quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Horizontes infinitos (Besta animalesca 2)

No dia 8 de agosto de 1988 comprei um livro. Ao colocar a data me surpreendi, ficou bonito: 8/8/88. Desde então, sempre compro um livro nas datas que algarismos se repetem. Sei lá porque, talvez seja só um hábito curioso, uma supertição, um TOC, não sei. Sei que já tenho vários: 9/9/99, 1/1/1, 2/2/2, 7/7/7, etc. Escrevo a data com cuidadoso capricho, tenho até um irracional ciúme e orgulho desta parte da minha biblioteca. Já tinha até planejado com antecedência qual livro comprar para cumprir o ritual deste 8/8/8. Reservei um bem bom e caro, para ficar bem na foto da coleção. Quando estava na fila do caixa da livraria para pagar o vício, vi um paper back, destes de bolso, baratinho. Eles põem ali, na boca do caixa, exatamente para ti comprar por impulso. Foi o que fiz. O carismático livrinho pulou para cima da pilha de livros que tenho para ler na cabeceira da cama. Estou lendo ele agora: Contos Gauchescos e Lendas do Sul do Simões Lopes Neto. Vê que curiosas são as maluquices humanas e deste primata que agora escreve em especial: também comprei e escrevi na mesma data, poderia ser ele o livro do ano, mas na hora pensei que ele não era digno da honra, não valeria para “o” 8/8/8. No prefácio do livrinho tem um histórico do autor. O tal do Simões era de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul, cidade perdida numa imensa planície pantanosa sem dono. Seu linguajar, carregado de regionalismos, me lembra muito o Trigo, que também é de lá. Dividi o apartamento com o Trigo três anos, logo que vim para Florianópolis. Ele era muito engraçado e, quando queria imitar um grosso, engrossava a voz e falava expressões semelhantes às dos Contos Gauchescos. Meu pai, o Jacques, também é da beira da Lagoa dos Patos e também encontrei semelhanças dos seus bordões com aqueles do livro. Então, lendo o livro, compreendi muito do cadinho cultural da formação dos dois e, lá pelo terceiro ou quarto causo, via a cara deles em cada personagem dos contos. As paisagens das histórias dos contos são descrições perfeitas daquelas que cansei de ver nas muitas viagens Porto Alegre-Rio Grande que fiz. Adoro aquelas paisagens imensas. Céu e campo em tons pastel, com alguns capões de verde escuro, suaves coxilhas, banhados e açudes, os horizontes infinitos. Sempre sonhei com horizontes infinitos.
Por uma única vez na vida me vi tão profundamente concentrado em um pensamento, completamente absorto, que, por alguns momentos, não vi nem ouvi nada do entorno, mergulhado num sonho nítido e vivo. Aconteceu durante uma missa quando tinha treze anos de idade. Como diz meu tio Luiz: “aquelas missas pareciam levar umas seis horas de duração!” Eram torturantes, ainda mais para uma criança. Por sorte, aquela foi uma das minhas últimas missas. Logo minhas irmãs mais velhas advogaram alforria para todos os filhos daquele sacrifício. Aliás, um dos significados de sacrifício no dicionário é missa, o santo sacrifício. Depois de muita luta, elas conquistaram o direito que nós não fossemos mais imolados todos os finais de semana naquela selvagem seita ritualística primitiva.
