terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Infância
 As lembranças mais remotas da minha infância envolvem minha mãe: Bebel. Nosso pai saía para trabalhar de terno marrom bem cedo pela manhã. Minha irmã mais velha tinha escola e balé, uma Kombi escolar a buscava. Eles eram mais ausentes. Ficavam em casa os três pequenos com a mãe. Nós éramos os que conviviam mais. Pacientemente minha mãe criava atividades para nós como se fosse uma creche. Ela tinha terminado o magistério, fazia faculdade de sociologia e estudava inglês, lecionava numa escola do bairro, mas largou o emprego de professora e os estudos por insistência de meu pai quando a caçula nasceu. Com a mãe erudita tínhamos uma educação profissional. Balanço, horta, brinquedos educativos, giz de cera, árvores para escalar, aquarela, escorregador, lápis de colorir e até caixa de areia em casa. Já quando acordávamos, Bebel aprontava todo mundo para sair, sempre havia alguma coisa a fazer fora de casa e a manhã era reservada as saídas. A família não tinha carro, era raridade quem tinha. Os carros da rua eram recursos preciosos, tidos como semi-públicos, que só eram usados em caso de urgência médica. Então, sempre saíamos a pé. Íamos ao armazém, ao banco, à farmácia, a padaria, ao açougue, ao armarinho, à loja de tecidos, aonde mais precisasse, sempre a pé.
Tinha duas rotas principais para chegar ao centrinho do bairro: pela avenida de cima, Wenceslau Escobar ou pela rua de baixo, Sargento Nicolau. As duas rotas eram divertidas, porque nossa mãe nos desafiava e permitia nossa movimentação. Pela Wenceslau havia uma série de murinhos baixos que caminhávamos por cima. O grande momento do passeio era um murinho em forma de onda que nos fazia subir e descer, subir e descer. Para nós era passeio, mas para mãe, era trabalho. Não só o trabalho de prover o lar de víveres, mas as saídas eram momentos de ação pedagógica da Professora Bebel. Ela carregava a pequena no colo e cuidava atentamente dos maiorzinhos soltos no chão. E era tudo sozinha: uma criança e a bolsa numa mão, as compras na outra. Quando íamos por baixo, também era legal. Ansiávamos o momento de chegar à esquina da Barcelos para encontrar com o velhinho que vendia cata-ventos. A mãe falava: hoje não, mas outro dia vamos comprar um cata-vento. Nunca era a hora de comprar o cata-vento, mas adorávamos o simples fato de o vendedor estar lá e nós podermos admirar por um momento aquele monte de cata-ventos girando. Ficávamos planejando qual escolheríamos quando chegasse o dia de comprar nosso cata-vento. E o tal do dia finalmente chegou, a mãe falou: cada um pode escolher um cata-vento. Escolhi um vermelho e amarelo de quatro pontas. Não sei quanto tempo durou o cata-vento, nem lembro de brincar muito com ele, mas a espera de um dia ter um cata-vento era muito boa e lembro até hoje.
As idas a feira eram as mais complicadas para minha mãe, mas as mais alegres e divertidas para mim. Tinha que todo mundo madrugar, porque feira é muito cedo. Sempre íamos pela Sargento, calçada com paralelepípedo. O carrinho de feira ia picando e fazendo barulho nas pedras na ida. A irmã mais velha é quem tinha o privilégio de puxar o carrinho de feira, porque era sábado e ela não tinha aula. Agora, depois de velho, percebo que era uma viagem longa para crianças tão pequenas. Demorávamos para chegar à feira que ficava a umas três quadras de casa. A mãe-professora Bebel ia conversando, tentando esclarecer alguma dúvida estapafúrdia que surgia e orientando a gurizada, não dava para carregar os quatro e era arriscado se alguém resolvesse correr. Ela ia direcionando nossa atenção para algumas coisas do caminho, uma flor em botão, o cachorro brabo sem um dos olhos da casa dos Schuler, a casa da Dona Aidil, o carreirinho de formigas atravessando o canteiro, o carro vermelho grande e barulhento que passava. Assim nós íamos caminhando sempre junto dela, a salvo. Na feira era uma festa de cores, cheiros e sons. As bancas cheias de frutas e verduras coloridas e perfumadas. Os feirantes gritavam suas ofertas e ofereciam provas da qualidade de seus produtos. O registro número 00001 da minha memória é um feirante enrolando em jornal uma dúzia de ovos para a mãe. Enrolava três ovos e virava o jornal, mais três e enrolava de novo. O segundo andar de ovos era feito separado para depois se unir a primeira meia dúzia com mais uma folha de jornal. Minha mãe regateava o preço, o feirante enchia a bacia metálica com alguma coisa, colocava sobre a balança e equilibrava tudo com pesos de chumbo de tamanhos diferentes mas de formato igual. Feito o acordo, colocava dentro do nosso carrinho de feira, sempre cuidando para o pacotinho quadrado de ovos ficar bem em cima. A volta era com o carrinho de feira lotado, ele não picava mais nas pedras, nem fazia barulho, ia quietinho, pesado. Bebel, claro, agora era quem o puxava, a caçula tinha que ir caminhando e a mais velha ajudava carregando alguma coisa. Eram mais lentas as voltas do que as idas, mas antes das oito e meia da manhã nós já estávamos em casa.
Quando, em 1971, eu tinha dois anos de idade, meu pai comprou seu primeiro carro, um Fusca. Foi um alvoroço na vizinhança, nossa família ficou eufórica, era o terceiro carro da rua. O Fusca era verde, mas a fábrica chamava a cor de Verde Guarujá. Devia ser para dar mais status à cor, sei lá. O Status é uma coisa importante para as montadoras de automóveis. Elas querem que a gente aprenda a valorizar aquilo. Nós aprendemos! Eu pelo menos: aos dois anos de idade já decorei o nome da cor da fusqueta. Mas o que mais nos enchia de orgulho, pelo grande status que proporcionava, era o fato do Fusca ter o apelido oficial de “fuscão”. Muito melhor que o fuquinha 1300 que vendiam naquele tempo era o nosso fuscão 1500 recém lançado! Tinha poderosos dois cavalos a mais no motor, somando o fabuloso total de 42 cv! De tanta potência extra, a tampa do motor ganhou exclusivas novas frestas para refrigeração. Fora que, ao invés de lata na cor do carro como no 1300, o 1500 tinha o painel revestido com napa preta e plástico imitando madeira! Que máquina! Estávamos mesmo felizes, estava tudo dando muito certo: o Brasil era tricampeão mundial de futebol, inauguraram a maior ponte do mundo entre o Rio de Janeiro e Niterói e nós tínhamos um fusca potente e novinho em folha. Era o milagre brasileiro. O pai falou: “Ainda vou passar esta ponte de carro!” Entramos todos dentro do carro e cantamos um hino da época, era algo assim, não lembro bem:
“Noventa milhões em ação,
Todos juntos vamos,
Para frente Brasil! Brasil!
Salve a seleção!”
