sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Mundo masculino

Cada ano de Parobé (fiz seis) tive uma (e somente uma) colega mulher diferente. Elas fingiam não ver nem ouvir nada, tentando ser o mais discretas possível. A gurizada, na maior parte do tempo, nem percebia elas ali mesmo, porque eram uns buchos quietos, como plantas, todas. Eles diziam e faziam tudo como se estivessem num vestiário da fábrica em que trabalhavam, geralmente as gargalhadas e coçando o saco. - Ah, não, daí eu cumi o cu daquela vagabunda, sem camisinha mesmo, azar, guspi no pau e soquei... Tudo isso acompanhado de toda a gestuália característica. Mas quando eles se lembravam da presença delas ali, as coitadas sofriam. Teve uma vez no terceiro ano, quando um professor faltou num dia de chuva, ficamos na sala contando causos, escrevendo e desenhando nas paredes e nas classes (sim, éramos nós) e debochando uns dos outros. Tudo aos risos e empurrões, derrubando tudo. A única que não ria de nada nunca era a nossa única colega. Um colega tirou o pau para fora das calças e botou a trouxa toda em cima da mesa na frente da guria. Ele disse: - Pode pegar, Cristina, não te envergonha, a gente sabe que tu nunca viu nada assim mesmo, pode pegar, experimenta, aproveita... A coitada da Cristina, não disse nada, não riu nem chorou, não fugiu, não se mostrou irritada ou amedrontada, não mudou um músculo da cara ou do corpo. Se manteve calma olhando para sua pasta embaixo da classe como sempre. Talvez tivesse uma arma na pasta, não sei. Pode parecer estranho, mas era uma turma que eu não via malícia nenhuma, muito engraçada, sincera, eles me faziam rir muito. Uma das colegas, a Margarida, que se formou comigo, encontrei anos depois. Eu e a mãe estávamos fazendo o rancho no Zaffari. Ao passar as compras pelo caixa ela era a operadora. Percebi que ela me reconheceu e torceu para que eu não a reconhecesse, mas também percebi que tanto eu como ela vimos que não tinha como evitar de nos falarmos. Ela constrangida de estar ali naquela posição servil, mal remunerada, tendo a mesma qualificação que eu. E eu constrangido de ostentar aquele opulento rancho de filinho da mamãe, sem nem precisar trabalhar, mesmo já tendo uma boa qualificação. É, eu gosto de iogurte de morango... Ela tinha sido demitida logo após a formatura, como estagiária era ótima, mas funcionária não servia. Procurou por um tempo, na área, depois desistiu. Nas empresas em que técnicos em mecânica são necessários o clima é o mesmo do nosso curso, só que nas empresas dá processo aquele papo de pau no cu. Pobre das colegas, por mais talento que tenham, são, no mínimo, desrespeitadas ali, no máximo, ignoradas.
Memórias

Um dia, eu e o Sidi estávamos indo para Garopaba de bicicleta. No meio do caminho entre Bom Jesus e São Joaquim, lá no alto de uma estradinha de terra que serpenteava serra acima, encontramos um bolicho de campanha. Como era o primeiro sinal de civilização em uns cinqüenta quilômetros e estávamos sedentos e cansados como sempre, resolvemos parar. Enquanto tirávamos as luvas e o capacete, encostávamos as bicicletas e estendíamos as pernas, conversávamos sobre os últimos quilômetros. O bolicheiro, ao contrário do resto dos ribeirinhos que cruzamos pela estrada, nos olhou mais com desconfiança do que com interesse, não levantou de sua cadeira. Subi dois degraus de pedra e entrei no lugar fazendo ranger a tábua puída pelo uso. O cheiro era de lingüiça e copa, me lembrou um monte de lugares da infância. No balcão, no chão, pendurado no teto e em várias prateleiras, havia uma infinidade de traquitanas. Desde pote com ovo em conserva até rolo de corda de sisal, passando por picaretas, caixas de Boa Noite, goiabadas e sacos de ração. Estávamos empanturrados de belas, claras e infinitas paisagens em tom pastel, aquelas quatro paredes em cores fortes e escuras eram como um oásis. Examinei os cantos enquanto falava:
- E aí?
- Ô.
- Tem Coca?
- Tem.
- Tá quanto?
- Duzentos.
- Vê duas.
- Copo ou canudo?
- Não dá pra sê gargalo?
- Dááá.
- Daqui pra São Joaquim ainda tem quanto, tchê?
- Ah, ainda tem bem uns cinqüenta até a praça lá.
- Tem muita subida ainda, o não?
- Não... Agora só desce, até o rio... Depois é que sobe...
- Ah, tá... Brigado.
Sentamos num banquinho embaixo de uma árvore em frente ao bolicho e tomamos a coca com toda calma, olhando a paisagem que era linda ali, estávamos muito alto. O bolicheiro se encostou no marco da porta e agora, mais seguro das nossas intenções, relaxou e puxou conversa, matando sua curiosidade.
- Tão fazendo uma física, é?
- É. Tamu dando uma viajadinha.
- E vieram de onde?
- Porto Alegre...
- Bááá...

De vez em quando me vem na cabeça este ou outro momento semelhante: o diálogo esquisito, o cheiro do lugar, o rangido contrastando com o silêncio, a sensação refrigerante da Coca descendo garganta abaixo, a paisagem de filme, as esperanças, sonhos e desejos que estavam se concretizando ali na minha frente. Tudo volta como se tivesse acabado de acontecer. Seguidamente acontece isto. No momento, na hora que ocorreu, não percebi nada de especial, mas seguido a cena me aparece na cabeça, do nada. E não é só este momento, claro. Eu sou assombrado por várias outras memórinhas curtas. Lembro um trechinho de estrada na Alemanha, um empurrão que levei no jardim de infância num dia de inverno, a cara que se confundia com o sotaque do homem que conversei no interior da Holanda, o pôr do sol em Lavras do Sul, o gosto do croisant em Paris, aquela vez que me percebi sozinho na copa da casa de madeira quando era pequeno e não fiquei com medo, o cheiro do pãozinho Italiano que eu não tinha dinheiro para comprar, a sede que me tonteou em Capivari, a chuva gelada na Bélgica me queimando a pele, o barulho do vento batendo no navio no meio do oceano, sei lá o que mais. Não sei explicar por que este ou aquele momento me marcou mais que os outros e fica voltando, pra mim não esquecer. Talvez seja aleatório, talvez um curto circuito nervoso entre todos os sentidos ao mesmo tempo, talvez somente o exercício pleno da exuberância da minha juventude. Não sei por que acontece, mas eu gosto, um sorrisinho discreto clareia minha cara. O certo é que foram momentos felizes e que nunca mais vão voltar. Estes flashs de memória sempre tem somente um ingrediente em comum: uma sensação gostosa de medo curioso do desconhecido que estava ali na frente e prazer absoluto na descoberta. Acho que esta é a receita para memórias eternas.
Passárgada

