havia aterrissado há dez minutos! Correram para o portão de desembarque do saguão e a viram saindo com uma pequena mala. Ulrika!! O encontro foi bem alegre, Kajsa a abraçou demoradamente e apresentou Emma. Ulrika tinha um olhar penetrante, com olhos castanhos brilhantes, falava pouco, mas dizia muito. Seu cabelo estava um pouco mais grisalho do que na última vez que Kajsa a havia visto, mas aquilo a deixava ainda mais bonita. Tudo que nos outros caia mal, nela caia bem, era uma mulher charmosa e cheirosa com seus óculos de aros grossos e suas echarpes de lã. Conversaram enquanto caminhavam pelo saguão, Ulrika a guiar o grupo, como se ela fosse quem conhecia o local. Comentou que Kajsa estava bronzeada, musculosa e com abraço forte, além de olhos vivos.  Pararam no guichê da locadora de automóveis e pegaram as chaves do carro alugado. Entraram no carro e partiram, Ulrika dirigia, Kajsa ao seu lado só sorria feliz e Emma lá atrás as ia guiando. Ulrika parecia já ter dirigido aquele mesmo carro por aquelas mesmas estradas congestionadas muitas vezes, não errava nem uma troca de marcha ou titubeava em encruzilhadas.
Ulrika sugeriu que ligassem o rádio para ouvir as músicas brasileiras. Assim que o rádio foi acionado, o volume estava no máximo e tocava Dancing Queen do grupo sueco ABBA, verdadeiro hino da adolescência das duas mais velhas. As três gritaram eufóricas numa explosão de riso e felicidade. Ulrika parou no acostamento, saíram do carro e se puseram a dançar ao lado do manguezal. Kajsa estava em êxtase, vivendo talvez o momento mais feliz de sua existência. Ulrika lembrava de uma coreografia que as outras duas sabiam seguir! Viraram atração turística de beira de estrada e os carros buzinavam ao passar por elas. A música acabou e as três se abraçaram e choraram de felicidade sentindo-se as rainhas da dança. Entraram no carro rindo muito e comemorando a alegria de viver e estarem juntas. Kajsa abriu a janela e gritou com a cabeça para fora do carro que eram guerreiras Vikings. Ulrika comentou jocosa quão boas eram as rádios brasileiras de FM. Emma feliz de ter duas amigas suecas no Brasil. Estava selada uma amizade profunda naquelas terras distantes.
Chegaram a pousada quando Veri estava saindo com sua bicicleta, trabalhava somente no café da manhã. Fizeram as apresentações e Emma agradeceu o tratamento que havia feito em Kajsa. Veri convidou para uma dança circular só de bruxas na praça central da Lagoa da Conceição ao anoitecer. Emma sabia onde era e traduziu o convite as outras duas. Aceitaram, seria legal, uma boa introdução a ilha da magia. Ulrika fez o Check in para o mesmo quarto de Kajsa, o que lhe deu um friozinho na barriga, mas fingiu normalidade. Largaram a mala e Emma sugeriu que visitassem o famoso promontório das alucinações de Kajsa após o almoço, Ulrika aprovou. Saíram caminhando e atravessaram a ponte treliçada olhando a transparência da água, pena dessa vez não viram nenhuma tartaruga ou pinguim. Caminharam pela enorme praia até o restaurante de Osni. Sentaram e Emma disse que queria as ostras gratinadas de novo, Kajsa as mesmas anchovas do dia anterior e Ulrika pediu camarão. Emma conversou com Osni sobre Neno, não sabia que eram irmãos. Osni falou que ele viria ao restaurante trazer peixe dali a pouco. Brindaram com uma cerveja preta que Ulrika escolheu. Estavam muito felizes.
Quem trouxe a comida para mesa foi Neno!! Emma e Kajsa ficaram muito surpresas com aquele bico de garçom. Neno falou que era só para brincar com elas, ele não trabalhava ali, só entregava os frutos do mar para o irmão. Apresentaram Ulrika que falou em alto e bom som em sueco que Neno era um petisco brasileiro que ela provaria com gosto. As outras duas riram e ruborizaram, Emma traduziu para Neno que Ulrika havia “simpatizado” muito com ele. Ele agradeceu e convidou para um passeio de barco na lagoa Domingo. Alertou que havia entregado umas garoupas e tainhas enormes para o irmão, que elas deveriam provar numa próxima refeição. Despediu-se e saiu. As três ficaram rindo muito da cara de pau de Ulrika, ainda que em outra língua. Voltaram para pousada e entraram no carro, Kajsa deu uma passadinha no quarto para pegar sua touca peruana colorida, não queria ficar com dor de ouvido de novo. Subiram a estrada e Kajsa lembrou daquela primeira vez que foram de bicicleta, quão dura era a subida. Ulrika parecia não se impressionar muito com a paisagem, bem diferente de Kajsa quando chegou. Era uma mulher bem mais viajada, comentou até que tinha uma touca igual de quando esteve no Peru.