Com o Fusca, deixamos de fazer a feira a pé, passamos a freqüentar mais o supermercado, que era bem mais longe. Além disso, meu pai começou a fazer passeios conosco. Cabia todo mundo dentro do carro: o pai e a mãe na frente, as quatro crianças e algum avô ou avó atrás, mais toda a parafernália necessária para um dia fora de casa! Tudo era motivo para passear de Fusca. Aliás, foi este o motivo dele ter comprado o carro, não a pesada rotina, para minha mãe, de caminhar até a feira. Ainda não existia DVD, o que fazer com quatro crianças em casa? Minha irmã caçula tinha completado um ano e até já pulava para fora de seu chiqueirinho! Bebel tinha 30 e meu pai apenas 31 anos! Eles deviam ficar doidos em casa com os quatro. Um guri e uma guria responsáveis por três meninas e um menino pequenos! Minha mãe ainda tinha instrução pedagógica, era professora formada. Mas meu pai não tinha a menor idéia do que fazer. A solução que encontraram foi confinar todo mundo no banco de trás do fuscão, onde nem as portas nem os vidros abriam, e ir para algum parque soltar a macacada feliz. Naquela época isto era comum, ter quatro filhos antes dos trinta! Todo mundo fazia isto, os Hofmann tinham cinco, os Guaranha seis e a Dona Eunice onze filhos. Os incluídos compravam um fusca e faziam picnics para não enlouquecer em casa. Os excluídos enlouqueciam, enchiam de porradas e aplicavam castigos cruéis nas crianças para que ficassem quietas. Coitados dos filhos da Dona Eunice, quantas surras de mangueira eu vi o Zunga e o Julinho levarem.
A dinâmica de um dia de passeio era trabalhosa para minha mãe. Bebel tinha uma porção um pouco maior de afazeres que o pai. Talvez tu, leitor, hoje em dia, perceba uma certa injustiça na distribuição de tarefas, mas, naqueles tempos, aquilo era o mais comum na sociedade e ninguém notava nada de estranho. Minha mãe começava a trabalhar já na noite anterior para o sucesso do passeio. Depois de lavar a louça do jantar, que ela mesmo tinha feito, voltava para o fogão e cozinhava galinha e farofa, misturava tudo e já deixava a panela enrolada num pano em cima do fogão. Lavava toda a louça e, enquanto escorria um pouco, recolhia a roupa que as crianças iriam vestir na manhã seguinte do varal. Preparava uma cesta com toalha quadriculada, canecas e pratos plásticos e enchia uma grande garrafa térmica com suco. Passava a roupa enquanto cozinhava a polenta do cachorro. Depois, fechava toda a casa, dava banho em quem ainda estava sujo, colocava os pijamas e arrumava as quatro camas das crianças. Botava todo mundo na cama com um beijo e apagava a luz desejando que sonhássemos com anjinhos. Enchia a tigela do cachorro no fundo do pátio e lavava a panela da polenta. Finalmente, tomava seu banho e ia para a cama. Ela era a última a dormir, não só nos dias de passeio, mas todos os dias. No outro dia, levantava mais cedo e colocava as coisas de picnicar ao lado da porta da frente. Separava revistinhas em quadrinhos e chicletes para irmos folheando e mascando durante o deslocamento dentro do carro. Depois acordava a família, preparava a mesa, fervia leite e servia o café. Neste momento começavam as tarefas do pai. De manhã cedo, após barbear-se e tomar café, o pai pegava a câmera fotográfica, tirava o fusca da garagem e o estacionava na rua. A partir daí, ficava com o motor ligado buzinando para apressar o resto da família. Mas Bebel ainda estava trabalhando freneticamente. Vestia quatro corpinhos de dois gêneros e quatro tamanhos diferentes. Penteava três cabelos compridos e maçarocados da noite, fazia trancinhas numa, chuquinhas na outra e rabinho na última. Ajudava os menores a afivelar as sandálias nos pés e ia mandando para o carro os já prontos para acalmar o marido irritado. Só então ela se vestia, se penteava e se maquiava. Depois fechava a casa e corria para seu posto de co-piloto. Finalmente o carro arrancava para um dia prazeroso. Mas, os primeiros momentos do passeio sempre foram dedicados a ouvir um discurso do pai de como a mãe não fazia nada direito e sempre era responsável pelo atraso da saída.
Com este fuscão Verde Guarujá a família fez suas primeiras viagens. Íamos muito a Tapes, cidade natal de meu pai, e a Gravataí visitar os parentes da Bebel. Fomos conhecer Canela e Gramado. Visitamos a casa de veraneio da infância de minha mãe em Viamão. Lembro de nosso primeiro veraneio na praia também, Imbé. Para as viagens a coisa era mais complicada. Enchíamos todos os espaços do fusca com nossas bagagens. O bagageiro da frente, embaixo do capô, atrás do banco de trás, num buraco que havia ali, embaixo dos bancos da frente e até embaixo de nossos pés, que não chegavam ao chão do carro, e de minha mãe, que ia toda torta no banco. Se a viagem fosse longa, sempre sobrava algum tapão do pai ou um xingão da Bebel para quem estivesse brigando lá atrás. Nós sempre brigávamos! Claro, é dureza para quatro crianças ficarem imóveis durante duas ou três horas. A viagem era estressante, mas o lugar da visita supostamente compensaria depois.
O Veraneio em Imbé talvez seja a memória de férias mais antiga que tenho. Fazia muito sol. Tudo me parecia muito claro, porque só o que havia no lugar era a casa que alugamos, todo entorno eram dunas que refletiam luz. A ida a praia era cheia de rituais. Acordava-se cedo, minha mãe preparava um rápido café da manhã e começava a organizar a partida. Tinha que pegar cadeira dobrável, guarda-sol, esteira, toalhas, água e lanche. Acho que ainda não havia sido inventado o protetor solar, porque ninguém mencionava o produto. Carregados, caminhávamos entre as dunas até a praia semi deserta. Cada um tinha que carregar o seu próprio brinquedo de areia. Eu levava meu preferido, um barco azul. Ele imitava aqueles barcos do Rio Mississipi americano, tinha chaminé e cabine vermelhas, era um vapor, daqueles com pás em roda atrás. Para minha grata alegria, o barquinho vinha com rodinhas embaixo, era também um carrinho, assim eu podia ir puxando ele pela areia também. Uma manhã sai fazendo voltinhas e mais voltinhas puxando o barquinho naquela parte da praia que a onda recém lambeu a areia e a água ainda está voltando para o mar. Bebel havia providenciado um barbante amarrado na proa. Ali era sensacional brincar, porque as pás em roda atrás do barquinho levantavam água de montão! Distraído me afastei do nosso guarda-sol e só despertei do transe da brincadeira com o chamado de meu pai. Estavam todos muito nervosos, me procuravam fazia tempo. Nunca mais me distrai da posição do nosso guarda-sol, porque ganhei um belo xingão. Mas a campeã de xingamentos, que pareciam não fazer o menor efeito, era minha irmã mais nova. Ela sempre se perdia, quase se afogava, trazia tatuíras para a toalha, roubava brinquedos de plástico dos vizinhos de praia, sem falar que comia areia. Ao voltar da praia, minha mãe tinha mais trabalho. Primeiro, dar banho e hidratar todo mundo com muita água doce. Depois, besuntar de caladril e hipoglós as partes mais queimadas dos quatro corpinhos. E finalmente, cozinhar e servir o almoço. Só aí, Bebel tomava seu banho.
