sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Memórias

Um dia, eu e o Sidi estávamos indo para Garopaba de bicicleta. No meio do caminho entre Bom Jesus e São Joaquim, lá no alto de uma estradinha de terra que serpenteava serra acima, encontramos um bolicho de campanha. Como era o primeiro sinal de civilização em uns cinqüenta quilômetros e estávamos sedentos e cansados como sempre, resolvemos parar. Enquanto tirávamos as luvas e o capacete, encostávamos as bicicletas e estendíamos as pernas, conversávamos sobre os últimos quilômetros. O bolicheiro, ao contrário do resto dos ribeirinhos que cruzamos pela estrada, nos olhou mais com desconfiança do que com interesse, não levantou de sua cadeira. Subi dois degraus de pedra e entrei no lugar fazendo ranger a tábua puída pelo uso. O cheiro era de lingüiça e copa, me lembrou um monte de lugares da infância. No balcão, no chão, pendurado no teto e em várias prateleiras, havia uma infinidade de traquitanas. Desde pote com ovo em conserva até rolo de corda de sisal, passando por picaretas, caixas de Boa Noite, goiabadas e sacos de ração. Estávamos empanturrados de belas, claras e infinitas paisagens em tom pastel, aquelas quatro paredes em cores fortes e escuras eram como um oásis. Examinei os cantos enquanto falava:
- E aí?
- Ô.
- Tem Coca?
- Tem.
- Tá quanto?
- Duzentos.
- Vê duas.
- Copo ou canudo?
- Não dá pra sê gargalo?
- Dááá.
- Daqui pra São Joaquim ainda tem quanto, tchê?
- Ah, ainda tem bem uns cinqüenta até a praça lá.
- Tem muita subida ainda, o não?
- Não... Agora só desce, até o rio... Depois é que sobe...
- Ah, tá... Brigado.
Sentamos num banquinho embaixo de uma árvore em frente ao bolicho e tomamos a coca com toda calma, olhando a paisagem que era linda ali, estávamos muito alto. O bolicheiro se encostou no marco da porta e agora, mais seguro das nossas intenções, relaxou e puxou conversa, matando sua curiosidade.
- Tão fazendo uma física, é?
- É. Tamu dando uma viajadinha.
- E vieram de onde?
- Porto Alegre...
- Bááá...

De vez em quando me vem na cabeça este ou outro momento semelhante: o diálogo esquisito, o cheiro do lugar, o rangido contrastando com o silêncio, a sensação refrigerante da Coca descendo garganta abaixo, a paisagem de filme, as esperanças, sonhos e desejos que estavam se concretizando ali na minha frente. Tudo volta como se tivesse acabado de acontecer. Seguidamente acontece isto. No momento, na hora que ocorreu, não percebi nada de especial, mas seguido a cena me aparece na cabeça, do nada. E não é só este momento, claro. Eu sou assombrado por várias outras memórinhas curtas. Lembro um trechinho de estrada na Alemanha, um empurrão que levei no jardim de infância num dia de inverno, a cara que se confundia com o sotaque do homem que conversei no interior da Holanda, o pôr do sol em Lavras do Sul, o gosto do croisant em Paris, aquela vez que me percebi sozinho na copa da casa de madeira quando era pequeno e não fiquei com medo, o cheiro do pãozinho Italiano que eu não tinha dinheiro para comprar, a sede que me tonteou em Capivari, a chuva gelada na Bélgica me queimando a pele, o barulho do vento batendo no navio no meio do oceano, sei lá o que mais. Não sei explicar por que este ou aquele momento me marcou mais que os outros e fica voltando, pra mim não esquecer. Talvez seja aleatório, talvez um curto circuito nervoso entre todos os sentidos ao mesmo tempo, talvez somente o exercício pleno da exuberância da minha juventude. Não sei por que acontece, mas eu gosto, um sorrisinho discreto clareia minha cara. O certo é que foram momentos felizes e que nunca mais vão voltar. Estes flashs de memória sempre tem somente um ingrediente em comum: uma sensação gostosa de medo curioso do desconhecido que estava ali na frente e prazer absoluto na descoberta. Acho que esta é a receita para memórias eternas.

2 comentários:

  1. A memória tem sabor e cheiro, gostoso isso, né!!! E o desconhecido o frio na barriga. Apesar de muitas lutas, brigas para tentarmos fazer parte de uma mudança social, o dia - dia tmb tem seu fascinio, seus obstáculos que nos forçam a superá-los e assim, vamos crescendo pouco a pouco, mas, sempre.

    ResponderExcluir
  2. Lembrar é reviver o momento!! Memórias boas são saudáveis!!

    ResponderExcluir