Na casa de um dos alunos dos quais eu dou aula, trabalha uma guria. Ela tem uns vinte e cinco anos, eu acho. É uma alemoa batata, meia feia, nariz vermelho de furar fronha, com sotaque carregado, seu nome é Noela. Dia destes eu fui lá especialmente para montar uma bicicleta. Prescrevi para o menino tamanho, modelo, cor, preço, tudo. Mandei a mãe da criança comprar. Ela foi. O guri tem algumas dificuldades motoras, para ele seria bom, ganharia no Natal. Enquanto eu montava na lavanderia puxei conversa com a coloninha na cozinha:
-Maaas... Daonde tu é, tchê? Com este sotaque...
-Sô do Agudo.
-Nããããããooo... Do Agudo?!!
-Sô sim.
A partir daí a conversa seguiu animada, e continuou muito depois da bici estar pronta. Ela me contou tudo que sabia da “Picada do Rio”, pequeno e calmo lugarejo de onde tinha saído. Também me falou da geografia do lugar, dos “môro”, dos “mato”, dos “bicho” e do Jacuí, e da atmosfera amigável (ela, claro, não usou estas palavras) que envolve a cidade. Ela está com saudades dos parentes, dos amigos e de tudo lá. Está arrependida de ter vindo para “capital”, aqui ninguém não tá nem aí pra ninguém, anda decidida a voltar.
Esta atmosfera amigável de que falava a Noela, tem me chamado muito a atenção. Não só de Agudo, mesmo porque nem conheço o tal do Agudo, mas do interior em geral. Aqui é este stress tão gigantesco. No meu curso a gente estuda a saúde, a prevenção de males e a busca da longevidade através de uma maior qualidade de vida. Em tudo que eu estudo verifico que a vida aqui em Porto Alegre está ficando incompatível com a saúde, insalubre, e no interior, ao contrário, tudo favorece uma melhor qualidade de vida. Isto anda tocando alto como trombeta dentro da minha cabeça.
Estes últimos três meses foram horríveis. Eu estava levando ao mesmo tempo, não sei como, estágio (1ª e 6ª séries) no Colégio Uruguai, três cadeiras na ESEF, a pesquisa e a monitoria, a oficina de bicicletas e ainda uns dez alunos por fora. Felizmente, metade disto tudo acabou agora e eu posso sentar e escrever.
Eu andei muito estressado por estes dias. Saía sempre correndo de um lugar para o outro, dormia pouco, comia mal. Sempre atucanado com alguma coisa que era para ontem. Teve um dia que eu discuti e quase bati num velho que me fechou no trânsito, horrível. Depois fiquei tremendo (ação adrenérgica), arrependido e envergonhado. Teve outra vez que corri para pegar um taxi, entrei esbaforido: - Toca pra Nilo! O motorista era um velhinho bem magro e calmo, ele não disse nada e tocou. Respirei um pouco: - Que correria né? O véio mudo, só dirigia. Respirei mais. Eu parecia aquelas galinhas que atravessam a cidade dentro de um caixote, do aviário para o matadouro, aquele fel todo inundando a carne (depois a gente come aquilo!). Ainda estava atarantado. Respirei de novo e comecei a falar sozinho já que o véio não se incomodava comigo. Precisava falar algo com alguém, se não eu ia abrir a porta e correr empurrando o taxi para ir mais rápido.
- Não sei se o senhor viu... Uma reportagem que saiu na Veja estes tempos... A cidade com melhor qualidade de vida do Brasil fica aqui, no Estado... É Feliz, ali, logo depois de Campo Bom... O senhor viu?... Acho que muito da qualidade de vida que eles tem é porque eles não tem esta correria toda no cotidiano... Eles não tem metade do que a gente tem, mas tão numa boa... Barulho... Congestionamento... Assalto... Tudo tão caro... Esta porcaria de shopping novo aqui agora, só pra atrapalhar...
Quando eu parei de reclamar, divagar e maldizer tudo, fiquei, eu e o velho, um pouco em silêncio. De repente, eu até me assustei, o véio falou calma e pausadamente, com uma voz grossa e firme, como se não estivesse parado num congestionamento da Ipiranga, sob um sol escaldante, com um passageiro a beira de um ataque de nervos:
- Eu sô daquela cidade, aqui no Estado também, que tem a maior longevidade da América Latina...
Eu atropelei o véio e adivinhei a cidade:
- Eu sei: Veranópolis. Eu li aquela reportagem também.
A partir daí o velho destramelou. Começou a me descrever todas as vantagens de Veranópolis e eu concordando. - É mesmo... Tem toda razão... Isso... Não, o senhor tá certo... É verdade... Não, não tem dúvida... Bá, nem fale... No fim, esqueci até da pressa, o velho estacionou na frente do guri que eu ia e, em vez de descer correndo, fiquei ali sentado no taxi conversando com o véio um pouco mais. A gente se despediu com um aperto de mão e um tapinha nas costas como se já nos conhecêssemos a muito tempo.
Quando eu era guri, ia na padaria e deixava a bici na porta. Os brinquedos ficavam o dia inteiro esquecidos na frente de casa protegidos por uma cerquinha de quarenta centímetros de altura e um portão sempre aberto. A passagem do carro para os fundos era aberta, da calçada a gente via a mãe capinando na horta. Naquela época não tinha nenhuma grade aqui em casa ou na rua. Era melhor. Depois veio a época em que a mãe nos dizia que era bom não deixar nada dando sopa. Um tempo depois um cachorro se tornou necessidade, veio a Pepita e a Chiquita. Depois era bom ter grades, correntes e cadeados, veio a casa nova. Depois não se podia mais sair de casa sem ficar alguém cuidando. Depois seguro, depois alarmes. Agora já estamos na época dos vigias 24 horas na porta de casa, sensores de infra-vermelho e cercas eletrificadas. A Veja faz uma reportagem por mês sobre as vantagens de se ter um carro blindado! Até quando isto bastará? Isto é qualidade de vida? Não tô mais vendo graça nisto.
A Verô sempre me propagandeou o interior como uma boa opção, ela pensa em ir morar no Cassino um dia, perto do Luíz e da Hélida. Ela sempre me disse, do jeito dela, que a qualidade de vida lá é melhor. As vezes a gente fica pensando alto juntos. No interior a gente ganharia muito menos, um terço do que faz aqui mais ou menos. Não tem cinema nem teatro. Shopping: nenhum. Banco 24 horas... Não. Restaurantes ou bares, talvez um ou dois. Máquinas de Coca-cola e asfalto: ã, ã, nada disso. Mas... Pense bem, será que a gente precisa de tudo isto mesmo? Talvez às vezes! Mas será que o preço que se paga por tudo isto não é muito alto? E as necessidades inadiáveis que se inventa então? De uma hora para outra todo mundo tem que ter celular, se não é o fim. Computador conectado a internet para o chat e e-mail são quase o pão de cada dia para alguns. Carro tem que ter ar, direção hidráulica, câmbio automático e mais um monte de mequetréfes. Apartamento tem que ter três quartos, dois banheiros e uma bela vista por favor. No interior as necessidades não são assim tão urgentes. Depois, tem outra, todo mundo sabe que as coisas no interior saem pela metade do preço e o dobro da qualidade, acaba o cara tendo o mesmo poder de compra que aqui com o triplo de qualidade de vida. Só que tem uma coisa que lá fora se tem e que aqui já se perdeu a horas. E isto para mim não tem preço, é o que a Noela tentava dizer. É o sentimento de comunidade, o sentimento que todos tem um compromisso social com todos. Everybody care about everyone, that’s nice. Todos se cumprimentam na rua e se conhecem, isto não é fofoca, é qualidade de vida.

Eu tenho pensado muito em ir morar no interior. Não é uma fuga, é uma escolha. Tanto não é uma fuga que eu estou ficando muito bem colocado aqui nesta sociedade louca, estou bem encaixado, bem louco. Os grandes caciques da minha área me reconhecem e me consideram um louco a compartilhar privilégios. Trabalho feito louco, estudo feito louco e, agora, estou podendo passar a fazer o que é bom nesta comunidade louca: consumir como louco. Como eu sou jovem, forte, bonito, rico e inteligente, venço qualquer competição contra indivíduos menos favorecidos. E como estou fazendo tudo, direitinho, como a sociedade urbana neoliberal idealiza como bom, estou sendo muito bem recompensado e mais linhas de crédito estão se abrindo para que eu possa ficar ainda mais fisgado nesta vida. Mas eu sou bagre velho e já carrego outros anzóis no beiço (lembra dos automóveis). Quero pular fora desta loucura de alguma forma. De jeito nenhum quero meus filhos neuróticos como eu. Uma maneira legal de escapar seria ir morar no interior. Mas não como a Verô pensa, uma Rio Grande pra mim já é muito grande. Pelotas, Santa Maria, Caxias, Uruguaiana, Passo Fundo, nada disso me serve. Diz que até Lajeado já tem um shoppinzinho. A não! Sinto muito. Eu quero menor. Eu quero uma cidade em que o centro seja uma praça rodeada pela igreja, prefeitura, correio, padaria e ferragem e onde tudo fecha ao meio dia, até o restaurante. E assim mesmo eu não gostaria de morar no centro, gostaria de morar na periferia. Lá nos últimos postes, onde a estrada já é de terra e não é reta, serpenteia desviando de pedras e árvores. Lá onde a água é de poço, e um motor enche a caixa. Lá se colhe do quintal e um cachorro espanta os gambás. Lá teria milhões de trilhas e estradinhas de terra subindo e descendo morros para eu andar de bicicleta sossegado. Lá teria ar puro, lá teria silêncio, lá teria boa alimentação, lá teria saúde, lá teria paz, nenhum vizinho chato. Lá o progresso demoraria quarenta anos para chegar. Passárgada, lá eu mesmo construiria meu castelo de dois quartos e um banheiro. Nem tô se tu achas romantismo besta. Lá teria um pátio imenso. Lá meus filhos cresceriam bem. Informação eles teriam, porque hoje em dia ela vai para qualquer recanto do planeta. Além disso os pais são sempre os melhores professores e eu estaria muito mais presente que se vivesse aqui. E a riqueza de experiências que eles teriam? E quando precisassem algo diferente, como um dentista, a capital é ali e os transportes são rápidos. Quando eu penso numa cidade do interior que se encaixa neste perfil, desde que conheci a Noela, eu penso “no Agudo”. Não, na verdade eu não penso num Agudo, eu penso é numa Picada do rio.
Carnaval

No cotidiano de uma creche da prefeitura sempre está faltando alguém. A pessoa sai para curso, está de atestado ou alguma folga. Então, nunca fico na creche no horário do almoço para que a diretora não encontre alguma coisinha para eu fazer. Na creche que estou agora tem um shopping bem perto, chama Floripa Shopping. Caminho até ali e fico matando tempo no ar condicionado. Primeiro compro um suco ou uma coquinha no super, porque é mais barato. Depois saio com aquela lata na mão a perambular, atraindo a atenção dos seguranças. Paro na frente das vitrines, olho tudo. As vezes até entro nas lojas, pergunto coisas interessado. Os vendedores ficam bem iludidos que eu vá comprar algo, mas geralmente eu nem tenho dinheiro no bolso. Tem uma loja de produtos esportivos que eu atravesso todos os dias para olhar as bicicletas, o coitado que cuida da seção já nem pergunta se eu desejo alguma coisa. As gurias da banca de revistas também, já sabem que eu só vou mariscar um pouco, ler todas as manchetes e sair com as mãos abanando. Até o homem que cuida do banheiro já me conhece, passo sempre lá para fazer meu ritualístico cocô diário. Dia destes eu estava com a latinha de coca na mão, olhando uma vitrine inteira de televisores, destes modernos de tela plana. Estava olhando como as tevês estão enormes, uma maior que a outra: 32, 42, 52 polegadas! E como estão ficando baratas! Na primeira vez que vi uma TV de plasma custava 24.000 reais, agora dá para levar uma de 42 polegadas por dez vezes de 259 reais. Mais um pouco e vão te jogar nas costas uma quando tu passares na frente da loja! Bom, ficam todos os televisores ligados no mesmo canal ou no mesmo DVD, não sei. Sei que a imagem era a mesma na vitrine inteira, parecia um cinema. Acho que é para que os clientes possam comparar as imagens. Eu, distraído, lendo os cartazinhos ao lado de cada aparelho e comparando preços e recursos de cada um. A vitrine inteira, gigante, bem no salão principal do shopping, tomada pela mesma imagem da finada Cássia Eller fazendo um show ao ar livre. Ela cantava uma música dos Rolling Stones com uma voz mais parecida com a do Mick Jagger que a do próprio Mick Jagger. Levantei a lata da coca acima do nariz para tomar os últimos goles. Excitada com sua própria performance, a Cássia tirou a camiseta e segurou os dois mamilos como se fossem cigarros. Com a ponta dos dedos, sacudia as mamas para cima e para baixo enquanto gritava esganiçada: "satisfaaaaction!!!" Percebendo a aprovação do público em delírio, segurou uma das mamas com as duas mãos, levou o bico do seio a boca e mamou de sua própria teta. Eu, que olhava tudo vesgo, atrás da latinha, me engasguei ao rir e saiu coca até pelo nariz. Olhei para trás, ainda limpando o nariz, duas senhoras idosas passavam com uma menina de uns dez anos de idade. As véia me olhavam com muita censura e, no mezanino, um segurança já falava ao rádio me fuzilando com o olhar, não sei se por derramar coca ou por acreditar que fui eu o perverso que colocou aquele DVD!
Há uns anos atrás li um livro sobre formigas, se chamava Formigas em Ação. Sim, o livro inteiro era sobre os hábitos de uma determinada espécie de formiga do deserto do Arizona nos Estados Unidos. Ótimo livro, recomendo! Nós, os leigos, temos a mais nítida impressão que cada formiga é um ser independente, com vida própria. Mas não, a formiga é somente uma célula de um ser maior que se chama formigueiro. O formigueiro é que a formiga mínima. As conclusões da autora do livro nos levam a perceber que o ser humano mínimo também não é aquele com cabeça, tronco e membros. O indivíduo humano é só uma célula de um ser maior: O real ser humano é a família. Muito interessante a parte do livro que trata do acasalamento das formigas. Mais ou menos uma semana após o inicio do verão, a estação das chuvas naquele deserto, todos os formigueiros da região enviam suas rainhas e machos alados numa revoada para um determinado local do deserto. Somente neste dia estes habitantes esquisitos e diferentes do formigueiro aparecem na superfície. Dois ou três metros quadrados de deserto recebem os representantes de todos os formigueiros dos dez quilômetros quadrados do entorno para um grande carnaval onde todos se dão bem. Tudo acontece, todos os acasalamentos daquela nuvem de formigas voadoras, no mesmo dia, na mesma manhã, no mesmo chãozinho de deserto. Obviamente as formigas lêem algum jornal que nós, humanos, não temos acesso, porque todos os anos mudam o local e o dia do encontro e nenhuma rainha ou macho se perde ou chega atrasada para o compromisso. Mas, ainda no mesmo dia, as rainhas escavam um novo formigueiro e desaparecem da superfície por mais um ano.
Sexta feira, tarde da noite e eu atravessei a Mauro Ramos para entrar na Internet. Agradeço aos céus que abriu este ciber café nos fundos da locadora de vídeo aqui da frente de casa, posso ir ali até descalço. Antes eu tinha que caminhar quadras e quadras até outro ciber lá na Tenente Silveira. Infelizmente, o atendente me disse que estava fora do ar, saco. Lá fui eu caminhando de novo para a Tenente Silveira. Já na ida passei por alguns blocos de carnaval nas vielas do centro. Ah, é! Tinha até esquecido! É carnaval! Eu sempre fui um super folião empolgado, durmo que é uma beleza os quatro dias de carnaval. Para mim é só um feriadão com nada de bom para assistir na TV. Carnaval me atrai tanto como uma drag queen de mau hálito.
Bom, já no ciber, estava eu vendo os e-mails quando ouço na rua outro bloco passando pela rua. Quando sai do prédio, eles ainda estavam no fim da rua, perto da catedral. Resolvi ir conferir o bloco que se afastava, curiosidade antropológica mórbida. Era de maracatu, não estava muito animado, mas faziam um batuque infernal e tinha algumas gostosas. Todo mundo suando em bicas. Os tambores fizeram eu sentir uma estranha melancolia, uma angustia inexplicável. Resolvi descer a praça quinze para ver o movimento. Estava fazendo um calor de suar parado. Um outro bloco... Mais gente suando e bebendo cerveja. Passei rente a bateria, uns trinta percussionistas mais ou menos. Eles enchem a rua de vibração. O peito vibra no compasso do bumbo, o corpo inteiro vibra. Senti uma alegria, até uma certa euforia. Aquela angustia anterior se transformou em uma distraída esperança. Um monte de foliões brincavam, se coxando, amontoados entorno da bateria. Muitas fantasias têm asas, não sei porque esta mania de asas. Na calçada, muitas famílias assistiam a brincadeira, até com crianças de colo. Agora, à noite, no escuro, faziam sentido aquelas ridículas decorações carnavalescas que a prefeitura colocou em tudo que é canto do centro. De dia elas parecem grotescas, Carmens Mirandas tristes, com cores gritantes e detalhes espalhafatosos, inclusive asas, a noite elas ficam até bonitas e sorridentes. Depois fui até o palco da prefeitura no largo da alfândega. Um genérico da Ivete Sangalo cantando... Uma faxineira da creche já meio bêbada... Alguns beijos de língua trançada... Vou para Hercílio Luz, já no caminho de casa. Outro bloco... Como tem gente esquisita nos blocos, pessoas que não aparecem no dia a dia da cidade, ficam enterradas em algum canto, não vêm à superfície. Começa a cair uma garoa, mas logo para. Começo a perceber que sempre têm, em tudo que é bloco, uns homens vestidos de mulher. Alguns caricatos, outros quase imperceptíveis e outros ainda mais "gostosos" e atraentes que as próprias gostosas. Não era o dia do concurso "Pop Gay", nem dia do bloco dos sujos, era só um dia normal de carnaval, numa cidade comum do Brasil. Mas a quantidade de GLS na rua era muito, mas muito maior que o normal. Algumas pessoas tu ficas te perguntando, o quê que é aquilo? X ou Y? Aquelas pessoas com fantasia, então? Não tem como adivinhar o gênero do cidadão!

A partir daí comecei a ligar os pontos. O calor, o escuro da noite, a vibração dos instrumentos e o compasso do bumbo, BUM-bum, BUM-bum, o bafão úmido da garoa e do suor, o contato físico intenso entre os foliões... é um útero! Um aconchegante e prazeroso retorno ao útero. Emociona qualquer um. O útero te acolhe com todos os teus defeitos e esquisitices, tuas cores berrantes e detalhes espalhafatosos. Todos somos iguais no útero. Aceitos independente da cor, credo, orientação sexual ou classe social. No útero somos satisfeitos de todas nossas necessidades, inclusive pulsão sexual. Para algumas pessoas o carnaval é muito prazeroso. E, um detalhe do carnaval que historicamente deve ter sempre sido muito importante, mas que sempre me passou despercebido, é que o carnaval é o dia da revoada de acasalamento, principalmente da espécie GLS. Deve ter sempre sido dureza para a população GLS se encontrar sem medo, francamente. Mas, no carnaval fica fácil. Todas as Cássia Eller da vida, as rainhas aladas, se sentem aprovadas pelo público e, autorizadas pela multidão, soltam a franga sem censuras culturais nenhuma. Devem esperar este dia com ansiedade. É o prazo final para as delícias da carne antes do longo jejum da quaresma. O profano está autorizado a se manifestar. Nunca é no mesmo dia, mas ninguém se atrasa para o compromisso. Muitas vezes não é no mesmo local, mas ninguém se perde. E todo mundo que quer se dar bem consegue. É, sem dúvida, a revoada do acasalamento, porque, depois do carnaval, todos aqueles seres alados esquisitos, voltam aos seus subterrâneos e desaparecem por mais um ano da superfície.
Bola de neve

Há 24 anos, fiquei desempregado logo depois do ano novo, aluguei o quartinho mais barato de um hotelzinho de quinta, era a cumeeira do telhado. No inverno, a coisa mais esperta a fazer em Amsterdam é hibernar, eu dormia bastante. Uma vez, acordei no meio da manhã com frio, a calefação do quartinho era uma bosta. Estava recém clareando o dia, tinha nevado a noite inteira. Abri a janelinha para ver melhor o espetáculo. Senti o frio entrando, sem licença, sem vento, sem nada. Olhei a linha dos telhados de Amsterdam, tudo branco e silencioso, o único movimento era do ar que saía de meu nariz, o único ruído era o que eu fazia na tramela da janelinha. Fiz um punhado com a neve que acumulou ali sobre as telhas e joguei longe no canal lá embaixo. Eu estava sozinho, sem dinheiro, sem nada para comer, com frio, sem passagem de volta, ilegal no país, sem perspectiva de emprego. Mas, naquele momento, vivi um êxtase eufórico e comecei a rir sozinho. Rir não, gargalhar. Foi minha primeira bola de neve. Eu tinha vinte anos e estava vivendo intensamente! Percebi como eu era um privilegiado de estar ali sentindo aquele frio, aquela fome, aquela angustia. Percebi como meu coração se enchia de esperança exatamente por isto. Percebi o manacial de alegria que aquele momento de vida generosamente me oferecia. Era um momento épico, de filme mesmo, e eu tive a felicidade de perceber isto na hora. A gargalhada ficou soluçada e logo não sabia mais se estava chorando ou rindo. Vinte anos foi para mim a idade em que o riso e o choro eram indistinguíveis e muito intensos. Como eu queria caminhar de novo em Amsterdam! Sentir de novo aquelas emoções.
Inolvidáveis

Dia destes assisti o filme “Delicatessen”. Já viste? Acho ótimo, já vi umas três vezes, no cinema e na televisão. É uma história maluca, talvez pós colapso, onde a moeda são grãos e o mais caro é o milho. Tem uma cena adorável, onde um casal toca, cada qual seu instrumento, numa salinha de apartamento. A moça toca violoncelo e o rapaz toca serrote! Maravilhoso. Aquela cena me fez lembrar alguns momentos inolvidáveis que já passei na vida, curiosamente sempre no exterior. Admiro muito quem sabe tocar bem um instrumento, pois eu só sei tocar campainha. Uma vez, em Amsterdam, visitei uma amiga num sábado à tarde, sem avisar, coisa muito esquisita para a cultura local. Ela era holandesa, mas me serviu um chá inglês com biscoitos italianos e dançou flamenco catalão para mim, com direito as castanholas, canto, sapateado, vestido e tudo! Numa outra ocasião, em Bruxelas, eu e um amigo chileno visitamos uma amiga boliviana em comum. Ela nos agraciou com uma performance de harpa! Fiquei encantado, nunca havia visto de perto uma harpa, muito menos ouvido sendo tocada de forma tão harmoniosa. Ainda em Bruxelas, estava trabalhando num albergue limpando as mesas do refeitório, quando um rapaz argentino ensaiava seu violão. Violão é um instrumento bastante comum no Brasil e eu já tinha visto e ouvido várias vezes, mas não daquele jeito. O rapaz era um virtuose da música clássica e tocava com precisão, uma atrás da outra, músicas conhecidas com suas unhas compridas rufando sobre as cordas. Vendo que o escutava deleitado, conversou comigo e, sabendo que eu era gaúcho do Brasil, me presenteou com músicas clássicas do meu estado e do meu país, tocadas com a mesma maestria! Estava há quase dois anos longe de casa, então me emocionei muito. Teve ainda uma oportunidade que eu estava em Mulhouse na França, visitando a mãe do namorido de uma enteada (que confusão!). No segundo piso de uma casa antiga, num quarto bagunçado cheio de coisas, me interessei por um objeto de metal que parecia o fundo de um tonel de aço. O namorido da enteada, prontamente, separou o objeto do resto da quinquilharia e o montou no meio do quarto. Sacou uma espécie de baqueta do nada e, dali daquele fundo de tonel amassado, tocou uma bela música sem erro nenhum. Foi um momento saboroso, de muitas sensações, sensacional.
Os três barbeiros


Quando eu era guri e meus cabelos ficavam muito compridos, minha mãe me levava para cortá-los numa barbearia da Wenceslau Escobar, perto do centrinho da Tristeza. Minhas irmãs cortavam cabelo em outro lugar, num cabeleireiro, então, na barbearia só ia eu e a mãe. O barbeiro que trabalhava lá era nosso vizinho de rua, seu nome era Pacífico. O seu Pacífico tinha um nome muito apropriado, pois era calmo como o que. Quando chegávamos, depois dos cumprimentos, seu Pacífico se dirigia a minha mãe e perguntava como queria meu cabelo. Ela sempre orientava a fazer o corte “Joãozinho”. Passei a infância com o mesmo corte de cabelo, o tal do joãozinho que o Pacífico fazia. Lá pelos doze anos de idade eu já ia sozinho cortar o cabelo no Pacífico. Minha mãe me dava o dinheiro, eu levava todo enrolado fechado na mão, pelo menos agora já tinha o direito de eu mesmo pedir o corte que queria. Mas, inconscientemente, eu pedia o mesmo joãozinho que minha mãe achava adequado. Claro, aos doze ninguém, que não seja um Sid Vicious, pede cabelo moicano. Só tive oportunidade de ir sozinho ao Pacífico pedir o joãozinho mais umas três vezes. Ele morreu e a barbearia fechou. Fiquei uns dias cabeludo por não saber aonde ir para ter meu bom e velho joãozinho de volta a minha cabeça. Depois de anos fiquei sabendo que o filho do Pacífico tinha se formado engenheiro eletrônico e ficado riquíssimo. Fiquei contente com a notícia, sua vida simples, pacata e pacífica tinha subprodutos invisíveis, tinha sido proveitosa e frutífera!
A patrulha “Onça” era a melhor de todas as patrulhas do grupo de escoteiros Nimuendajú. Eu me orgulhava muito de dela participar. Na época, meu melhor amigo era o sub-monitor da patrulha. Comentei com ele o causo de não saber onde cortar os cabelos com a morte do barbeiro e o fechamento da barbearia. Ele me convidou para acompanhá-lo ao seu barbeiro no centro. Lá fomos nós, contentes e orgulhosos de ir ao centro de ônibus sozinhos. Que independência! O barbeiro dele era conhecido como Pelotas, por ser daquela cidade. Apesar de ser pelotense, ser uma espécie de cabeleireiro e de sempre lavar meus cabelos com um creme amaciante, o tal do Pelotas não era gay. Sua mulher era a manicure do salão e seus filhos às vezes apareciam para conversar alguma coisa. Um dos filhos já era até formado administrador de empresas. Ele tinha muito orgulho daquele filho. Aos poucos, conforme eu ia crescendo, fui descobrindo que os escoteiros eram um movimento conservador para caramba e o sub-monitor era um verdadeiro amigo da onça. Mas, daquela amizade escoteira, o que sobrou foi o Pelotas. Era um senhor simpático, tinha assunto bastante, nem demais, nem pouco, bastante. Sempre concordava comigo e valorizava minha opinião. Ele fazia o mesmíssimo corte joãozinho do Pacífico, mas chamava de cadete. Eu achei bacana aquele corte cadete, porque assim eu não era mais uma criancinha que cortava joãozinho porque a mãe queria. Depois de alguns anos freqüentando aquele salão e cortando cadete, subverti a ordem e resolvi deixar crescer os cabelos! Adolescente, sabe como é. Deixei de ir ao Pelotas.
Quando me chamaram para o exército, com dezenove, achei melhor cortar os cabelos antes de aparecer no quartel para não ficar estigmatizado. Naquele tempo, servir o exército era obrigatório. Era aterrorizante para quem chegava perto dessa idade e não queria ficar um ano rastejando na lama, marchando léguas ou dormindo com um monte de homens. Principalmente para quem já tinha se conscientizado nos escoteiros que uniformes, ordens unidas e patrulhas eram um horror. Cortei o cabelo lá na Tristeza mesmo, numa cabeleireira que a mãe freqüentava. Se eu aparecesse com aquele cabelão no Pelotas talvez ele nem me reconhecesse, fiquei sem jeito de ir lá. Servi quatro dias, então meu pai mexeu alguns pauzinhos, fiz um juramento e consegui minha “terceira”: a carteirinha que dizia que eu era da reserva e tinha cumprido minhas obrigações militares. Para avacalhar, a foto três por quatro que coloquei na terceira foi a que tirei uma dia antes de cortar o cabelo, parecia o John Lennon nos momentos mais cabeludos! Livre do exército e das obrigações militares, tirei o passaporte e fiz uma grande viagem pela Europa. Fiquei dois anos por lá e era difícil cortar os cabelos. Cada hora num lugar, numa língua, cidade, salão e barbeiro diferente. Era difícil encontrar um barbeiro! E me fazer entender sobre o que era um Joãozinho ou um Cadete? Levava um tempão. Mas difícil mesmo era pagar. Não porque em cada país que eu ia tinha uma moeda diferente antes da comunidade européia e seu Euro entrarem em vigor, mas porque era caro. Meus dinheiros de ilegal não eram o suficiente para pagar um profissional que lá é muito valorizado. Eles chamam de “hair dresser”, o cara que veste tua cabeça. Teve até uma amiga alemã que se ofereceu para quebrar meu galho uma vez, ela mesma fez o serviço, de graça.
Quando voltei da Europa, fui direto no Pelotas. Ele me recebeu com alegria e nem ficou chateado que fiquei anos sem aparecer. Se fosse uma namorada já me enchia de tapas. Voltei a fazer o corte cadete de anos atrás por anos a fio até que o Pelotas também morreu. Cheguei no salão dele e tinha um outro cara. É como pensar que vai tomar coca gelada e é café frio, qualquer um gospe com nojo. Não que café seja nojento, é até legal, mas eu fui pensando na coca. Sai testaveando do salão sem cortar o cabelo e, de novo, fiquei um tempo sem saber o que fazer: onde ir para cortar o cabelo? Somente o Pelotas sabia como era o cadete que eu gostava. Por sorte, eu estava para fazer outra grande viagem, vim para Florianópolis fazer o mestrado.
Quando cheguei aqui em Floripa deixei o cabelo crescer, simplesmente porque não tinha idéia de onde ir cortar. Aos poucos, claro, me inculturei na cidade e logo achei um barbeiro legal e barato ali na Major Costa, quase esquina com a Mauro Ramos, pertinho de casa. Seu nome era Antenor e era gaúcho também! No começo eu pedia o corte cadete, mas, diante da descrição do corte, ele chamava de americano, então passei a pedir o americano. Tanto faz se era cadete, americano ou joãozinho, o que me interessava é que eu entrava pela porta parecendo o desgrenhado Kurt Cobain e saia parecendo o certinho Ronie Von. Cortei anos o cabelo com o Antenor. Até que em novembro passado ele também morreu. Meu terceiro barbeiro na vida e o terceiro que me trai sem querer. A barbearia estava fechada e perguntei numa lojinha vizinha se sabia o porque. Fui informado da morte do Antenor e, de novo, fiquei sem saber o que fazer. Não conheço outro lugar para cortar o cabelo e, além disso, quem vai saber fazer o perfeito americano que o Antenor fazia? Ele era um profissional muito bom. Sempre entendia o americano que eu queria no cabelo, além disso, conversava animado sobre qualquer assunto ou conservava respeitoso silêncio quando percebia que eu não estava no clima para conversa. Ele chamava alguns clientes de bancários, eram aqueles que ficavam o dia inteiro ali nos bancos da barbearia só conversando. Ele chamava os arruaceiros, aqueles que os bancários identificavam passando, de cacos. E quando ele percebia que eu torcia o pescoço para olhar alguma bunda mais gostosa que passava ele perguntava, malicioso? Robusta a senhora, não é?
Morte é uma coisa esquisita, desestabiliza todos no entorno. Em dezembro, na festa de final de ano no lugar em que estava trabalhando, veio uma cabelereira cortar o cabelo da comunidade de graça: entrei na fila. Essa tinha sido a última vez que cortei o cabelo até hoje. Comentei com minha supervisora, Denise, que pega o ônibus comigo, essa situação. Ela me disse que o Antenor era pai da Grasi! Uma companheira da base do sindicato que sempre que tem greve se dispõe a participar do comando. A filha do Antenor é uma criatura crítica, com consciência de classe. Aqui em Florianópolis todo mundo é conhecido, vizinho, parece até a Tristeza da minha infância.
Tanto o Pacífico, quanto o Pelotas e o Antenor tinham o mesmo ofício. Ofício considerado simples e pouco importante na nossa cultura. Mas, para mim, que ignoro completamente o que se deve saber para ser barbeiro ou cabeleireiro, é um ofício necessário. Além disso, para os três era um trabalho digno, que dava prazer, não era penoso, sustentava suas famílias e até permitia uma educação crítica e de qualidade para sua prole. Talvez os três tivessem outros hobbies, estudos, sonhos, lutas ou profissões fora do que minha vista alcançava. Suas existências talvez tivessem subprodutos muito mais gratificantes para eles que cortes de cabelo. A gente não percebe, mas tem muita gente que faz coisas interessantes sem aparecer para a sociedade. Não tive tempo para conhecê-los o suficiente, mas seus filhos são os frutos mais visíveis de seu esforço fora dos salões.
No nosso sindicato, pela primeira vez tem um médico na diretoria. Os médicos são sempre arrogantes e se acham melhores que os outros seres humanos. Eles dificilmente se unem ao resto da categoria quando é para reivindicar algo. Eles preferem fazer um lobby em separado, direto com o secretário ou o prefeito. Mas o Cláudio, nosso médico, é diferente. Ele se percebe um trabalhador como os outros e se importa com os problemas dos servidores mais humildes, mesmo ganhando umas dez vezes mais que quase todos. Ele entrou na chapa representando a saúde e a saúde está muito mais interessada na mobilização sindical agora com ele. Porém, ele mantém uma arrogância de fundo. Sem nem perceber ele desdenha de alguns serviços. Dia destes, estávamos conversando. Ele me admira muito, naquela ocasião falava mais uma vez que eu me expresso verbalmente muito bem, escrevo muito bem, tenho muito vocabulário, que minhas apresentações no power point são muito convincentes e que minhas falas nas assembléias são sempre muito engraçadas e relevantes. Em resumo, ele falou que eu sou um homem de muitos recursos, um carismático político mobilizador das massas. Em seguida ele falou que acha um desperdício eu ficar todo dia brincando com criancinha. Sem nem perceber, ele arrogantemente desdenhou a minha profissão. Sem nem perceber também, demonstrou uma total ignorância sobre o que significa ser professor de Educação Física na Educação Infantil. O desafio intelectual que é, o quanto precisa estudar, planejar, registrar, avaliar constantemente. Além disso, ignora o quanto minha atividade profissional permite abundante pesquisa, sobre a rotina da unidade, sobre os profissionais, sobre as crianças, sobre as relações, sobre as expectativas dos pais, um estudo de caso sobre alguma criança em especial e milhões de outras coisas. Ou seja, dá para fazer mestrado, doutorado e pós-doutorado sem sair da unidade de ensino. Eu, na hora, nem percebi e concordei com ele. Sou diletante, ganho pouco, estou de saco cheio e realmente me acho sub aproveitado na atual função. A nossa conversa era sobre o que eu seria se não fosse professor, já que eu estou pensando em mudar de vida.
Não é só o Cláudio que acha que escrevo bem e que desperdiço meu talento dando aulas... ou melhor, brincando com criancinhas. Muitas pessoas já me falaram isso. Minha mãe fala que eu sou escritor desde quando ainda morava na Europa. Ela e toda família adoravam ler minhas cartas. Meu tio Luiz fala que eu sou escritor desde que eu era um adolescente. Ele trabalhava em Rio Grande e me deu uma cópia da chave do seu ap em Porto Alegre para eu aproveitar durante a semana, nós trocávamos muitos bilhetes. Eles são ambos suspeitos para falar: o Luiz é escritor e, o pai deles, meu avô Dante, também era escritor. Todas as namoradas que tive também se rasgaram em elogios para meus textos. Tenho uma lista de umas sessenta pessoas que mando testículos por e-mail a toda hora e muitas delas gostam também. Tem uma guria que já até decidiu o título do meu livro, segundo ela vai ser: Os meus testículos! Muitas pessoas já riram e se emocionaram com meus escritos. Até o sindicato logo percebeu e passou a se aproveitar dessa minha capacidade, já escrevi várias vezes para o jornalzinho, desde conclusões sobre o resultado da greve, até resenhas de livros e sinopses de filmes. Mas, nunca tinha dado muita bola para nada disso.
Meu ofício é simples, me dá prazer, não é penoso, me proporciona muito tempo de ócio, tem um status de merda, mas acabo ficando por lá mesmo. Acabo me identificando com profissionais como o Pacífico, o Pelotas e o Antenor. Na nossa cultura somos desvalorizados, mas lá na Europa, Japão, ou outras culturas mais desenvolvidas somos muito mais reconhecidos e bem gratificados pela sociedade. Quanto mais inteligente e qualificado for o educador, mais é com os menos instruídos que deve trabalhar. O mais famoso educador brasileiro, Paulo Freire, trabalhava com analfabetos pobres da periferia de alguma cidadezinha do interior. Eu sei o valor do trabalho dos barbeiros e dos professores de Educação Física na Educação Infantil. Só percebi o valor dos barbeiros quando faltou, mas percebi. Além disso, também me sinto muito como um bom samaritano. O tal do samaritano, que era um povo considerado impuro pelos judeus, agiu como Jesus pregava, cuidou do próximo. Muitos judeus falavam em pureza mas não agiam como puros. Ser filho de teóloga tem suas vantagens, conheço o outro lado das parábolas. Eu sinto que estou fazendo o que posso para ajudar os próximos, tanto adultos no sindicato, como crianças na creche. Afinal, vinde a mim as criancinhas. Nisso, eu sou um bom cristão. E, já que embalei nas citações bíblicas, como é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar para o reino dos céus, até a baixa remuneração da minha profissão não me preocupa muito. Sei que uma hora ou outra vou ser gratificado, nem que seja no céu! Sou ateu, sabes, não é? Mas adoro esses papos bíblicos pela riqueza das metáforas.

Hoje comecei a freqüentar a cadeira de um novo barbeiro. E ele é novo mesmo, jovem. Fiquei totalmente sem graça quando ele, depois de me chamar de senhor o tempo todo, sem a menor cerimônia e sem me consultar, aparou cuidadosamente minhas sobrancelhas, meus ouvidos e minhas narinas! Aprendi essa dura lição: Quando o seu barbeiro é mais novo que você, significa que você está... VELHO!!! Bom, estava eu lá sentado, vendo os cabelos brancos caírem no avental de cetim, quando tive um insight. Meus elogiados escritos são o resultado de toda uma vida. O que escrevo é, para mim, como o filho engenheiro eletrônico rico do Pacífico ou a filha com consciência de classe do Antenor ou, ainda, o filho administrador do Pelotas: o subproduto da minha atividade econômica principal é que é o belo fruto de toda minha discreta e marginal existência. Minha vida simples, pacata e discreta serviu para alguma coisa. Agora já posso morrer. Minha atividade invisível vai ficar para perpetuar meus memes. Me olhei no espelho a noite e, depois de muitos anos, me achei bonito. Não porque estava com o cabelo bem aparado, mas porque me percebi um criador. Ganho a vida como professor mas sou mesmo um escritor.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A limpeza da casa de solteiro 

Depois de um tempo de casado, com todos os confortos que uma casa organizada oferece, me separei e voltei a morar sozinho. Naturalmente, voltei também a ser o único responsável pela limpeza de minha casa. Aos poucos, recordei práticas antigas, da época que era jovem, logo depois da faculdade. São coisas simples, que todo solteiro conhece, para manter a casa funcionando. Não é tão difícil manter cozinha, banheiro e quarto limpos. Assim que resolvi escrever esse rápido ensaio didático e ilustrativo de como fazer isso.
Você leitor, talvez se pergunte sobre as outras dependências da casa que não foram citadas, tais como sala, corredor e lavanderia. Evidentemente, corredor e lavanderia são limpos somente com o uso de uma enxada, quando o acumulo de pó, pelos e detritos em geral começam a obstruir a passagem. Mas isso é muito raro de acontecer, eu mesmo nunca precisei fazer isso. Sala, natural, todo mundo sabe, não precisa ser limpa, mesmo se seu sofá já tem migalhas fósseis daquela pizza que você comeu há uns dois anos atrás e aquela Coca-cola derramada no chão já não é mais líquida e sim uma mancha preta no piso que faz aniversário todo verão.
Vamos começar nossa explanação pela cozinha. A cozinha, sem dúvida, é o lugar que mais precisa de atenção do solteiro. Quando você janta em casa, por exemplo: Claro que não vai cozinhar, porque além de não saber, você vai sujar um monte de louças. E, por mera coincidência, nenhum homem solteiro gosta de lavar louça. A solução é óbvia, põe-se algum congelado no micro-ondas e come-se na própria embalagem de papel. Assim agindo, somente um garfo e um copo serão sujos e eles cabem na pia. Perceba que, depois de mais ou menos um mês, se você repetir o procedimento por umas cinco vezes por semana, todos os seus copos e garfos vão estar sujos. Então, usa-se a inteligência: basta comprar mais louça quando as que você tem já sujaram. Com essa simples medida, protela-se por mais um mês a desagradável tarefa de lavar os pratos. Outra solução é usar o mesmo copo por mais de um dia. Deixe sempre um pouco de líquido no fundo à noite e verás que o copo parecerá sempre limpo. O truque é não deixar secar sua bebida. Talvez você pense que, mesmo assim, depois de um tempo, sua pia vai estar tremendamente cheia. Acertou. Nada de pânico, para fazer mais lugar na pia, basta jogar fora algumas louças que estejam ali há mais tempo, aquelas que já estão meladas e meio fedidas. Mas, por mais esperto que você seja, chegará uma hora que você vai ter que lavar a louça, principalmente se você está planejando trazer alguma mulher para passar a noite. Mulheres, por alguma razão incompreensível aos homens, ficam horrorizadas com a visão de uma pia cheia e, ou elas te deixam enojadas na mesma hora ou se prendem a lavar, o que é mais raro. Portanto, para não correr o risco de perder uma noite de prazer por preguiça de lavar a louça, tome coragem e arregace as mangas. A essa altura, provavelmente as panelas do fundo da pia já terão um musgo verde, às vezes até uma graminha, então é inútil você tentar lavá-las da forma como as mulheres fazem. Aja tradicionalmente, como você sempre faz nessa situação. A solução é bem simples: retire toda a louça da pia, tampe o ralo, jogue tudo de volta e encha d’água, mas agora ponha um copo de água sanitária. Deixe repousando por uma semana e verás que os cabelos verdes desapareceram, mas a louça ainda estará suja. Calma. Compre uma panela enorme, daquelas de cozinhas industriais, suficientemente grande para que caiba toda a louça, encha d’água e coloque a ferver por uma tarde inteira, mais ou menos. Se quiser, adicione mais um copo de água sanitária. Agora você já pode lavar como as mulheres fazem sem correr o risco de contaminação por alguma bactéria mais agressiva, daquelas grandes, que tentam te estrangular pelo pescoço ou te dar uma rasteira. O processo todo de lavação de louça não demora mais do que três semanas. O procedimento para a limpeza do fogão é muito mais simples e leva somente uma meia hora: se retira os restos de comida seca anualmente, com marreta e talhadeira, geralmente quando ele deixa de acender todas as bocas. Se, por ventura, mesmo depois de limpo com todo esse esmero, ainda nenhuma boca funcionar, chegou a hora de trocar de fogão. Já a geladeira só se lava quando, ao abrir, se sentir um cheiro de fossa. Nesse momento, alugue ou compre uma lavadora de alta pressão, daquelas que se usa em lava rápido de carros, e mande ver nas partes mais sujas.
Agora que você alugou a lavadora de alta pressão para dar um jeito naquela geladeira fedida, aproveite e passe para o banheiro. Faxinar o banheiro é uma arte que deve ser exercida regularmente. Essa é uma peça da casa que ninguém vai reparar muito se está fedendo, é normal. O que determina sua lavagem não é o cheiro, portanto. Eu sei quando chegou a hora em que não se pode mais adiar a limpeza do banheiro quando, ao levantar do vaso, a tampa levanta junto colada na bunda. Ou, outro método, é se os pedacinhos de carne que você tirou com fio dental e saíram voando de sua boca até grudar no espelho já são suficientes para fazer um hambúrguer. Para proceder a limpeza do banheiro eu simplesmente derramo água sanitária por cima de tudo e jateio ralo abaixo com a lavadora. É muito prático. Fica um pouco forte o cheiro depois, mas logo passa.
O quarto é a parte da casa mais fácil de limpar: basta trocar os lençóis. Eu faço isso sempre que dá para ver direitinho onde durmo na cama através da graxa no lençol. Isso todo solteiro sabe, dá para se reconhecer e até adivinhar a posição que se dorme através do contorno seboso desenhado na cama. Também troco a fronha nessa hora. Geralmente, se for branca, ela está mais para um cinza lustroso. Aqui, novamente, é importante lembrar-se de trocar essas roupas de cama sempre que você for receber uma mulher, ainda que o contorno de seu corpo não esteja totalmente claro. As mulheres costumam não se sentir muito a vontade sem os lençóis limpíssimos. Eu sei, é estranho para nós homens, mas elas são assim, frescas. Mas, se você quiser realmente impressionar a garota, não esqueça também de desbarrancar os cantos do quarto com a enxada, sempre fica um pouco de pelos acumulados.

Algumas pessoas me acusam de ser negligente com a limpeza da casa. Eu nego. Ao contrário, sou rigoroso e metódico! Os vidros, por exemplo, de quatro em quatro anos eu limpo cuidadosamente. Justamente a tempo para que não passem de translúcido para opaco. Não, eu sei, mesmo solteiro o cara tem que ter higiene! Mas se “me chamam de grosso, eu não tiro a razão”! Às vezes me chamam de ogro, daí até me animo. O Shreck não tem sua Fiona? Sempre fui muito feliz limpando minha casa assim. Claro que, algumas vezes, enfrentei protestos. Geralmente é de algum ácaro barbudo, de metro e meio de altura, líder do sindicato, que me recebe na porta reclamando onde estão aqueles farelos na cama que eu costumava fornecer. Baratas não me incomodam, são tão discretas e silenciosas. Ratos, felizmente, nunca apareceram na minha casa, acho que eles se assustaram com a Dorotéia, uma bactéria monstruosa, do tamanho de uma ovelha, que fica circulando pelo banheiro quando não estou. Ela é muito simpática, sempre me deixa recadinhos de amor escritos no chão do box.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Bicicletas e automóveis


            O transporte urbano individual nas grandes cidades brasileiras é obviamente baseado no automóvel. Este fato é muito intrigante, já que o automóvel apresenta uma série de inconvenientes na atual conjuntura socio-econômica-ambiental mundial. Existe também uma saturação estupenda do modelo, quase ao ponto da paralisação. A situação é paradoxal, já que a intenção é o deslocamento. Ao mesmo tempo, surpreende o total desprezo pela bicicleta como uma alternativa modal, já que, esta sim, é muito mais apropriada as atuais exigências urbanas. Este texto tem por intenção fazer um comparativo entre estes dois modos de deslocamento urbano individual, levantando questões relativas as motivações que levam as pessoas a escolherem este ou aquele modo de transporte.
  