Uma tarde, depois de uma típica manhã nervosa na praia que, entre perdidos e afogados, salvaram-se todos, a família inteira sesteou. Por alguma razão, acordei antes de todo mundo. Peguei um carrinho que havia ganhado, igual ao nosso carro de verdade, um Fusca verde de plástico extrusado, e sai da sombra da casa com todas as venezianas fechadas. Na rua, a claridade do dia de verão me cegava. Nosso poderoso fuscão escaldava estacionado na grama rala. Usei o carro grande, de aço, como morro para o carrinho de plástico. Deslizava o fusquinha de brinquedo sobre a carroceria brilhante e quente do fuscão da família sob o sol mormacento do começo de tarde. Para meu azar, quando passei o fusquinha de plástico sobre as exclusivas novas frestas de refrigeração da tampa do motor do fuscão, a rodinha de plástico se soltou do eixo de arame e caiu lá para dentro. Eu imediatamente pensei em esconder o fato, não queria levar outro xingão daqueles e, felizmente para mim, ninguém havia testemunhado meu crime. Mas o temor que a rodinha de plástico entrasse nalgum mecanismo importante do fuscão novinho e estragasse o motor me torturava. Minha consciência ficou pesada até a manhã seguinte que o carro ligou normalmente e este terrível segredo poderia morrer comigo.
Meu aniversário é em fevereiro, então sempre é quente no dia. Quando fiz três anos de idade, ganhei um triciclinho vermelho com o banco branco. Adorei o triciclinho e usei bastante, foi ótimo. Mas o presente que mais me marcou neste aniversário foi o da minha avó. Ela me deu um fusquinha de chocolate embalado num papel alumínio dourado. Desembrulhei primeiro a parte das rodas porque pensei ser um brinquedo e queria ver rodando rápido. Já na primeira rodinha descascada percebi que ela não girava. Fiquei uma tarde inteira chorando, reclamando que aquilo não era um carrinho de verdade, empurrando desconsolado o fusquinha nos degrauzinhos de pedra que levavam para o pátio e ficando com os dedos melados de chocolate que se derretia pelos calores do sol, das minhas mãos e do atrito com os degraus quentes de pedra. Minha avó me prometeu outro carrinho, este de verdade, mas a promessa não bastou para que eu parasse de chorar. Que estupidez humana fazer um carrinho em que as rodinhas não rodam! A parte mais interessante de todos os carrinhos eram as rodas, porque eram as únicas que se moviam, giravam. Nem lembro de ter provado aquele inconveniente fusquinha de chocolate. Uma semana depois minha avó me trouxe um jipe de lata, anunciou que neste as rodinhas giravam. Fui orientado pela Bebel, com grande veemência antes da avó chegar, para agradecer mesmo se não tivesse gostado do presente, não era mais para fazer aquela cena toda! Fiz o que me foi orientado, mas não gostei assim mesmo. O Jipinho era muito mal feito, e as rodinhas não giravam com liberdade.
Nesta época meu pai ajudava no supermercado, mas só com o rancho mensal. A família vivia um momento de grande prosperidade, como o Brasil, e os ranchos eram fartos. Num final de sábado, meu pai descarregou o rancho do fusca e colocou os sacos de papel pardo do supermercado no chão de lajotas amarelas com pintinhas pretas da cozinha. Minha mãe tentava ajeitar tudo nos pequenos armários da cozinha. Eram muitas compras e a tarefa era demorada, principalmente porque havia quatro crianças atrapalhando ao redor dos sacos, curiosos com o que havia lá dentro. A mais velha é que ia descobrindo tudo e nos alertando para as guloseimas que haviam sido compradas. Imediatamente protocolava junto à mãe o pedido para fazer a divisão do produto entre todos os filhos. Um ou outro pedido era deferido nos fazendo vibrar com a súbita generosidade. Naquele dia, enquanto Bebel pelejava para por tudo em seu lugar; e por isto estava sendo generosa, para tentar se ver livre da gurizada; comi tudo que é coisa que me colocaram nas mãos. Balas, chicletes, pirulitos, chocolates. A misturinha não me fez bem e, antes que os sacos todos fossem devidamente encaminhados vomitei um caldo chocolate no meio da cozinha. O brilho da minha obra contrastava com os sacos de papel e as lajotas de cerâmica amarela, ásperos e opacos. Fiquei paradinho, olhando o chão, admirado com a cena e me perguntando: o que era aquilo afinal? Pelo alarido que provocou percebi que podia ser considerado uma infração, minha irmã pediu logo uma punição exemplar. Mas, apesar dos apelos da multidão e do stress do final do dia, minha mãe, professora formada e erudita, não se alterou nem achou ruim. Explicou para o pequeno público que assistiu ao show que era porque eu tinha misturado tudo, pegou um pano, nos orientou para ir para a sala brincar e, calmamente, Bebel se ajoelhou para limpar, como sempre fazia com os vômitos de quatro crianças nascidas cada uma um ano depois da outra.
Bebel algumas vezes nos delegava tarefas fáceis. Não era só por didática, era também para descansar da nossa cara ou fazer alguma coisa que nós não pudéssemos ver. Teve uma vez que ela deu um dinheiro para gastarmos como quiséssemos no armazém da esquina. Fomos, nós quatro, rua afora, alegres, imaginando o que aquelas notas poderiam comprar. A mais velha negociou com o bolicheiro as coisas que queríamos. A quantia era mesmo boa, porque deu para comprar um pouco de cada tampa daqueles vidros giratórios que tinha sobre o balcão. Conseguimos um verdadeiro rancho de guloseimas. Voltamos para casa com as duas mãos cheias, exultantes com o evento. Tivemos a difícil tarefa de comer tudo durante a tarde, alguns escambos foram realizados, conforme o gosto de cada um e com a mediação da mais velha, para evitar abusos de alguma das partes. Mas nem sempre o ocorrido foi tão feliz. Numa outra ocasião, minha mãe mandou eu e a do meio para comprar algumas coisas no mesmo armazém. Colocamos o dinheiro na sacola de feira que era aberta e de lona e fomos muito dispostos, cada um segurando uma alça, balançando a sacola para frente e para trás até a esquina do bolicho. Pedimos tudo que nos foi encomendado e na hora de pagar percebemos que o dinheiro havia se perdido. Droga! Corremos para casa para tentar achar o dinheiro pelo caminho, mas nada. Angustiados, voltamos até a esquina olhando melhor e de novo para casa já resignados do castigo. A mãe, de novo, se mostrou tolerante com nossos erros, mesmo a mais velha nos acusando de burros e negligentes. Bebel não ficou braba, mas não tinha mais dinheiro para nos dar, teríamos que esperar o pai chegar à noite para comprar o que era necessário. Ficamos sem o lanchinho da tarde.
Com as guloseimas industrializadas surgiu uma epidemia de cáries, não só na nossa família, mais no mundo todo. Na cultura familiar tanto do pai quanto da mãe, não havia um rigor muito grande na higiene bucal. Isto era comum na época. E a cultura das guloseimas entrou rápido na nossa vida, mais rápido que a cultura da escovação. Éramos, então, assíduos freqüentadores do dentista.  Nem os próprios dentistas sabiam muito sobre prevenção, pelo menos o nosso. Ele nunca nos alertou, com a ênfase devida, a necessidade da higiene. A prática odontológica era exclusivamente voltada ao tratamento. A tolerância social com os desdentados, com as chapas, dentaduras, pivôs, pontes móveis, pererecas e dentes de ouro era muito maior que a de hoje em dia. Quem tinha a incumbência de nos acompanhar ao dentista era, obviamente, minha mãe. Ela passava as tardes dentro do consultório enquanto o dentista fazia um revezamento das crianças da família que iria torturar. O dentista era muito paciente conosco, assim como Bebel, e tentava fazer daquele momento o menos ruim possível. Ele chamava de aviãozinho aquela broca fininha. Mas não me enganava com aquele apelido bobo. Numa das últimas vezes em que fomos lá, o cara me deu um carrinho de ferro matchbox para brincar durante o tratamento. Realmente, naquele dia não foi tão desgraçada a tarefa de ficar ali sentado sendo perfurado. O dentista morreu num acidente automobilístico na curva do estaleiro. Capotou seu novíssimo e recém lançado carro, um Chevette azul. Foi a primeira vez que cruzei com a morte. Nunca mais tive dentistas que me ofereceram matchbox para brincar. Entendi o significado da morte.
