terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Roteiro


Estamos em campanha salarial, nossa data base é maio. O sindicato me deu algumas tarefas essa semana. Primeiro pediram que ajudasse no “roteiro”, distribuir o jornal do sindicato, conversar com os trabalhadores e colar os cartazes pelos locais de trabalho, escolas, creches, intendências e postinhos de saúde. Fiquei responsável pelo leste da ilha: Santinho, Ingleses, Rio Vermelho, Barra da Lagoa e Lagoa da Conceição. Eu gosto de fazer roteiro: é uma espécie de turismo de carro por toda a ilha, se encontra um monte de gente amiga super interessada em ouvir o que tu tens para falar e o sindicato ainda paga o almoço! Depois ainda assumi a tarefa de fazer uma apresentação de power point para a reunião dos agentes de saúde e endemias. Isso tudo dá um trabalho! Mas oportuniza também um momento de muita reflexão. Não gosto de escrever qualquer coisa, tenho que me concentrar. Por isso, protelei a hora de sentar e escrever para o final de semana.
Quando eu era adolescente ficava tentando me achar. Era apavorante, não sei se lembras dessa fase! Não podia cair no ridículo, isso seria o fim. Quando alguém perguntava algo, eu me sentia obrigado a ter uma resposta, e uma resposta inteligente para não virar motivo de gozação por um mês, ou ganhar um apelido cruel. Qual era o meu grupo? O que eu gostava? Na dúvida, ia em tudo que é onda para tentar encontrar algo de bom ou com sentido. Uma coisa que eu fazia na adolescência era ouvir música. É verdade! Quem me conhece agora não crê, mas naquele tempo eu não só escutava vários tipos de música como até comprava LP's. Estava me procurando. Eu tinha que me encaixar em algum lugar e a única coisa comum a todos os adolescentes era que todo mundo curtia música. Qual era a minha tribo? