quinta-feira, 25 de junho de 2020


Linha de frente
Agora, com a pandemia provocada pelo novo vírus corona, muito se fala dos heroicos combatentes da “linha de frente” na “guerra” contra a doença Covid-19. Os profissionais da saúde estão sendo muito valorizados, são homenageados com salvas de palmas das sacadas dos edifícios nas grandes cidades, as mazelas da profissão estão sendo debatidas em público até em telejornais. Péssimas condições de trabalho, baixos salários, falta de leitos, insuficiência de insumos para cuidados básicos de higiene e equipamentos de proteção são coisas que escandalizam toda a sociedade. Não é mais um assunto relegado aos vestiários de hospitais, no momento de troca de plantões. Todos estão percebendo que precisamos atirar dinheiro na cara daqueles trabalhadores para que saiamos vivos dessa. Percebeu-se rapidamente que a “PEC do fim do mundo” do início do governo Temer, que congelava os investimentos em saúde e educação por vinte anos, foi um equívoco brutal. Além das dificuldades dos complexos problemas técnicos envolvidos no cotidiano dos atendimentos à saúde que há três anos e meio estão sem qualquer atualização, coisas que exigem muito treinamento e conhecimento, alguns trabalhadores ainda têm que enfrentar arroubos ideológicos dos usuários do serviço. Verdadeiros “donos da verdade”, formados no Whatsapp e no Twitter, se acham no direito de receitar remédios, prescrever tratamentos, invadir locais de trabalho, tumultuando a já complicada situação. O resultado são profissionais ainda mais estressados, adoecendo eles mesmo, causando baixas nesse “exército” de combatentes.
Estou na décima quarta escola da minha carreira docente, em todas em que trabalhei o primeiro ano foi sempre de muitos atestados médicos para mim. O trabalhador da educação pega todas as doenças existentes na comunidade, até ficar imune a toda fauna e flora bacteriológica e virótica do lugar. Ficamos na maior parte do tempo confinados em salas apertadas, sem máscara, com mais de vinte crianças vindas de diferentes famílias, respirando, espirrando, tossindo, assoando narizes e, na educação infantil, até limpando urina, fezes, vômito, baba e restos de alimentos de pequenos corpos, muitas vezes febris ou diarréicos. Também costumamos limpar cortes, ralados e edemas das crianças que se acidentam. Nos casos mais graves, chamamos os pais para que encaminhem a criança para um serviço especializado de saúde. Mas, geralmente são os professores e auxiliares da educação que manejam a saúde da criança. E o fazemos com muito carinho, abraços, beijos e conversas ao pé do ouvido, pois a saúde não é só física, mas também mental, social, espiritual e ambiental. Muitas crianças só encontram um ambiente limpo, uma alimentação saudável e uma relação afetiva positiva na escola. Ouso dizer que nós é que somos os profissionais da “linha de frente” da saúde e quando alguma criança está com a sua muito ameaçada, encaminhamos pra os profissionais da doença.  
Há uma piadinha muito popular nos corredores de escolas públicas brasileiras – Tem duas coisas que professor pega pelo menos uma vez por ano: piolho e empréstimo. – O chiste é bastante revelador da condição de vida que o trabalhador da educação está imerso. Das profissões que exigem formação superior, o magistério é talvez a menos valorizada. Como sou um digno representante da categoria, exerço a profissão quarenta horas semanais, posso falar com propriedade: somos pobres. Moramos nas periferias, lá onde o estado se ausenta, onde não há policiamento, iluminação pública, calçamento ou postos de saúde. Somos a casta magnata da favela, vizinhos de nossos ainda mais pobres alunos. A maioria de nós “prefere” andar de ônibus, pois a prefeitura ou o estado patrocina o vale transporte. Porém, isso só é possível quando temos a sorte de pegar as quarenta horas na mesma escola, o que é raro. Normalmente, o professor gasta o horário do almoço para se deslocar de uma escola para outra, em periferia ainda mais longe. Para isso temos que apelar para veículos individuais, pois não há ônibus que ligue as duas escolas, pena que tal luxo o poder público não se incomoda em ajudar a pagar. Comemoramos quando um colega troca sua moto CG 125 2011 por uma bem mais novinha, 2017, financiando em 24 vezes a diferença de R$1500. O ruim é quando chove no inverno, momento que esse profissional