Bom, voltando então ao momento de abstração total. Foi no final da tarde de um sábado. Meus pais foram me pegar para ir a obrigatória missa depois da minha primeira tarde no grupo de escoteiros do bairro. Tinha sido uma tarde legal para um guri de treze: um monte de meninos da mesma idade, liderados por adultos perversos e infantis, fazendo todo tipo de brincadeiras racistas, preconceituosas e xenófobas em competições violentas! Mas, fora toda esta diversão despudorada, ganhei um livrinho para estudar. Era o Guia do Escoteiro Noviço. A capa do Guia era espetacular! Tinha um desenho preto e branco lindo, com meninos acampando no campo ao lado de rios, observando os animais na natureza, fazendo caminhadas nas montanhas e seguindo rastros, cozinhando sobre uma fogueira, usando facas e fazendo nós. Os meninos estavam todos uniformizados, segurando bandeirolas e usando símbolos próprios desta outra seita, esta também ritualística, primitiva e selvagem, mas que me agradava muito mais. A capa daquele pequeno guia em papel grampeado vagabundo era, para mim, uma extraordinária promessa de liberdade. A possibilidade de alguém me ensinar a, finalmente, me tornar autônomo e independente e, acima de tudo, solto nela e senhor da natureza, solto naqueles horizontes infinitos do desenho, me fez imergir num oceano de sonhos prazerosos. Independência, autonomia e liberdade era tudo que eu queria. Livre do cárcere, livre da opressão, em paz e feliz. Fiquei, sentadinho no banco duro da igreja, segurando com as duas mãos o Guia do Escoteiro Noviço e encarando a capa a missa toda, viajando num mundo onírico. Acordei do transe, felicíssimo com a esperança de um futuro agradável, num momento do rito que todos se levantaram na igreja e começaram a cantar.
Minha irmã Verônica faz aniversário dia 23 de junho, então sua festa de aniversário sempre foi comemorada com motivos de festa junina. O ponto alto da festa sempre foi, para mim, a fogueira, normalmente feita no terreno baldio ao lado de casa. Depois que construíram naquele terreno fizemos fogueira mais uma única vez, em frente de casa no meio da rua. Naqueles tempos isto ainda era possível. Eu deveria ter agora uns catorze anos, já era escoteiro há tempos e gostava muito de ser o responsável pela montagem e acendimento da fogueira. Naquele ano, depois da algazarra inicial do fogaréu, quando a fogueira começou a baixar, ficaram só algumas poucas pessoas em volta do fogo. Fogueira é sempre uma coisa sensacional: sensações de sons, imagens e cheiros, além é claro do calor, todos os sentidos ficam super estimulados. Curtição total! Do nada apareceu uma menina ali ao meu lado, ela também cutucando o brasil e comentando sua beleza poética. Eu achei ela legal, tinha um sotaque forte do interior e expressões engraçadas. Ela parecia um guri: baixinha, com cabelos curtos e usando bombachas, cachecol e uma boina preta. Ela parecia um escoteiro! Imaginei que tivesse uns dezesseis. A Verô nos apresentou, se chamava Alice e morava numa fazenda lá pros lados de Lavras do Sul. Parece que estava passando uma temporada na cidade na casa da prima Isabel, uma colega da Verô. Passamos a conversar animadamente enquanto atirávamos os tições da borda para o centro da fogueira. Ela contou muitas coisas da vida no interior. As ovelhas, os cavalos, os campos, a lavoura, a marcação do gado, o trator, a água do poço, o motor para gerar energia, os animais selvagens que apareciam no entorno da casa e muitos e muitos e muitos horizontes infinitos. Ela chamava tudo de “lá fora”. Eram montes de coisas super bacanas para um guri aqui “de dentro” da minha idade. Ao final da conversa ela me convidou para ir até lá para fazer “uns acampamentos” na beira do rio. A conversa com a Alice, ali na beira da fogueira naquele 23 de junho foi, de novo, um momento de profunda concentração, assim como o da igreja encarando o Guia do Escoteiro Noviço. E pelo mesmo motivo! O aceno com a possibilidade de uma vida de verdade: solto e em contato com a natureza selvagem nos horizontes infinitos. Mas agora, a imersão no oceano de sonhos prazerosos já não precisava da absorção, do se afastar da realidade modorrenta do santo sacríficio, ela estava ali, próxima, na minha frente, quente, crepitando. E eu fiquei o tempo inteiro acordado.
A tal da Alice sumiu, mas eu não esqueci o convite. Continuei sonhando com “lá fora” e seus horizontes infinitos. Nem lembro mais direito como aconteceu, parece que ela ia e voltava do interior, às vezes se encontrava com as gurias, outras vezes as gurias iam na Isabel. Sei que, passados uns tempos, fui convidado para ir passar os feriados de carnaval lá em Lavras. Não titubeei.
Peguei o ônibus para Lavras sozinho, por si só uma aventura para quem, como eu, recém estava para fazer quinze anos. Estava super ansioso, com muita expectativa, passava um monte de coisas na minha cabeça. O pano de fundo era a possibilidade de finalmente perder a virgindade! Haviam várias possibilidades para isto: baile de carnaval, acampamento no meio do mato, casa da fazenda, histórias sobre barranquiadas, etc. havia um cheiro de foda no ar. A viagem era longa, então comprei uma revistas sobre jipes e caminhonetes para ir lendo. O ônibus ia atravessando muitos campos abertos com verdes coxilhas ao fundo, uma paisagem que me chama muito a atenção, então nem lia muito a tal da revista. “Lá dentro” da jaula da cidade, uma revista que mostra veículos que te levam para “lá fora” me era muito interessante, mas aqui não. Dava uma folhada e já voltava a cabeça para fora do ônibus para apreciar a vista. Quase no fim da viagem, um homem atrás de mim pediu a revista emprestada. Emprestei, já que já tinha visto tudo que queria ver. Ao chegar na cidade de Lavras do Sul o homem me devolveu a revista e agradeceu. Peguei minhas coisas e desci do ônibus. Me recebeu uma estranha, meio sem peitos, com uma mancha rosa cobrindo metade da cara, se apresentou como irmã da Alice, se chamava Maria José, a Zeca. Ela me levaria à casa da “vó”. Fiquei sem jeito e desapontado, além de esperar que a própria Alice, bem peituda, me recebesse, pensei que ia acampar numa fazenda no campo, não numa casa da vó na cidade! Para piorar, o homem que me pediu a revista emprestada desceu atrás de mim do ônibus, beijou e abraçou a Zeca. Aos 15 anos me senti um macho sem fêmea. A Zeca e ele tinham muitos assuntos, conversavam sobre pessoas que eu não sabia quem era. Subimos a rua em direção ao centro da cidadezinha comigo quieto, quando dava olhava a bunda da Zeca. Estava chuleando quando aquele chato iria embora. Tentei entrar no assunto perguntando o porque do nome Lavras. Me veio uma baita explicação, falada em jogral pelos dois, das minas de ouro que haviam ali noutros tempos. Finda a explicação o homem perguntou por outro desconhecido e eu de novo fiquei boiando na conversa. Pensei que talvez tivesse me metido numa indiada gelada. Aos poucos fui me acalmando, o cara era irmão da Zeca e da Alice, era o Beiço, tinha acabado de chegar de Porto Alegre onde tirou o beiço duplo, daí o apelido, numa plástica. A Alice chegaria à noite e no outro dia já partiríamos para a fazenda! O beiço, finalmente, dobrou uma esquina e foi para sua casa, Legal! Ao chegar a praça central da cidade, no alto de uma pequena colina, vi o por do sol com as cores mais nítidas da minha vida, exuberante. Tudo naquela singela praça me pareceu lindo e acolhedor. Meu corpo todo tremeu de felicidade e percebi que tinha chegado numa terra prometida. Não a Lavras do Sul da Alice, da Zeca e do Beiço, mas a minha terra dos horizontes infinitos, das imensidões, das cores nítidas e da liberdade.
A casa da vó era logo ao lado da praça, numa ladeira que descia a colina. Era uma casa amarela bem alta e velha, na esquerda da fachada tinha um portão. O portão era a única parte do chão da casa que encostava na calçada porque, conforme a rua ia descendo a ladeira, as janelas iam ficando mais e mais altas. O portão dava para um pátio pequeno ao lado da fachada, coberto por uma parreira de uvas, era neste pátio que estava a porta de entrada. O pé direito da casa era muito grande e o piso era de tábuas de madeira o que fazia o som da casa ser muito característico. Nos recebeu a vó, uma velhinha de noventa anos muito simpática e calma, nos ofereceu bolo e chá. Ela fez tudo parecer acolhedor. A Alice logo chegou e ficou alegre e surpresa de me ver, duvidou que eu viria de verdade. Conversamos um tanto e fomos dormir.
No outro dia, bem cedo da manhã, o pai da Alice já chegou animado, com uma velha picape Ford F-100, azul e prata, de quatro cilindros. Colocamos tudo, mantimentos, mochilas e ferramentas, na caçamba e montamos, eu e a Alice, nas laterais da caçamba. Para mim, tudo aquilo estava perfeito. Eu já adorava camionetes, ainda mais naquele uso tão legítimo do veículo, realmente para carga. Pra melhorar ainda mais a coisa, ninguém se importou de eu ir solto, livrinho, encarapitado na caçamba! Ao contrário, me deram uma ordem: tu vais na caçamba! Fiquei encantado. “Lá dentro” da cidade nunca se vê uma caminhonete carregada e muito menos se vê alguém tomando um ventinho de verão na cara sentado na lateral da caçamba. Passamos ainda por uma farmácia para pegar alguns remédios de vaca e finalmente entramos numa estradinha de terra em direção a fazenda, a mítica fazenda da Alice.
Estradinha de terra é outra coisa que sempre me encantou. Não é reta, contorna árvores e pedras, segue o relevo natural, é toda esburacada, levanta poeira, se chove vira uma lameiro, nos pontilhões se pode ver os córregos, com sorte se vê algum animal selvagem solto. Completamente diferente das ruas da cidade: retas, planas, lisas e nem se vê o que um dia foi o meio ambiente natural do lugar. Pegamos diversas estradas, sempre chegava uma bifurcação e a caminhonete seguia por uma das vias. A Alice ia me explicando: por aqui vai lá para Bagé, por ali vai lá para o açude do fulano, por lá volta para Lavras. Em cada encruzilhada a estradinha de terra ficava mais precária, até se tornar uma picada. Nós íamos nos agarrando como podíamos na caçamba enquanto a caminhonete balançava. Lá pelas tantas paramos na frente de uma porteira ao lado da estrada. O pai da Alice desceu e abriu, passou a caminhonete e me encarregou de fechar a porteira, me mostrando como funcionava o mecanismo, o que fiz com alegria. A partir desta porteira não havia mais estradas, nem estradinhas de terra, nem mesmo picadas! A caminhonete simplesmente ia pelo meio do campo, sobre o pasto, no rumo que o motorista bem quisesse! A passagem por aquela porteira me quebrou mais este paradigma mental: não é preciso estrada para andar no mundo, a gente que faz o caminho ao ir. Passamos por mais algumas porteiras e mata burros. A Alice sempre explicando tudo, satisfeita com minha visível alegria e curiosidade: é para o gado não passar de um campo para o outro, assim o pasto descansa e vem mais bonito. Ela ia me apresentando os campos, me contava nome do dono, causos e curiosidades de cada um. Fiquei com uma incrível angustia de querer conhecer tudo rápido. Descemos um morro e passamos um riacho com a F-100 dentro d’água, sobre as pedras. Meu deus, onde fui parar? Nem pontilhão tem! É o paraíso! Nem no sonho mais selvagem, um cidadão urbano como eu, poderia conceber aquele deslocamento para a fazenda de forma tão aventuresca! Eu estava maravilhado com tudo. Senti um ventinho nas partes, olhei para baixo e vi que com a agitação da caçamba, minha piroca estava apontando para fora do shorts. Fiquei constrangido, porque percebi que a Alice também viu. Exatamente aquela idade que não se pode mais andar de calças curtas, não se quer parecer guri, mas ainda não se têm outras roupas para vestir.