Estacionaram na boca da trilha e partiram para caminhada. Emma ia na frente, Kajsa no meio e Ulrika atrás. Numa parte mais difícil da trilha, com altos degraus de rocha e raízes, Ulrika deu uma mordida na bunda de Kajsa que gritou, mas logo riu. Emma nem entendeu a piada. Ulrika era visceral, condimentada e cheia de vida, totalmente diferente da personalidade insossa de Kajsa. Chegaram ao promontório que foi o gatilho de tudo, mas dessa vez Kajsa não sentiu nem um pingo da emoção que sentira da primeira vez. Naquele dia sentiu um profundo desapontamento, agora estava só alegre de respirar ar puro, ver uma bela paisagem e estar na companhia agradável de duas amigas. Sentaram-se e ficaram um momento olhando a paisagem. Emma tirou um baseado amassado do bolso e um isqueiro de plástico cor de rosa. Desamassou delicadamente, acendeu o cigarro, tragou e segurou a fumaça dentro do corpo sob o olhar atônito de Kajsa e tranquilo de Ulrika. Em seguida passou o pito para Kajsa que ficou constrangida de não provar. Tossiu muito, mas fumou. Finalmente, Ulrika pegou o fumo e tragou com intimidade, prensou as narinas para nada sair e devolveu para Emma. As três fizeram um rodízio até acabar com a maconha. Cada vez que Kajsa dava um pega na droga, sua total incompetência no lidar com aquele objeto em brasa era motivo de muita risada das três. Ao fim, estavam rindo tanto que Ulrika levantou-se, tirou as calças, acocorou-se e fez xixi na beira do penhasco para não ficar toda mijada. Aquilo causou ainda mais gargalhada, Kajsa chegou a deitar e rolar de rir. O promontório agora era motivo de alegria. Voltaram para o carro de alma lavada.
Estava anoitecendo e foram ao local combinado com Veri. Ao chegar, a viram com outras tantas amigas. Todas vestiam longas túnicas, vestidos de lã, batas indianas, botinhas de couro, brincos de penas de pássaros e toucas peruanas como a de Kajsa. Ulrika debochou da aparência das mulheres, era um festival xamânico? Brincou que somente Kajsa seria aceita no grupo com sua touca. As outras duas não riram porque Veri se aproximou sorridente e as convidou para entrar na roda. Começou uma música suave e Veri discursou um pouco em voz baixa. Emma traduziu que ela estava comemorando o fato de ter ali mulheres de todo o planeta: da Itália, da África do Sul, da Turquia, de Israel, da Alemanha, da Inglaterra, da Argentina, do Chile e três companheiras da Suécia. Todas as mulheres da roda bateram palmas e deram as mãos, começaram a rodar fazendo o mesmo passo lento e simples. Aos poucos iam trocando de passo ou colocando as mãos em outros lugares. A roda ia se fechando e elas entoavam uma espécie de mantra. Como as três suecas já estavam com suas consciências bem alteradas depois da cerveja preta e do baseado, entraram logo no transe. Sentiram-se unas com aquelas outras mulheres e passaram a gostar muito da experiência. Mesmo a cética Ulrika se entusiasmou e com facilidade seguia a coreografia do grupo. Finalmente, todas as mulheres estavam bem abraçadas e sentiram uma força vital muito forte, estavam se fortalecendo mutuamente. A música parou e se afastaram lentamente, batendo palmas. Muitas estavam com os olhos marejados, inclusive Kajsa e Emma. Acabou a risada, mas a emoção que encontraram naquele evento as deixou muito felizes e satisfeitas de estarem vivas. Veri se aproximou e as parabenizou, elas agora eram também bruxas da ilha da magia.