Ouvi falar de Chevette novamente na casa das tias avós de Bebel em Gravataí. Lá era um lugar chato de ir, todo mundo era velho e tinham uma verdadeira adoração por espremer minhas bochechas em efusivos e doloridos beliscões carinhosos. Chegavam a fazer fila para, com as duas mãos, sacudir minha cabeça usando meu rosto como alça. Num aniversário de alguma das velhas gordas, tivemos que ir de ônibus. Por alguma razão que não lembro, o pai não podia nos levar de fusca, iria só nos buscar. Acho que ele só não queria ir, ponto. Se pudesse, eu também escaparia do compromisso obrigatório. O ônibus para lá era demorado para vir, já saía lotado, a estrada era péssima, esburacada e fazia sessenta e uma paradas antes da parada sessenta e dois que tínhamos que descer. O ônibus quase capotava cada vez que saia do asfalto para subir ou descer passageiros no ponto. Superlotado, balançava todo porque não havia acostamento e a operação de desembarque era nos barrancos que costeavam a estrada. No começo da viagem já anoiteceu, então não se enxergava nada para fora da janela. A mãe conseguiu um lugar para sentar por estar com crianças pequenas. A caçula e o presente da aniversariante ficaram no colo e nós nos amontoávamos ao redor das pernas da mãe, com certo medo, se agarrando como podíamos, esperando aquele tormento passar. Mas não passou, aumentou. A irmã do meio vomitou, sujando suas roupas, as da caçula, o presente e a saia da Bebel. Não sei quanto tempo levou a viagem, mas a memória que tenho é que levou uns três dias para fazer aqueles 45 quilômetros que separam Gravataí de Porto Alegre. Desembarcamos na escuridão, tentando evitar as poças maiores e o barro. A casa das parentas era distante da estrada, tivemos que caminhar bastante, a mãe ia nos guiando no caminho das pedras da noite para não enfiar o pé na lama. Estávamos com medo, cachorros nos latiam, Bebel nos apontou uma luzinha no meio do breu, aquilo era nosso objetivo e estávamos próximos agora. Uma nuvem de insetos ia nos seguindo. Chegamos cansados, irritados, fedendo a vomito, com muitas picadas de insetos e enlameados, mas ninguém reparou nada! Devia ser o normal das festas de aniversário. A coragem da Bebel de colocar toda sua jovem prole naquela empreitada! E que compromissada com sua matuta parentalha! De dia ainda tinha vacas, cachorros, gatos e ovelhas para ver, o lugar era rural. Mas à noite não tinha nada para fazer, só comer bolo e ouvir conversas de gente que tu não sabes quem é. O único fragmento de conversa que lembro do aniversário foi de uma prima conversando com minha mãe:
“- Não, porque, o Joel tem um Chevette, e o Chevette é um carro que já te dá um status, né? O Cláudio, ele era um cara legal, bonito e tudo, mas ele só tinha um Fusca, então eu preferi ficar com o Joel.”
Na hora, mesmo eu sendo uma criança bem pequena, já achei a conversa esquisita, tanto que lembro até hoje. Mas agora compreendo a prima. Morando num lugar tão difícil, um Chevette é mesmo uma tábua de salvação. Eu já identificava bem o Chevette nas ruas. Mas fiquei muito feliz quando o pai chegou com seu Fuscão e nos levou embora daquele lugar. A fusqueta para mim tinha o mesmo status de qualquer carro, nos abrigava do escuro, dos insetos, dos cachorros, da lama e das poças d’água e nos conduzia de volta ao nosso lar, numa rua calçada e com iluminação pública a noite.
A nossa casa era num loteamento recente, em rua calçada e com iluminação pública, afastada do centro da capital. Muitos nem consideravam o bairro como sendo da cidade, era um balneário, ribeirinho ao lago Guaíba. Havia muitos lotes ainda baldios, com nascentes de água, árvores, banhados, valões e muito capim alto com cavalos soltos. O crescente organismo cidade apenas parasitava o ecossistema natural, mas ainda não o tinha matado. Transitávamos sozinhos pelas calçadas, por trilhas entre as casas para atalhar caminho entre as quadras e até pelo meio das ruas sem medo de nada. Mosquitos e moscas eram abundantes. Ainda não havia a neurose urbana atual de atropelamentos, seqüestros, abusos sexuais, assaltos, roubos e violência em geral. E o atual medo do selvagem, como no caricato filme francês Mon Uncle da época, também era só ficção. Tomávamos água da torneira de metal dos jardins dos vizinhos sem pensar em possíveis vírus, brincávamos na areia em que os gatos enterravam suas necessidades sem temer vermes, andávamos sozinhos pelo capim alto sem medo de cobras ou aranhas peçonhentas. Tínhamos total liberdade para brincar nos arredores, mesmo nós sendo pequeninhos. Uma vez eu atravessei correndo a rua. Quando estava quase do outro lado, lembrei que tinha esquecido um brinquedo. Dei meia volta para buscar e, tomei um susto, uma moto passou a dois centímetros de meu nariz, trovejando, como um fantasma saído do além. Mais cagado do que eu deve ter ficado o motoqueiro! Planejou passar longe de mim, mas dei uma guinada e voltei. Ele deve ter tido que trocar de calças! Numa outra vez, comi grama e fiquei com a língua branca. No pediatra descobrimos, eu tinha pego uma doença de gado! Sobrevivi a infância por pouco.
Numa manhã ensolarada e quente de primavera, depois de um frio inverno que passamos encasacados, minha irmã do meio inventou uma brincadeira diferente. Tirou toda a roupa, que só era um calção e uma camiseta regata, e saiu correndo ao redor da casa gritando:
“- Turma dos pelados! Turma dos pelados!”
Seguimos seu exemplo com um pouco de timidez, mas encorajados por sua liderança. Na hora refleti que aquilo poderia ser interpretado como uma falta, passível de castigo. Mas era uma brincadeira bem legal e eu sempre poderia acusar minha irmã de ter nos coagido a participar! Corremos até pelos corredores da casa, gritando, mas a mãe não se mostrou incomodada, era a autorização que faltava. No outro dia se tentou repetir a mesma brincadeira, mas não seguimos a maior com o mesmo entusiasmo e, assim como apareceu de repente, a brincadeira da turma dos pelados, desapareceu.