Chegamos em mais uma porteira, acima dela tinha uma placa: “Cinco Marias”. A Alice anunciou: chegamos! De pronto me explicou o porque do nome. A mãe é Zita Maria, depois nasceram quatro filhas chamadas Maria. Maria Emilia, Maria Alice, Maria José e a mais velha eu até já esqueci que Maria que era! Desci correndo e abri conforme me ensinaram. Uma cachorrada nos recebeu latindo, eram uns oito ou nove, todos enormes ovelheiros, exceto uma cadela perdigueira de pelo curto. A Alice foi me apresentando: aquele é o trovão, aquela a nega, aquele com uma mancha... Cada um tinha uma característica especial e uma história engraçada ou heróica. De onde estávamos dava para ver toda a sede. O terreno era cercado, mas enorme, todo coberto com capim. Na cidade aquele espaço seria todo um bairro. A esquerda da porteira estava um brete e o tanque para dar banho no gado. Descendo um pouco a colina estava um pequeno açude. Ao fundo, lá embaixo, estavam o galpão e a casa. Na frente da casa havia um duplo renque de frondosas árvores que se estendia até o galpão. Na sombra das árvores descansavam alguns cavalos. E, em frente ao galpão, um velho trator vermelho me chamou a atenção. A visão da fazenda Cinco Marias me emocionou com uma profunda saudade de algo que eu nunca tive, uma incompreensível nostalgia duma terra, duma querência que nunca foi minha.
Ali em Lavras e com aquele povo lá de fora, tudo parecia ter razão de ser. Desde o nome da cidade, o nome do cachorro ou da fazenda, até o apelido do beiço, tudo tinha uma história. Não tinha nem um campo que não tivesse um causo para contar. Era um mundo oral, as coisas eram contadas de novo e de novo e todo mundo sabia as histórias.
Descemos e descarregamos a caminhonete. Ao levar as coisas para dentro, a Alice já ia apresentando a casa, os familiares e os empregados que apareciam. Entramos pela cozinha, que não era muito grande, mas tinha um enorme fogão à lenha. Preso ao teto da cozinha havia um depósito de metal, onde era armazenada a água aquecida no fogão para o banho.  A casa toda, sim, era grande. Tinha uma sala enorme com uma grande lareira, muitos quartos, mas somente um banheiro. Me foi mostrado o meu quarto. Era pequeno, mas tinha um poema gauchesco numa espécie de pergaminho pendurado na parede. Larguei minha mochila e voltei para a cozinha onde a Alice me chamava para continuar as apresentações.
Ao sair da cozinha para a área lateral da casa, vi uma cena marcante. O pai da Alice já estava arrancando o couro de uma ovelha pendurada por uma das pernas traseiras numa árvore. Muito sangue brotava do pescoço da ovelha do avesso como se fosse uma fonte e escorria para uma bacia de alumínio no chão. Assistindo a cena estavam duas crianças pequenas, muito interessadas, filhos dos empregados. Um peão ajudava o patrão na tarefa, o pelego resistia a largar a carne branca e trêmula do corpo da ovelha, que ainda coiceava com a pata traseira solta no ar.  A Alice me explicou que a “carneação” daquela ovelha era porque ia ter uma grande festa no almoço, uma churrascada, e muitos parentes iriam vir, até de Bagé. Fiquei meio enojado, mas acho que a Alice não percebeu e, se percebeu, não entendeu o porque de meu nojo. Para um guri da cidade, que pela primeira vez entendia realmente de onde então vinha a carne, aquilo era realidade demais, chocante. Caiu a ficha. Eu estava muito mais perto da natureza selvagem, inclusive a humana, do que achei que quisesse e pensei ser possível. A naturalidade com que todos encaravam a cena, até as crianças, era desconcertante. Era tão natural para eles ver aquela carnificina quanto para mim era ver a mãe martelando um bife numa tábua de carne em cima da pia. Felizmente a Alice, com a mesma voz calma de sempre, me levou dali daquela área e continuou a apresentação do lugar como se tivesse acabado de me mostrar outra sala.