Pegaram o carro e foram embora. Largaram Emma no condomínio de luxo da família de João Pedro e seguiram caladas para a pousada. Ulrika estava bem cansada da viagem e Kajsa tinham muito o que pensar. Um verdadeiro furacão de pensamentos a atormentava. Estava finalmente só com Ulrika, mas até agora não tinha pensado em sexo. Lembrou de Magnus, de seus pais, dos colegas de escola em Upsalla, de sua relação formal com Ulrika no trabalho, tudo parecia ser em outra vida, muito distante da realidade atual, algo já apagado num passado remoto. Não conseguia imaginar o que estava prestes a acontecer, não queria prever um futuro que nunca viveu. Estacionaram o carro e entraram na pousada.
No quarto, Ulrika sugeriu um banho e Kajsa concordou ligando o ar-condicionado no calor máximo. Ulrika tirou os óculos e se aproximou de Kajsa, delicadamente tirou sua ridícula touca peruana. Era a primeira vez que Kajsa a via sem os óculos. Ela era tão jovem e bonita, tão cheia de vida, seus olhos eram tão penetrantes que Kajsa sentiu-se nua, uma vertiginosa sensação de prazer a invadiu. Ulrika a beijou suavemente na boca, e começou a delicada operação de despirem-se. Ligaram a água quente e tiraram as últimas peças de roupa no banheiro já cheio de vapor. Encostaram seus corpos nus num abraço suave, Ulrika a beijou e Kajsa se entregou totalmente a experiência. Entraram no chuveiro quente e se ensaboaram mutuamente. Ulrika sabia tocar os lugares mais sensíveis da anatomia de Kajsa, parecia ler sua mente. Um crescente de excitação foi se acumulando no corpo de Kajsa, ela nunca tinha sentido tanto prazer na vida, isso que aquilo ela nem considerava como sexo, não sabia que poderia acontecer em pé, ainda era só banho no seu entender, não estava preparada. A água quente, o vapor, a espuma e as mãos de Ulrika a envolviam de forma arrebatadora. Ulrika tocou na vulva de Kajsa e a ensaboou e exigiu que a parceira fizesse o mesmo puxando sua mão para seu sexo. Kajsa entendeu o gesto, mas não conseguia concentrar-se na tarefa, já tremia de prazer. Ulrika era implacável, beijava séria os lábios trêmulos de Kajsa e tocava seus seios com delicadeza.
Ulrika deu por encerrado o banho fechando a torneira e puxando as toalhas para secarem-se. Ao mesmo tempo em que iam secando as costas uma da outra, abraçadas e rindo, caminhavam de lado para cama. O quarto já estava quente com o ar-condicionado. Ulrika deitou Kajsa na cama e beijou seu clitóris fazendo a parceira gemer de prazer. Kajsa não sabia como agir, estava totalmente passiva, era virgem em relacionamentos homossexuais, mas estava adorando e se deixava manipular à vontade. Ulrika beijava e lambia seu sexo enquanto tocava suas coxas e seios, Kajsa começou a sentir uma avalanche de prazer dentro de si, ganiu e uivou, fechou suas coxas sobre a cabeça de Ulrika que não parava de acariciá-la. Kajsa soltou um berro de prazer quando sentiu o primeiro orgasmo de sua vida, foi simplesmente avassalador, morreu por um delicioso instante, foi ao paraíso e voltou com a alma angelical de puro amor e felicidade para tentar entender o que tinha acontecido. Florianópolis era mesmo a ilha da magia e Ulrika uma bruxa experiente.