Durante a semana, nós continuávamos a caminhar para o centrinho do bairro, o Fuscão era para o pai ir trabalhar. Mas passamos a freqüentar mais o supermercado. Minha mãe conheceu o supermercado junto conosco. Aliás, junto com todo mundo na cidade, era uma novidade trazida dos Estados Unidos. Nas primeiras visitas, muita desconfiança. Sim! É lindo! Limpo, amplo, bem iluminado, organizado, o chão branco e lizinho, ninguém tropeça, não chove dentro, se encontra de tudo, tem até carrinho com lugar para uma criança sentada para facilitar as compras! Mas... Será que tem preços tão bons quanto na feira? E o açougue? E a padaria? Bom, pelo menos para produtos de limpeza era evidente que tinha muito mais variedade e opções de escolha que o armazém da esquina. Antes de entrar, recebíamos um baita sermão sobre o que podíamos ou não fazer lá dentro. Ficava claro para todas as crianças que, num lugar tão fino, se lambêssemos o chão estaríamos sujando, e que se tirássemos uma lata de salsicha do lugar a família ia ficar devendo por cinco gerações. Nós entendíamos a mensagem, menos a menor que fazia uma cena já na entrada. Sempre era ela que queria ir sentada no banquinho dobrável para crianças do carrinho de supermercado. Apesar de protestos silenciosos, nos resignávamos de perder a disputa com a pequena para que a família não fosse para o calabouço por culpa daquela irresponsável de dois anos de idade. Bom, pelo menos, a mãe deixava os dois maiores irem em pé, com os pés sobre o porão do carrinho e segurando com as mãos as grades do lado. Quando não eram muitas compras, ela até nos colocava dentro do carrinho! Era legal! Pobre mulher, empurrando aquela creche para lá e para cá o dia todo, todos os dias. Todo este esforço diário, viria a se transformar futuramente em muitas lesões e doenças precoces que minha mãe sofreu e sofre até hoje.
Com três anos eu ainda não falava. Diz minha mãe que eu nem chorava. Eu só, passivamente, olhava. Uma tia diz que tudo que eu falava era: Bu! Então, lá foi Bebel comigo pela mão ao pediatra da família, avaliar se eu era retardado ou surdo. O doutor garantiu que eu não era nem um nem outro, só, talvez, um pouco marcha lenta. Bu, por ora, era suficiente. Mas, preocupada com meu desenvolvimento, Bebel me matriculou num jardim de infância, o Galinha Ruiva. Talvez, no tranco da socialização, eu começasse a falar. O jardim de infância era uma coisa boa não só para nós crianças, mas para minha mãe que tinha uma folga de uma criança por umas quatro horas. A escolinha ficava numa outra quadra, na Copacabana. Bem cedo da manhã, caminhávamos para lá. No primeiro dia fui instruído a me comportar direitinho e obedecer as professoras porque a mãe já voltava. Ficamos no jardim em frente à escola, uma professora sentada numa cadeirinha, eu em pé próximo a ela e mais quatro outras crianças. Os outros ficavam brincando, eu só, passivamente, olhava. Um menino um pouco maior que eu se aproximou e perguntou algo. Como não respondi, ele me empurrou. Caí sentado sobre os tijolinhos que separavam o canteiro da grama. Como os tijolos estavam colocados de lado, um descansando a cabeça sobre os pés do outro, apareciam sobre a grama como uns triângulos. Doeu, cair sobre o vértice de um triângulo de tijolo, mas, como de costume, não chorei. Nem mesmo um Bu! Somente levantei e continuei na minha rotina de observar. Não gostei do Galinha Ruiva. A socialização não me fez falar.
Eu freqüentava o Jardim de Infância pela manhã e minha irmã do meio à tarde, a divisão era por idade. Logo eu passei para tarde também, agora eu já era grande, e a pequena entrou para a manhã. Assim minha mãe ficava comigo e a do meio pela manhã e com a grande e a pequena à tarde. Para ela deve ter sido um alívio este negócio de Jardim de Infância. Mas eu ainda não falava direito. Até minha irmã caçula falava melhor que eu. Chegou num ponto a impaciência da família com minha dificuldade ao falar, que minhas próprias irmãs fizeram um hino em minha homenagem. Era assim:
“O Tiago, chega num bar e diz assim:
-Salta uma Coca-lóca, uma barata frita e um cacholo quente!
E ainda pergunta para o garçon:
-Onde é a Jaula do Bulafo?”
No Galinha Ruiva, pelo menos, ninguém parecia se importar muito com minha dificuldade. Me apaixonei por uma coleguinha de olhos verdes e cabelos ruivos e fui correspondido mesmo falando pouco e errado! A menina morava ao lado do Jardim e usava tênis Bamba branco. Como eu usava Kichute preto, tinha olhos castanhos e tinha que trotear meia hora para chegar na escola, aquela menina representava tudo de luxo, beleza, glamour e riqueza para mim. O Bamba era muito branco! Parecia chão de supermercado! Certamente ela nunca pisou num chão enlameado. Pedi para mãe um Bamba branco, como o da minha colega, mas Bebel logo esclareceu que se me desse um Bamba a família ia ficar atolada na lama das dívidas por anos! Eu ameaçava a prosperidade da família com meu egoísmo. Era melhor eu ficar com os velhos Kichutes pretos do que com um Bamba enlameado de dívidas. Mas era tanto o amor entre eu e a ricaça gostosona ruiva de tênis branco que não conseguíamos dizer nada um para o outro, só nos observávamos a distância. Talvez ela também falasse errado, talvez eu me percebesse de uma casta inferior, não sei. Um dia ela finalmente falou: me deu tchau, iria para a primeira série. Quebrou meu coração!
Outra história legal do Galinha Ruiva aconteceu num vinte de setembro, aniversário da Revolução Farroupilha. As professoras mandaram um bilhete para as mães avisando: era para as crianças virem vestidas com roupas gauchescas. Bebel mandou fazer uma pilcha completa para mim. Bombachas com favos, botas, guaiaca, camisa e lenço! Quando chegamos ao portão da escola, as professoras nos receberam com alegria e admiração. Muitas crianças já brincavam no pátio, mas só as meninas estavam com vestidos de prenda. Todos os meninos vestiam roupas de cowboy americano, inclusive com o coldre e revólver! O único verdadeiramente pilchado era eu, virei uma atração da festa! É engraçado, depois de velho, refletindo sobre a situação, percebo: bombachas, botas, guaiaca, camisa e lenço, por certo foram muito mais caros que o tênis Bamba branco que pedi. Os valores da Bebel não eram monetários.
Os irmãos de minha mãe eram verdadeiras atrações dos finais de semana. Tinha um que morava em Ijuí, vinha só de vez em quando com um fusquinha envenenado. Ele contava muitos causos de como seu carro corria nas estradas. O fusca dele era branco e 1300, as rodas traseiras eram tala larga, sem calotas. Apesar de não ser um fuscão 1500, eu achava aquele fusquinha militriqui branco muito mais atraente que nosso comportado carro de família verde guarujá com calotas cromadas e pneus fininhos. No dele não tinha as exclusivas frestas de refrigeração na tampa do motor, mas no interior meu tio enchia de acessórios com bossa, até cheirinho bom tinha. O carro era charmoso e esportivo. Eu ficava rodando em torno do carro para ver todas as diferenças. Tinha uma tia que era casada com um gigante, um cara de uns dois metros de altura. Ele era invisível, apesar da altura. Nunca brincou com a gente, não fedia nem cheirava, até que comprou um TL laranja. Primeira vez que eu o percebi. Fomos dar uma voltinha e eu fiquei entre os bancos olhando ele dirigir. Talvez o leitor não saiba, mas TL era um carro daquela época. E, sim, o carro era mesmo cor de laranja de umbigo. No começo dos anos setenta era moda cores berrantes: verde, amarelo, laranja. Mas mesmo com cor da moda, não gostei do TL. Parecia um barco, tinha até uma proa, com quilha e tudo, embaixo do para choque da frente. O interior do carro tinha um leve cheiro de alho e vinagre e o ponteiro do velocímetro não parava quieto! Um outro tio não tinha carro, mas era o mais divertido. Vinha de bicicleta do centro. Ficávamos na expectativa de sua chegada para o almoço de domingo. Ele conseguia carregar todos nós quatro ao mesmo tempo. A pequena no cangote, os do meio nos braços e a mais velha agarrada nas costas. Ele era um verdadeiro playground. Este tio tinha uma coleção de caminhõezinhos feitos de lata, todos pintados em tons de laranja, perfeitos em todos os detalhes, bem acabados e iguaizinhos aos verdadeiros. Eram uns dez ou doze. Tombadeira, guincho, betoneira, tanque, baú, caçamba, trator, jamanta, havia todos os tipos de caminhão. Toda vez que íamos a antiga casa de minha mãe ele me emprestava para brincar. Um dia ele me deu todos os caminhõezinhos de presente. Fiquei feliz. Mas, em pouco tempo, esqueci da coleção. Não porque enjoei, mas porque ela desapareceu! Deve ter sido toda rapinada pela vizinhança. Quando visitamos os parentes no centro de novo, fui direto para o tio pedir os carrinhos de lata:
- Ué! Mas tu levou da outra vez!
Fiquei com uma cara de bunda. Não sabia onde estavam os caminhõezinhos. Passados uns meses achei o mais sem graça de todos, todo amassado, enferrujado e sujo, jogado na calçada em frente ao terreno da dona Eunice. Deve ter sido o Zunga, aquele fiadamãe! A mãe sempre nos alertava dele.
Tínhamos alguns vizinhos maiores, da idade da minha irmã mais velha. O que mais freqüentava a nossa casa era o Jéfe, o vizinho do lado. Tinha a Simone e o Mariozinho, da frente, mas esses era a gente que ia até lá. Acho que a mãe deles, a Ziza, não os deixava entrar na nossa casa. Ela nos achava com cara de faroeste italiano: Feios, Sujos e Malvados. O Mariozinho tinha um carrinho de metal grande, daqueles que se entra dentro e dirige de verdade, mas tem que pedalar. Era lindo o carrinho, era azul e vermelho e parecia um calhambeque. Eu era muito pequeno e não alcançava nos pedais, o Jéfe era muito grande e não cabia mais lá dentro. Então eu entrava e ele empurrava. No meio da tarde a mãe chamava para um Toddy na mamadeira. Sim, mamei na mamadeira até os cinco! Era uma mamadeira de plástico azul, vagabunda que só! O plástico era extrusado macio, conforme íamos bebendo a mamadeira ia murchando até que tirássemos a boca do bico para entrar o ar. A mãe preparava as três mamadeiras e nos chamava, nós deitávamos numas almofadas na sala para beber. Num dia, o Jéfe queria que tomássemos rápido, estávamos no meio de uma brincadeira na rua com o carrinho do Mariozinho. Ele disse para que apurássemos. Alguém falou para ele esperar, porque precisávamos beber. Ele se impacientou e espremeu a minha mamadeira, tentando fazer com que o líquido se transferisse para dentro de mim de um gole só. Um monte de Toddy entrou na minha boca e saiu até pelo nariz!
Quando completei cinco anos ganhei de aniversário um uniforme completo do Internacional, a camisa era número 5. Não entendi muito bem, mas me disseram que 5 era do Figueroa, o melhor jogador do time. Pô, não era nem o meu 5, da minha idade! Me vestiram todo, kichute, meias brancas, calções brancos e camiseta vermelha com o escudo plástico costurado na frente. Sai do quarto com a fantasia do Figueroa completamente sem jeito, era um herói que não era meu! Eu não tinha a menor idéia do que era futebol, Internacional ou Figueroa. Foi mais ou menos a mesma decepção do fusquinha de chocolate, um presente que não servia para nada. Só não chorei a tarde inteira de novo porque já tinha sido ensinado a agradecer sorrindo até se fosse uma sapatilha de balé. Meu interesse por bola e minhas habilidades com ela eram exatamente iguais as minhas habilidades fonéticas e lingüísticas: Bu! Passados uns trinta e cinco anos eu aprendi a falar, mas, com relação à bola, continuo o mesmo monossilábico de antes: Bu!
Nesta idade aprendi a andar de bici de duas rodas sem rodinhas auxiliares, com o incentivo da Bebeti. Acho que era Bebeti o nome dela, também agora nem lembro direito, sei que ela era mãe de um amiguinho meu ali da frente de casa. Acho que foi a segunda família que foi morar lá depois da Ziza. O nome do meu amiguinho filho dela nem lembro mais, acho que era Aloísio. Mas o Aloísio não era o dono da bici sem rodinhas auxiliares na qual aprendi a andar. A dele tinha rodinhas e era tão sem graça de andar aquela altura da minha vida quanto o meu triciclinho vermelho. Aprendi a andar de bicicleta numa Monark Monaretinha roxa de um guri que morava lá em cima da rua. Não sei quem era o guri, ele não descia muito seguido a rua. Numa tarde de sol, estavam muitas das crianças da rua brincando de bici pelas calçadas. Como eu não tinha bici, só o triciclinho, me voluntariei para ser o frentista de um posto de gasolina imaginário que funcionava embaixo do telhado da entrada da casa da Bebeti. Naquele tempo não haviam grades ou portões e a brincadeira era ir até os Hoffman, descer até a casa do Sandro e voltar para o posto abastecer. Nem todo mundo abastecia a cada volta, então eu ficava ali meio abandonado até que alguém se lembrava daquela parte da brincadeira que era minha incumbência e entrava na casa da Bebeti. Ela ficava por ali junto comigo, sentada numa preguiçosa, acho que lendo ou tricotando não lembro, e eu sentado no degrauzinho de entrada da sala da frente, esperando minha chance para participar de forma marginal da atividade. Bastaram quinze minutos de observação para Bebeti perceber que eu estava praticamente excluído. Ela fez uma limonada com gelo e chamou todo mundo para tomar, aproveitou a deixa para sugerir que nós revezássemos na função de frentista do posto. Ela, agora percebo, estava tão angustiada com a situação quanto eu. Obrigou seu filho que cedesse sua bici com rodinhas para mim e ele, bem contrariado, cedeu por uma única volta. Fiquei de novo ali olhando aquele banquete, roendo ossinho. Entrou o guri da Monaretinha roxa no “posto” e ela disse: agora é tu que fica no posto. Eu esclareci para ela que nunca tinha conseguido andar sem rodinhas. O Alemão, filho do Omar e a Sheila, irmã da Soraia, já tinham me dado umas aulas, mas numa bici grande, não consegui. A minha excitação era tão evidente que ela não teve a menor preguiça, levantou de um pulo e me levou para a calçada: eu te ajudo. Que eu me lembre ela só precisou empurrar um metro para eu já sair sozinho. Dei a voltinha com todo o cuidado: Deus me livre cair. Quantas aulinhas de cuidado com as coisas tive em casa. Quando eu estragava algum brinquedo ficava louco de medo porque: punições viriam! Também dei a voltinha o mais rápido que pude e voltei para o posto para render o guri, não queria abusar já na primeira voltinha. Não queria estragar a Monaretinha nem me aproveitar demais, se não ele não me emprestaria nunca mais. Que angustia! Naquela tarde a cada meia hora eu dei uma voltinha de um minuto. E tudo graças a Dona Bebeti e ao vizinho lá de cima da rua!