Chegamos em frente ao galpão, onde estava o trator vermelho. Era bem velho, e encantador. Volvo, a tinta já toda queimada do sol a sol, com uma lata sobre o cano de descarga para não entrar água da chuva, o banco era de metal com uma mola embaixo. A Alice me explicou que era com ele que nós iríamos acampar, me mostrou a carreta de quatro rodas parada sob outra árvore. Fiquei louco! Já comecei a ouvir o ronco do motor diesel e a fumaça saindo do escapamento apesar do trator ali: paradinho. Carregar a carreta, engatar a carreta, puxar a carreta! Ia ser melhor que a picape Ford!
A Alice me apresentou os cavalos que estavam ali, parados na sombra, como que esperando para cumprir nossos desejos. Me disse em qual eu montaria. Me explicou as razões porque eu andaria nele. Eu já nem escutava direto, tamanha era minha excitação naquela manhã. Andar de picape, conhecer uma fazenda, subir no trator e ainda andar a cavalo... Era muito! Aquela minha desinibição para aceitar o convite de ir a Lavras, mesmo sendo o bicão mor, estava valendo a pena! Ela pegou os freios que estavam numa forquilha de árvore e “instalou” no cavalo. Puxou pelas rédeas e levou para dentro do galpão me explicando o temperamento do cavalo, seu nome, o que eu deveria falar para ele, os ruídos que deveria fazer que seriam compreendidos, por qual lado deveria montar e como deveria agir com as mãos e pés. Se ele empinar, se ele correr, se ele virar de repente, se ele parar, etc. Quinhentas instruções, eu prestei o máximo de atenção que pude, mas eram muitas informações e o simples barulho das patas do cavalo no chão já me atraiam mais. Só a ignorância e a coragem de um adolescente me mantinham dizendo tá... tá... tá... Ela me deu uma breve aula de outra língua, uma língua cheia de interjeições, assobios, ruídos e gestos que para mim eram teatrais. Para completar, eu deveria saber falar todo aquele idioma animal dentro de dez minutos para não me esborrachar no chão. Enquanto ela me explicava, ia colocando um monte de coisas no lugar, cada coisa com um nome, uma história e uma razão de ser, tudo para no final ser um lugar para sentar no cavalo: a sela. Camada um, camada dois, amarra embaixo da barriga, camada três, amarra de novo, sela e estribo, amarrava de novo, finalmente o pelego. Como aperta a barriga do cavalo! Parece um espartilho. Como é que ele respira? Apesar de a Alice ficar mexendo, cutucando e espremendo ele, o cavalo se mantinha passiva e resignadamente calmo. A Alice sempre falando, comigo e com o cavalo. O cavalo sempre quieto e eu: tá... tá... tá... Trouxe o cavalo para fora do galpão puxando pelas rédeas. O galpão era lindo e cheio de cheiros, mas nesta hora eu não percebi nada daquilo, era muita ansiedade. Ia ser minha primeira voltinha sozinho num cavalo! Passamos por uma mesa enorme que já estava sendo arrumada para o almoço por um exército de mulheres tagarelando sob o renque de árvores em frente à casa. Não avaliei direito a cena, que era linda com a claridade do sol da manhã, era muita ansiedade. Mais um monte de instruções enquanto eu colocava o pé no estribo e jogava a perna por sobre a bunda do cavalo para me achar já montado, alto do chão. Tá... tá... tá... Agora chegava à hora em que eu já tinha que desempenhar ativamente as primeiras palavras e gestos do idioma. Parecia ser fácil! Mas, assim que a Alice largou a rédea do cavalo, ele virou a cabeça com violência para o lado e disparou em velocidade máxima, colina acima, em direção a porteira da fazenda. Blublu, blublu, blublu! Era o barulho dos cascos na atropelada sobre grama. Blublu, blublu, blublu! Demorou uns três segundos para eu entender que estava bem encrencado, mas nisso o cavalo já tinha corrido uns cem metros e já estava passando rente ao açude, levantando barro do chão, já bem longe da casa. Blublu, blublu, blublu! Lembrei que a Alice avisou que às