motociclista tem que chegar meia hora antes para trocar suas roupas molhadas por outras secas. Professor casa geralmente com outro da mesma casta, os pobres com estudo se unem para então ascender para a classe dos que andam de carro, um Ka 2001 já bem rodado. O cônjuge que trabalha na escola mais distante dirige e larga o outro um pouco mais cedo no trabalho. Muito comum também é o consórcio de alguns que moram próximos, cotizam-se para abastecer e trocar pneus no Uno 2004 da colega proprietária. A rotina de assistir cinco profissionais saírem de um Celta 2003 com as janelas embaçadas às oito da manhã na frente da escola não espanta ninguém da comunidade escolar. Muitos trazem viandas para o almoço, outros pagam um extra para as cozinheiras da escola prepararem uma merenda, porque geralmente o ticket alimentação vai mesmo para o rancho no supermercado da boia dos filhos em casa. Muito comum também acontecer de o professor não admitir tanta pobreza e se sujeitar a trabalhar 60 horas semanais em mais de uma prefeitura ou em uma prefeitura e no estado. Sacrifica o convívio com seus familiares e suas horas de lazer ou sono para ganhar um pouco mais. Isso, infelizmente, não causa nenhuma surpresa aos filhos e cônjuges, porque normalmente um professor traz para casa provas e trabalhos para corrigir e se envolve durante horas no preparo de suas aulas.
Essa rotina de humilhações à que um trabalhador da linha de frente da guerra contra a ignorância está habituado, é invisível aos olhos da sociedade. Qual será a pandemia que irá visibilizar esses profissionais? Além da complexidade técnica das situações que normalmente um professor tem que enfrentar no seu cotidiano docente, que exigem muito estudo, atualização, treinamento e conhecimento, de uns tempos para cá ainda temos que enfrentar um exército de pais e familiares donos da verdade, com ideologias as mais diversas, querendo determinar como serão as ações pedagógicas para com seus filhos. Chegam a invadir e ameaçar os profissionais em seu local de trabalho. Até mesmo alunos um pouco maiores, pirralhos de catorze ou quinze anos, se veem no direito de filmar e contestar as aulas dos professores. Não são muitos os que resistem a tanto assédio moral, o troca-troca nas escolas é bem grande. Aqueles profissionais que têm alguma outra opção vão embora. A profissão de professor tem aposentadoria especial não por acaso. A maioria sucumbe com as mais diversas doenças psíquicas: síndrome do pânico, depressão, ansiedade, bipolaridade, se afastando em longos atestados médicos. O uso de psicotrópicos é largamente difundido como solução para continuar a trabalhar sob estresse acima do tolerável.
O sistema como está acaba gerando um professor sobrecarregado, de desempenho medíocre. As férias e feriadões acabam sendo ansiosamente aguardados, há os que estão comemorando a pandemia por poderem ficar afastados de pais e alunos. Nos seus poucos momentos de ócio, os professores querem folga para suas mentes. São poucos os que leem quando podem ficar em casa. Fico sempre angustiado quando vou a casa de algum colega e não acho a biblioteca ou quando a novela é mais comentada que um filme que exija reflexão. O desejo de estudar mais é quase inexistente na categoria, eu mesmo já desisti, não há quase nenhuma perspectiva de melhoria salarial para os que buscam se atualizar.
Na verdadeira linha de frente da saúde, a mesma linha de frente da guerra contra a ignorância, os combatentes estão bem cansados e desmotivados. Estou quase desejando alguma crise, semelhante a essa que vivemos agora na saúde, que chamasse a atenção da sociedade para os trabalhadores da educação para nos colocar na vitrine também. E que batessem palmas nas sacadas dos edifícios para nos homenagear com a devida justiça, nossos esforços sempre foram muito grandes, apesar de invisíveis. Ah, e que a sociedade finalmente entendessem que atirar dinheiro na nossa cara faria uma sociedade muito melhor para todos. Eu pego até piolho, mas quero ser bem remunerado para isso.

2 comentários:

  1. Difícil é quando se encontra professores que coadunam com a ideia de que a educação precisa ser suprimida, porque não há como melhorá- la. :(
    Essa tal politicagem que afeta todos os setores! Melhoraremos!
    Excelente texto. Bom que podemos compartilhar. Gratidão!


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