Como eu já era grande e responsável e freqüentava o Jardim de Infância pela manhã, à tarde fiquei responsável por buscar a caçula no Galinha Ruiva! Eu tinha cinco e ela só tinha quatro anos, portanto eu era muito mais responsável que ela! Eu não gostava do serviço, mas era obrigado a fazer. Tinha três rotas para ir até a escolinha: Pela calma rua de baixo, pela movimentada avenida de cima, ou pelo atalho do buraco na cerca nos fundos do terreno da Veronice. O trajeto mais curto era o da Veronice, mas tinha um cachorro brabo que me dava medo. O caminho da avenida, Bebel proibia, por ser muito perigoso para atravessar. Então só restava a alternativa da rua de baixo. Eu tinha que parar minhas brincadeiras para aquela tarefa ridícula. Entre tantas coisas boas que a educação que minha mãe me deu foi a autonomia. Se eu sabia ir e voltar sozinho, porque aquela chata não?! Lá fui eu uma tarde, irritado! Pelo menos a mãe disse que era eu que mandava na pequena neste momento. Fui por baixo já planejando uma vingança. Ainda tive que entrar, procurar a “encomenda” pelo pátio do Jardim e convencê-la a ir embora comigo. Voltamos pelo atalho, queria que ela também sofresse de medo do cachorro! Mas alguém consertou a cerca! Ela já foi me avisando: vamos ter que voltar para ir pela rua de baixo. Ah, não! Nananina, não! Quem manda sou eu! Ela não deveria ter dito em voz alta aquilo. Decretei: Vamos por cima. Decidido, parti rumo a perigosa travessia. A pequena obedecendo, mas avisando que iria relatar tudinho para a mãe quando chegássemos! Só por esta ameaça, de raiva mesmo, determinei que faríamos a travessia no local mais perigoso e contra-indicado para atravessar. Ela realmente relatou, fui repreendido, mas nunca mais tive que fazer aquela tarefa que para mim era como carregar um baú de papelão, sem alça, cheio, numa noite de chuva, em estrada de chão! Consegui provar para família que era tão irresponsável quanto a caçula.
Quando fiz seis anos, minha mãe, sempre docente, me deu uma caixa de blocos plásticos de montar chamado Hering-Rasti. Não pense que se tratava de algo parecido com os Lego de hoje em dia. Não, era muito melhor. Tinha eixos de metal, rodas de borracha grandes e pequenas, rodas dentadas, correntes, correias, polias, engrenagens, hélices, para-brisas, motor elétrico e até câmbio de duas marchas. Dava para construir qualquer coisa. Tratores, carros, caminhões, aviões, barcos e todos funcionavam mesmo! No começo eu tentava fazer carrinhos e caminhões bonitos e parecidos com os reais. Recebia rasgados elogios para eles. Aos poucos fui tentando fazer coisas difíceis de montar, desafiantes em termos mecânicos, então os produtos não ficavam assim tão compreensíveis para o leigo. Um muito legal foi um barco de isopor que tinha uma hélice de avião em cima, como no seriado de TV Flipper. Para mim, era lindo e muito engenhoso. Mas, para todas as pessoas que eu mostrava o barco, era obrigado a ouvir uma exclamação: mas que avião horrível! Um dos últimos carrinhos que montei foi um Jipe com tração nas quatro rodas e reduzida. Era tão feio que não mostrei quase que para ninguém, mesmo sendo meu maior orgulho e o ápice de minha carreira como engenheiro. Neste estágio do meu desenvolvimento pessoal, as únicas pessoas que davam atenção para o que eu produzia eram minha mãe-educadora-erudita e meus tios: o da bicicleta e o do fusquinha militriqui. O Hering-Rasti foi o melhor presente que ganhei na vida.
Teve outros presentes que ganhei da Bebel que gostei bastante também. Mas não foi porque era muito desafiante, ou belo, ou inteligente, ou caro. Eles marcaram porque foram dados sem razão especial, no meu entender. Talvez tivesse ocorrido alguma coisa que ela entendeu que eu fui prejudicado e quis me compensar. Mas para mim foram presentes dados por que queriam me ver contente. Não era natal, aniversário, dia das crianças, páscoa ou qualquer data destas que usualmente ganhávamos presentes. Uma tarde eu estava no quintal e minha mãe chegou do centro. Ela foi até onde eu estava, tirou de uma sacola um pequeno Simca Jangada verde claro de plástico extrusado e me alcançou. Perguntei:
- Ué! Porque, mãe?
- Por nada! Não posso dar um presente para o meu filho?
Claro que pode! Mas estas atitudes eram tão comuns quanto um elefante cor de rosa, estranhei. O mais estranho de todos foi uma vez que eu estava na escola e fui chamado na secretaria. Tremi, isto só aconteceria em caso de falta grave. Mas não era nenhuma punição. A secretária me deu duas enormes caixas de papelão pardo, disse que era presente da minha mãe e me instruiu para levar para sala e só abrir em casa. Meu status na classe subiu! Dava para ver o desenho de um jipe, na caixa maior, e de um militar barbudo segurando um fuzil, na menor. Ninguém sabia o que era, muito menos eu. Pedi ajuda para o Nê, meu melhor amigo da escola que morava na nossa rua, e voltei correndo para casa agarrado na caixa grande depois da aula, a caixa pequena quem carregava era ele. Nós dois estávamos curiosíssimos. Ele pelo conteúdo das caixas, eu do porque de tanta generosidade. Chegamos ofegantes e abrimos rasgando o papelão. Era um Falcon e um Jipe do Falcon! O Nê me ajudou a montar tudo e colocar o Falcon fardado dentro do Jipe, elogiou e foi para sua casa almoçar. O jipe era enorme, também de plástico extrusado, mas o maior carrinho que já tive. A direção girava e o parabrisa abaixava! Tinha um buraco no jipe que era para socar as pernas do Falcon. Não recebi explicações do porque do presente, mas gostei.
Quando o pai trocou o fusca, nossa irmã mais velha já tinha nos ensinado, orgulhosa, a placa do carro: AJ 3147. Ela já sabia ler bem, estudava numa escola particular e percebia muito mais que nós a importância do tal do status. Eu ainda lembro perfeitamente da placa porque era uma seqüência muito mais repetida por ela do que nosso número de telefone, 49 27 43, outra seqüência de algarismos que ela nos fez decorar. Eu já havia entrado na primeira série da escola, o Grupo Escolar Cândido Rondon, mas sofria para ler tanto quanto para falar e a professora era muito braba. Era costume daquele tempo que, ao chegar em casa, o motorista buzinasse para alguma criança abrir o portão. Hoje em dia isso seria uma falta de educação, exploração do trabalho infantil e um desrespeito ao sossego público. Mas naquela época de poucos carros, casas no lugar dos edifícios e que o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda não havia sido criado, ninguém achava isto estranho. O pai chegou à noitinha em casa e buzinou, fui correndo abrir, porque essa era uma de minhas funções. Achei o som da buzina um pouco diferente e, ao abrir o portão da garagem, me assustei: era o pai, mas não era o Fusca!