A comparação entre bicicletas e automóveis já é secular. Desde o final do século XIX que se tem claro as vantagens energéticas da bicicleta sobre o automóvel. Desperdício de energia é, sem dúvida, o ponto mais gritante de inadequação do automóvel à atual situação mundial de busca de sustentabilidade. A combinação ciclista/bicicleta chega a ser 100 vezes mais econômica energeticamente do que a combinação motorista/carro na relação pessoa/quilometro e é 5 vezes mais econômica até mesmo que a pessoa se deslocando a pé. No processo de fabricação também se evidencia a esmagadora vantagem da bicicleta sobre os automóveis. Enquanto os carros precisam de no mínimo 900 kg de material para serem construídos, a bicicleta não chega a consumir 15 kg. Naturalmente todo material tem que ser extraído do meio, beneficiado, processado, moldado, acabado, montado e embalado. Todas estas etapas exigem um enorme aporte energético, quanto maior a quantidade de material maior o desperdício de energia. Ao se estudar o fluxo de energia numa cidade precisamos atentar para o seu bom uso e melhor aproveitamento, além de sua conservação. O automóvel desperdiça cerca de 60% da energia química liberada pela gasolina em aquecimento do meio, somente os 40% restantes são realmente transformados em energia cinética. Se considerarmos ainda que 90% desta energia aproveitada para o movimento é para transportar o próprio carro, não a pessoa, o desperdício é ainda mais escandalosamente perdulário. Bem ao contrário, a bicicleta chega a aproveitar 98,4% da energia que o ciclista nela deposita. Mesmo se o automóvel evoluir para outros motores e fontes energéticas, sempre precisará levar de um lado ao outro toda massa do carro e assim será sempre esbanjador.

Toda cidade ocupa parte de sua área urbana para o transporte: vias, estacionamentos, garagens, lojas e oficinas de veículos. A enorme diferença entre as cidades em que o deslocamento urbano é baseado no automóvel (até 40% da área urbana ocupada para o transporte) e naquelas em que a bicicleta é a opção primeira (até 5%), demonstra claramente um desperdício espetacular de espaço urbano que poderia estar sendo usado para outras funções além do transporte. Todas as soluções urbanas tem que ser pensadas para cumprir mais de uma função e as vias automobilísticas só tem uma função além de causar uma série de diferentes problemas como a impermeabilização e compactação do solo.

            O automóvel é um dos maiores culpados pelo aquecimento urbano. O necessário resfriamento do motor de combustão interna desperdiça na forma de calor a maior parte da energia liberada pelo combustível, como já foi dito. Os freios automobilísticos também funcionam através da troca da energia cinética pela energia térmica no aquecimento pelo atrito dos discos e tambores de freio. Nas cidades quentes, o ar condicionado dos veículos automotores particulares também contribuem significativamente para aumentar o calor do meio urbano. Até mesmo os pneus, ao se atritarem com o solo provocam aquecimento, quanto mais aderência, mais atrito e calor. As próprias vias automobilísticas funcionam como condutoras e refletoras de calor, além de necessitarem de drenagem constante, assim elas conduzem a água das chuvas para os esgotos pluviais impedindo que haja evaporação. Além de tudo as partículas sólidas resultantes da queima dos combustíveis fósseis ficam suspensas no ar e ajudam na formação de uma ilha urbana de calor. A bicicleta não aquece o meio e suas vias não necessitam de compactação profunda e nem mesmo cobertura, preservando sua permeabilidade.

          O preço inicial de uma bicicleta é cem vezes menor que um carro popular. A manutenção de um mecanismo tão simples como a bicicleta, com pouquíssimas peças móveis, é muito menor que o de uma máquina complexa como um automóvel. Os acidentes envolvendo bicicletas são sem gravidade – devido a pouca velocidade e o baixo peso dos veículos – para as pessoas, significando menor tempo de internação, além das quase nulas conseqüências materiais. O ciclista urbano desenvolve uma aptidão física muito boa, resultando numa maior qualidade de vida, muito menos necessidade de hospitalização por problemas causados pela inatividade física na terceira idade e uma maior e mais produtiva longevidade dos indivíduos idosos. As ciclovias são muito mais estreitas e menos espessas que as rodovias, significando muito menos gastos na implantação de novas vias. A bicicleta não consome combustíveis ou energia elétrica. Cerca de 25% da energia consumida pelas cidades é na área dos transportes, é fácil a percepção da economia em divisas públicas para a união se uma maior porcentagem de pessoas trocassem um veículo pelo outro. Nem um centavo a mais no PIB do Brasil seria criado com o maior uso das bicicletas, ao contrário, talvez até diminuísse com a diminuição da produção de automóveis. Mas a diminuição brutal de recursos com transportes, saúde e na solução de problemas sociais e ambientais, traria uma melhora significativa na qualidade de vida da população. Devido a ação das endorfinas liberadas no cérebro pelo exercício físico, o aumento na produção da população economicamente ativa e das crianças adolescentes em idade escolar seria perceptível. Mas, acima de tudo, os custos ambientais do uso do automóvel, ainda ignorados, que até podem levar a extinção da nossa espécie, seriam evitados.

         Existe um novo paradigma de saúde que determina que as pessoas devam exercer atividades físicas moderadas, sistemáticas freqüentes para obter uma maior longevidade e uma melhor qualidade de vida. O deslocamento sistemático de um lugar para outro é uma atividade natural e diária da grande maioria dos indivíduos. A bicicleta é um veículo que integra deslocamento com atividade física moderada e lúdica. A adesão aos programas de atividade física é maior se eles forem lúdicos e moderados. O uso da bicicleta como transporte é um hábito que pode ser ensinado desde a infância a ser sistemático e freqüente. Os hábitos mais enraizados na mente e que são cultivados para o resto da vida são aqueles aprendidos durante a infância, são os hábitos culturais. Além de tudo, o usuário cotidiano da bicicleta desenvolve uma série de características benéficas a sua saúde: Desenvolve o sistema cardiovascular; desenvolve o sistema respiratório; disciplina o sistema digestivo, equalizando o peso; desenvolve a musculatura esquelética de todo o corpo; desenvolve resistências psíquicas as dificuldades pois enfrenta os elementos da natureza; tonifica as articulações sem agredi-las; combate as sensações de angústia, ansiedade e depressão; tem a sensação de liberdade, relaxamento e euforia (liberação de endorfinas); aumenta sua auto-estima; aumenta sua sociabilização.

          Chega a ser revoltante os males causados à saúde pelo automóvel. Além das milhares de mortes e mutilações que provoca anualmente com os acidentes inerentes ao sistema, os carros ainda são responsáveis por muitas mortes e internações devido a poluição que geram. As partículas sólidas suspensas no ar provocam inúmeras doenças relacionadas ao sistema respiratório, inclusive câncer. O motorista das grandes cidade brasileiras é sempre uma pessoa estressada. E não o é sem razão, o trânsito exige que a pessoa ande com grande parte de seu patrimônio, para lá e para cá, numa dinâmica e imprevisível roleta, que apesar de suas muitas regras, é falível, ou seja, ameaça a integridade física do condutor e dos transeuntes ao redor. O estresse gerado pelo trânsito é tanto que pode causar problemas de sono, depressão, ansiedade e neuroses diversas. Mas o mais sutil e perverso mal causado pelo automóvel são as doenças relacionadas a degeneração hipocinética. Assim que a pessoa adquire um carro, dificilmente ela volta a fazer a mais simples e natural das atividades físicas humanas: a caminhada. Obesidade, hipertensão, diabetes, problemas circulatórios como tromboses, infartos, isquemias, acidentes vasculares cerebrais, e muitos outros, são exemplos do que pode ocorrer ao motorista que vê no carro a solução para o desconforto do esforço físico.

            Ecologicamente falando, o automóvel moderno, nas proporções em que se encontra, é patético. Não tem nada de sustentável, é pouco reciclável, desequilibra todo o ecossistema por onde circula. E mesmo em áreas onde não circula, mas os recursos naturais necessários a sua existência são extraídos e seus resíduos depositados, seus tentáculos perversos se fazem sentir. No tamanho atual, o abalo provocado no meio ambiente pelos carros é global. Já a bicicleta tem um impacto muito menor. É sustentável e se integra ao meio sem agredi-lo. As propostas urbanas tem que cumprir mais de uma função. O maior uso da bicicleta tem uma infinidade de funções: descongestiona a cidade, diminui a área destinada aos transportes, diminui o ruído, diminui a poluição, melhora a qualidade de vida dos indivíduos, diminui a diferença social, diminui o gasto energético, diminui os acidentes, diminui as internações por doenças relacionadas a inatividade, enfim, é um veículo que respeita muito mais o ecossistema em que esta inserido. 

            O automóvel é causa e efeito da diferença social. O sistema de transporte das grandes cidade brasileiras é todo baseado no carro particular. Assim sendo, toda a cidade foi espraiada numa escala automobilística. Os equipamentos urbanos são distantes uns dos outros e as vias de acesso dão prioridade aos automóveis. Deste modo, se a pessoa não tem carro próprio, simplesmente não usa o sistema, sofre o sistema. Sem acesso à rápida locomoção, as pessoas que não tem condições de adquirir um veículo ficam marginalizadas dos processos produtivos e afastadas das melhores oportunidades de crescimento pessoal. Assim, o circulo vicioso perverso de exclusão social se fecha: os excluídos não conseguem comprar um carro e participar da cidade, serem cidadãos plenos. Os incluídos, claro, não querem que seus privilégios diminuam em nenhum aspecto. A perpetuação desta situação imoral se torna inevitável.
  