vezes aquele cavalo tentava derrubar quem ele sentia que não sabia montar. Blublu, blublu, blublu! Mais uns três segundos de pânico e tento desesperadamente lembrar, fazer e dizer as coisas que me foram ensinadas do idioma para situações assim. Blublu, blublu, blublu! Puxei as rédeas, jogando o corpo para trás e os pés para frente, com toda minha força. Blublu, blublu, blublu! O cavalo parecia ignorar por completo meus comandos, ele não era nem aritmético nem mecânico, eram 400 quilos duma besta animalesca. Blublu, blublu, blublu. Passamos rente ao brete, embaixo de algumas árvores! Blublu, blublu, blublu! Puta! Eu não sei falar este idioma! É o fim! Mas, ao chegar próximo da porteira, o cavalo parou bruscamente. Vendo que eu não tinha caído, ele passou a obedecer todos os comandos. Fiquei todo borrado de medo, mas, para não dar na vista, voltei para a casa da fazenda dando várias voltinhas no brete e no açude, agora trocando passos. Quando apeei, embaixo das árvores, o almoço já estava sendo servido. Muitos me cumprimentaram, tinham visto, que ótimo cavaleiro eu era! Só anos depois me dei conta: Tá... tá... tá... no idioma que os cavalos se comunicam com os humanos quer dizer blublu, blublu, blublu. Lá em Lavras, uma besta animalesca assim, que tenta te matar, eles chamam de animal doméstico.
Fomos almoçar sob aquelas frondosas árvores na frente da casa, numa enorme mesa de madeira. Havia umas trinta pessoas e muita animação, a conversa era alta, assim como as risadas. Tinha muitas piadas de contexto sexual e eu ficava temeroso de alguém me perguntar alguma coisa para eu cair numa cilada constrangedora. Mas não, me respeitaram e eu fiquei bem quieto, rindo baixo, para não chamar a atenção. A comida, claro, era churrasco. Agarrei com as mãos uma costela, como todos faziam, e comi com disposição! Estava delicioso! Quando já estava repetindo, comentei com alguém ao meu lado quão bom estava aquele churrasco, no que a pessoa me respondeu, falando bem alto: Pois claro, ovelha recém carneada! Lembrei da cena da manhã e percebi que aquela gostosa carne estava tremendo a perna até agora a pouco. Mas, assim, assada e mergulhada na farofa, a costela já parecia mais com comida e não com bicho morto. Todos pareciam bem à vontade, alguns até com bombachas e alpargatas. A Alice, inclusive! Aqueles que usavam alpargatas pisoteavam a parte de trás, ficando de tal forma amassada que o sapato parecia mais um chinelo. Outros usavam uma espécie de chinelo de couro, igualzinho às alpargatas amassadas! E todos palitaram seus dentes após a refeição, de alguma forma acomodados com os pés para cima sob as arvores em roda da mesa. Era evidente que a cena era comum para todos. Aquela orgia, aquele banquete de animais recém abatidos ao ar livre, nada mais era que um campeiro encontro familiar dominical. O único ali estranhando tudo, era eu, o bundinha da cidade. Não pense, caro leitor, que eu estava achando ruim, horrorizado com a selvageria do lugar e das pessoas. Não. Eu estava maravilhado e essa refeição até hoje me preenche a memória como uma das cenas mais alegres e autênticas que vivi.
A tarde inteira ficamos ali, em roda, embaixo das árvores. As mesas foram tiradas e guardadas e as cadeiras andavam atrás da sombra conforme o sol caminhava para o poente. As cinzas do enorme fogo que assou a ovelha esfriavam agora ignoradas. O almoço se estendeu por horas, com chimarrão e violão, causos, doces caseiros e recordações. A paisagem do entorno, seus horizontes infinitos e suas cores fortes, me enchiam a cabeça de esperança de viver mais daquilo. Aquele pessoal, naquele lugar, naquela situação, era uma amostra maciça: O mais puro retrato da cultura rio-grandense! E eu ali no meio, me encontrei. Me emocionei diversas vezes nessa tarde e me percebi, pela primeira vez, gaúcho!

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