O novo carro da família era uma Brasília amarela. No futuro, Brasília amarela viria a se tornar música de sucesso dos Mamonas Assassinas e símbolo de coisa kitsch ou brega, de mau gosto. Mas no dia, para nossa família, a Brasa foi o símbolo da passagem de uma classe social para outra. O Fusca já andava apertado como um ônibus e a Brasília foi o verdadeiro ingresso na casta dos incluídos. Agora sim! Saímos da plebe para o patriciado, para a nobreza! Logo decoramos a placa, AD 4179. Minha irmã mais velha procurou o nome da cor, um carro tão grande e luxuoso não poderia ser somente amarelo. Era Amarelo Imperial! Até o nome da cor provava nossa nobreza! Eu logo rodei em torno do carro para analisar todas suas qualidades. Como o fusquinha do tio de Ijuí, não tinha calotas nas rodas, tinha quatro faróis na frente e um amplo pára-brisa aerodinâmico. E mais, o motor era um poderoso 1600 com dois carburadores e 46 cavalos, envenenado como os carros de corrida! Por dentro era espartana, mas muito ampla, muito maior que o fusca. A visibilidade era fantástica para todos os lados. O carro era moderno como a capital federal, um carro digno de cruzar a ponte Rio-Niterói. O pai anunciou que a Brasa era um presente para a mãe. Ela nem sabia dirigir ainda, mas logo passou a freqüentar a auto-escola. O generoso presente foi porque ele não queria mais ter que ir ao supermercado. Na Brasília cabia todo rancho e mais crianças sem aperto. E sem ele!
Com a Brasília alçamos vôos mais altos. Passamos a veranear em Garopaba, Santa Catarina. Já estávamos maiores e agüentávamos melhor às seis horas de viagem. Garopaba era, como a Brasília, um outro nível de vida. Assim como nós passamos a zombar quem tinha Fusca, passamos a ridicularizar quem veraneava em Imbé ou qualquer outra praia do Rio Grande do Sul. Era covardia comparar: Costões cobertos de floresta e rochas contra dunas. Água transparente contra um Toddy salgado. Mar verdinho contra mar marrom. Peixe pescado na hora contra supermercado. Praias paradisíacas e desertas contra multidão na saída do esgoto. Nós definitivamente, havíamos escalado uma nova classe social. Mesmo tendo trocado de casta, os rituais da família continuavam os mesmos. Íamos um dia na praia e ficávamos três sem poder se expor ao sol, nos besuntando de Hipoglós e Caladril. Eu tive até bolhas de queimadura solar nas orelhas! Garopaba era uma aldeia de pescadores bem pequena. A única atração da cidade, fora as praias, era o arrastão de manhã e ao final da tarde. Então: dá-lhe passeios com a Brasília! Conhecemos Siriú, Silveira, Macacú, Ferrugem, Gamboa, Barra, Guarda do Embaú, Ouvidor, Pinheira, Vermelha, Sonho, Rosa e Luz. Ficamos fascinados com tanta beleza. Todas as praias eram completamente desertas em pleno verão! No máximo, algum rancho de pescador. O acesso era precário, inclusive para o centro da cidade! Em dias de chuva a prefeitura disponibilizava uma patrola para desatolar os carros que se aventurassem a tentar chegar na BR. Se não fossem estradinhas de chão batido, eram trilhas, onde somente um carro com qualidades especiais poderiam chegar. Felizmente nossa super Brasa possuía todas: tração traseira, suspensão alta, assoalho plano, refrigeração a ar e pneus fininhos para mergulhar na lama e tocar no chão duro.
Fomos muitos anos seguidos a Garopaba. Como não tinha muita coisa para fazer, nossos pais ficavam atentos a programação dos nativos. O que eles faziam para se divertir, onde eles comiam, quais suas festas, mergulhamos na sua cultura. Íamos sempre a missa, quando o pároco de Imbituba dava o ar de sua graça de quinze em quinze dias. Ansiávamos pela procissão de nossa senhora dos navegantes no dia 2 de fevereiro. Acordávamos cedo para pegar o arrastão da manhã e já negociávamos o almoço: uma bela Garoupa! Pulamos o carnaval e até freqüentamos um circo que apareceu. Mas teve uma vez que algo diferente aconteceu, até para os nativos. Haveria uma excursão para assistir ao cinema em Imbituba. O povo estava empolgado, todo filme tinha sido filmado na praia da Silveira e até alguns nativos apareciam. O nome do filme era “Menino do Rio” e a grande estrela era um rapaz chamado André de Biase... talvez seja Dibiase, não sei. Eu não conhecia o ator, mas já tinha decorado seu nome. Todo mundo comentava o filme, muitos tinham até ficado amigos do tal André, a estréia ia ser nacional, a cidade ia ser vista por todo país. Bebel nos incentivou a ir e no dia combinado eu estava lá, na frente do quiosque de venda de passagens que eles chamavam de rodoviária. Não lembro quem mais de nós foi, mas teve duas irmãs que não quiseram ir. Foi só eu e mais uma. O ônibus era desses urbanos e já saiu lotado. Muitas pessoas estavam tão excitadas que não sentavam, gritavam, gargalhavam e colocavam a cabeça para fora. A viagem foi demorada, fiquei incomodado e pensei que talvez tivesse me metido numa fria. Chegamos ao que eles chamavam de cinema, era mais ou menos como a rodoviária de Garopaba. Como um nobre, que desde a Brasília eu me sentia, fiquei chocado e, arrogante, fiquei reparando toda a precariedade do lugar. O que eles chamavam de cinema era um galpão velho, com o reboco caindo, as tesouras do telhado e até as telhas de Brasilit aparecendo, as cadeirinhas eram de plástico e estavam soltas do chão. Mas, logo que o filme começou, esqueci de todo entorno pobre. O filme era maravilhoso, fiquei totalmente absorvido por ele. A fotografia era belíssima e o enredo muito atraente para um guri da minha idade. O protagonista era lindo, o ser humano mais perfeito que eu já tinha visto. Vivia uma vida também perfeita, cheia de carros, jipes, namoradas, disputa por fêmeas, sexo, asa delta, surfe, tudo com a perfeita praia da Silveira ao fundo. Me senti um micróbio insignificante, nem com a Brasília eu chegaria aos pés daquele Adonis. Em uma disputa de fêmeas com aquele macho eu seria sempre preterido. Percebi que aquele cinema pobre era o lugar certo para mim e aqueles plebeus ao meu redor eram exatamente como eu. Nós todos somente poderíamos assistir os verdadeiros protagonistas da vida. O meu status jamais chegaria naquele nível. Acho que aquele momento marcou o fim da minha infância!
Saí dos tempos de caminhar para feira para os tempos do carro. Deixei os tempos da negociação em balanças de equilíbrio para os limpos supermercados com balanças digitais. Nunca mais uma criança vai poder brincar sozinha na rua, agora só dentro do playground. Andar soltos dentro do carro, nem pensar. Tomar água de torneira no pátio dos outros, também não. Famílias grandes foram substituídas por filhos únicos. Algumas coisas mudaram para melhor, as crianças e as mulheres não são tão exploradas como antes. Mas outras mudaram para pior, o meio ambiente não agüenta mais tanta gente. É certo que as coisas mudaram. Não só para mim, não só o meu corpo evoluiu, mas a sociedade inteira, o mundo todo. Vivi um momento histórico de mudança, um processo de modernização. Eu e a humanidade crescemos, não só em tamanho, mas também, perdemos nossa ignorante ingenuidade.


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