            Depois de todo o exposto, do absurdo que é o automóvel nas cidades atuais, fica fácil imaginar uma cidade sem automóveis. Esta cidade, ainda fictícia, seria sem ruído, sem fumaça e poluição, muito mais fresca e cheia de espaços livres verdes. O solo seria permeável permitindo que a vida florescesse e absorvesse a energia solar. Toda uma nova cultura e um novo modo de vida surgiriam. Os indivíduos se deslocariam pouco, devido as facilidades tecnológicas, sempre a pé ou de bicicleta. Sem o estresse do deslocamento e com a atividade física mais presente no cotidiano dos indivíduos, as vidas teriam uma qualidade muito maior. A socialização da proximidade física diminuiria a diferença social e aumentaria a eqüidade de chances e solidariedade entre os indivíduos. O transporte de cargas seria feito em carroças de tração animal ou humana. Sem dúvida, sem os automóveis nas cidades a humanidade ficaria muito mais humana (espécie orgânica como outra qualquer) e viveria em mais harmonia com o meio.
  
         O curioso, diante de tantos problemas gerados diretamente pelo automóvel, é o porque de não se investir mais em outras formas de deslocamento. Visto que a tecnologia para se construir bicicletas já é conhecida tanto quanto a para se fazer automóveis, é de se perguntar qual o impedimento afinal? Esta resposta é complexa, como o são todos os problemas pós-modernos. Certamente os brasileiros de grandes metrópoles não escolhem o carro por ser o modo mais barato. Tampouco o fazem por ser o modo mais rápido no meio urbano, visto que não o é. Talvez fossem as grandes distâncias dos trajetos urbanos, mas também não: a média de distância dos deslocamentos urbanos numa cidade grande como Porto Alegre é de 2,3 km e isto pode ser percorrido em seis minutos de bicicleta. Poderia se suspeitar da ignorância da existência da opção, o que também não se verifica nem entre as crianças. Uma rejeição social muito enraizada talvez, então, seria o empecilho maior, mas não, também não é isto: a bicicleta é querida pela maioria. Acreditamos que conseguimos levantar as principais motivações que levam o indivíduo urbano brasileiro a desejar tão profundamente o automóvel, a ponto de admitir até um grande endividamento para que possa obter seu objeto de desejo. São as seguintes:
           
Uma das razões mais conhecidas pela comunidade científica e ao mesmo tempo mais ignoradas pelo senso comum é a projeção erótica que os indivíduos imputam aos automóveis. O mais básico dos instintos eróticos é a vaidade, gostamos de nos sentir admirados e desejados, sentimos prazer com isso. O automóvel é uma poderosa arma para que esta admiração e desejo se tornem realidade. Aqueles que o possuem detém um apelo sexual muito maior do que outros indivíduos. É como se o próprio corpo do indivíduo tivesse aumentado e se tornado muito mais forte, rápido e poderoso. Eduardo Galeano comenta muito bem este segundo corpo metálico. Ele lembra que, ao contrário do corpo de carne, o corpo carro não perde a potência com o decorrer dos anos, pode ser trocado por um novo quando perde o brilho e, mesmo se acidentado, pode ser totalmente reconstituído. Os donos de carros tornam-se semideuses, quase imortais. Assim, aos olhos de outros indivíduos, aquele sujeito de carro é muito mais apto a enfrentar as dificuldades da vida e, por isso, é o preferido para a cópula, procriação e sustento da prole. O carro é para o ser humano assim como um enorme leque colorido na cauda é para o pavão. Um artifício para chamar a atenção do sexo oposto, faze-lo admirar-se com sua aptidão. Ao mesmo tempo que os automobilistas ganham admiradores, os indivíduos sem carro passam a ser vistos como inaptos e incapazes. A potência e poder de alguém à pé ou numa bicicleta é tida como ridícula perto de uma pessoa num automóvel. Temos aí uma forte razão, talvez a mais forte, para o carro ter se tornado o tremendo sucesso que se tornou. Observe que esta razão nada tem de objetiva mas, apesar de sua subjetividade não podemos deixar de negligenciá-la. Se em todas as razões objetivas avaliadas o carro sempre sai perdendo para a bicicleta, somos obrigados a analisar a questão de um ponto de vista sistêmico.
  
             Existe uma outra possibilidade de motivação que leva as pessoas a preferirem os carros, tão sutil e subjetiva quanto a razão erótica, mas nem por isso deve ser ignorada. O automóvel moderno representa um enorme útero, uma célula de bem estar, um ambiente fechado, controlado, onde não entra estressores. Lá a posição é fetal de imobilidade, não se faz esforço físico, o banco é envolventee aconchegante, o contato físico é intenso e o motor é ronronante. Tudo muito semelhante ao útero materno, lugar de onde nós gostaríamos de nunca ter saído. Lá éramos felizes, tudo era agradável e sem esforço. Já aqui fora, somos obrigados a enfrentar os elementos da natureza e fazer esforço físico. Assim que saímos do útero materno nos sentimos desaconchegados e durante toda vida buscamos voltar para lá. O carro nos possibilita a exata sensação de retorno. O automóvel, com todos os seus atrativos de conforto, dá uma falsa sensação de segurança, aconchego, confiança, uma sensação de conforto absoluto, a sensação de proteção amorosa materna. Nós amamos o carro e nos sentimos muito bem dentro dele.
               Esta é outra razão também sutil, mas não menos poderosa, que habita o imaginário popular. Em todo continente americano, a diferença social é marcada pela atividade física. No início o continente foi povoado por escravos, trazidos da África aos milhares para trabalhar nas extensas terras do novo mundo. Uma pequena elite branca os dominava na ponta do chicote. Nesta época, nem muito distante no tempo, os brancos europeus que viviam no Brasil nem caminhavam, eram carregados em liteiras. Apesar de hoje esta imagem parecer absurda, pessoas ainda vivas, nossas contemporâneas, são filhas de escravos. Esta cultura escravocrata ainda povoa vivamente o imaginário popular. Para o brasileiro típico, trabalho braçal, desde o tempo da escravatura, é feito por pessoas que são vistas como inferiores, além de despossuídas e ignorantes. Tem origem, cultura e até a cor da pele diferentes. Assim, na nossa cultura, atividade física em público, que não seja para o lazer, é uma coisa desqualificada para pessoas diferentes. E é interessante observar que este não é um pensamento somente da elite privilegiada. Mesmo as pessoas despossuídas e ignorantes, pensam da mesma forma e lutam para deixar de fazer atividade física. Não é de admirar então que, coincidentemente, hoje em dia o automóvel é mais entusiasticamente louvado como base do transporte justamente nos países onde regimes escravocratas tiveram maior penetração.

Com a estabilização econômica na década de 90, o automóvel se tornou um câncer nas grandes cidades brasileiras: cresce muito rápido e se espalha por todos os lugares. Ele deve ser atacado e extirpado da área urbana, se não, ele a destruirá. Se fossem só um ou outro, os automóveis não seriam um problema, mas eles foram fabricados aos milhões. O transtorno causado pelo automóvel é tamanho que chega a ser escandaloso o tratamento condescendente que a população e, principalmente, o Estado reservam a ele. Chama atenção que nem democrático o automóvel é, pois distribui democraticamente somente os prejuízos, os benefícios são privatizados. As únicas qualidades que talvez o carro tenha sejam o conforto, a capacidade de carga, a relativa velocidade de deslocamento e o alcance que oferece. Todas qualidades que só o indivíduo dono do carro usufrui.

Os médicos cardiologistas há muito já perceberam que não adianta fazer pontes safena ou abrir novas vias para preservar a boa circulação das artérias, veias e capilares. Mesmo com varias intervenções cirúrgicas, as vias sempre voltam a bloquear completamente ou, pelo menos, retardar a circulação. O melhor tratamento sempre é a prevenção. Por isso eles recomendam aos seus pacientes que andem de bicicleta para estimular os órgãos envolvidos. Exatamente a mesma coisa os urbanistas tem que começar a fazer. Não adianta fazer novas pontes ou abrir novas vias. Mesmo com varias intervenções com obras urbanas, as vias automobilísticas sempre voltam a bloquear completamente ou, pelo menos, retardar a circulação. Para melhorar a circulação das vias arteriais, coletoras ou locais, os urbanistas tem que recomendar e estimular o uso da bicicleta para uma vida melhor do corpo da cidade.

Para que as grandes cidades sejam habitáveis e a vida no planeta prossiga, precisamos nascer. Admitir, finalmente, que devemos nos mexer, deixar um pouco o conforto dos diversos úteros que nos cercam e estamos acostumados. O esforço físico cansa momentaneamente, mas nos permite uma vida mais longa e produtiva. Este parto vai ser doloroso, como todos os partos, vai deixar traumas. Talvez até um pouco de sangue seja necessário ser derramado, mas a humanidade tem que aprender a enfrentar os elementos do meio ambiente com coragem. A bicicleta representa este nascimento.