Kajsa olhou o teto branco do consultório ginecológico, seus joelhos repousavam apoiados nas perneiras e sentia o desconforto de um espéculo socado na sua vagina. Atrás do lençol ouviu a voz de Viggosen dizendo que estava tudo bem. Kajsa manteve a calma, ela já tinha vivido aquela sensação, mas não conseguiu evitar ficar muito triste. O que é a realidade, afinal? Num instante estava gozando em Florianópolis, no outro sendo examinada em Estocolmo. Maldição! Fingiu normalidade, mas a vontade era de gritar “não” bem alto e em português. Viggosen desmontou a tenda daquele circo e pediu que Kajsa se vestisse enquanto lavava as mãos. Desacorçoada, Kajsa perguntou sobre Emma. Viggosen contou que estava bem, havia casado e estava grávida, esperava para maio seu primeiro neto. Surpresa, Kajsa o interrogou, aos dezessete anos? Viggosen riu e esclareceu, ela já estava com 27, era cineasta, mas vivia de pequenos filmes publicitários. A cara de desapontamento de Kajsa era evidente, quem seria aquela com quem interagiu em Florianópolis? Quanto tempo já haveria se passado? Kajsa estava numa confusão total. Resolveu investigar e tentou relembrar Viggosen daquela ocasião que conversaram no restaurante fino do Kungsträdgården. Ele lembrou do restaurante, mas não da conversa. Kajsa insistiu, almoçaram Surströmming com batatas e tomaram vinho verde português. Ele riu de novo, aquele restaurante não abria para almoço e também não serviria comida tão popular, só esteve lá em algumas poucas vezes com sua esposa comemorando alguma coisa. Almoçar lá seria muito caro. Kajsa ficou arrasada, teria criado tudo aquilo na sua mente maluca? Um frio na espinha correu todo seu corpo, pensou em Ulrika. Arrumou-se rápido e se despediu do médico. Ele ainda mandou lembranças para Magnus. Bom, nesse universo paralelo em que se encontrava agora a assombração de Magnus ainda era real.
Pedalou o mais rápido que pode para o prédio da seguradora. Angustiada ia refletindo, será que tudo que viveu, as paisagens de sonho, não só pareciam de sonho, mas eram de sonho mesmo, criações de sua mente? A baleia saltando, a manga de chuva, as pinturas rupestres, a tartaruga marinha e o pinguim, tudo ilusão? Prendeu sua bicicleta e subiu correndo as escadas, entrou na sala de Ulrika sem bater na porta. Suzanne a olhou com surpresa e Kajsa perguntou onde estava Ulrika. Qual Ulrika? Vast ou Bergson? Kajsa respondeu irritada, achou que Suzanne brincava com ela, nenhuma das duas, Ulrika Ramsen, nossa supervisora. Essa saiu da empresa há uns vinte anos, Suzanne era a supervisora há dez anos e não fazia a menor ideia de onde estaria aquela ex funcionária. Um redemoinho de sensações encheu a cabeça de Kajsa. O prazer do orgasmo atômico que tinha experimentado ainda estava fresco na sua cabeça, o desapontamento da irrealidade do relacionamento de amizade com Emma, a raiva de Ulrika ser somente uma fantasia imaginária, tudo girava e se contorcia na sua cabeça em velocidade. Kajsa sentou na sala de espera da agência e chorou compulsivamente. Será que esteve em Florianópolis mesmo? Aqueles personagens todos com nomes de quatro letras eram criações mentais? Precisava ver um psiquiatra rápido. Não tinha mais nem ideia de quem era naquele instante, sofria como se estivesse sendo torturada. Queria desligar sua mente, apagar tudo, dar um reset. Quem poderia lhe ajudar?  
Se acalmou como pode, desceu e pegou sua bicicleta, pedalou para casa pensativa. Será que sua casa era mesmo sua casa? Quando estava quase chegando ao Kronobergsparken teve um ideia que a alegrou. Foi como um cobertor quentinho numa noite de frio, Kajsa se agarrou aquele pensamento com força. A primeira alucinação foi de cinco minutos, a segunda durou umas duas horas, a terceira e última umas duas semanas. Era exponencial, a próxima poderia durar anos!! Começou a fazer contas estatísticas mentais: se entre a primeira alucinação e a segunda teve um intervalo de umas vinte horas e entre a segunda e a terceira uns quinze dias, quanto tempo deveria esperar para a quarta começar? Não tinha certeza quando começou a terceira alucinação, a fronteira estava difusa. Será que era no dia do embarque para o Brasil ou quando começou a comprar as coisas para viagem? Opa, mas as conversas com Viggosen tinham sido também alucinações, então talvez tenha sido um contínuo ilusório. Assim, havia a esperança de a quarta fase começar a qualquer momento!!! Se alegrou e entrou em casa, largou as chaves sobre o aparador como sempre e sorriu com o gesto. Assobiando esperou Magnus e o recebeu com carinho. Jantou, tomou banho e foi dormir feliz.
Kajsa sentiu-se muito bem, uma profunda paz tomou todo seu ser. Não sentia calor nem frio, a temperatura estava perfeita e a aconchegava. Sentiu prazer naquela sensação gostosa. Abriu os olhos e viu um céu muito azul, estava sem sua aliança, mas coberta de protetor solar e de mãos dadas com Ulrika no promontório de rocha a beira mar.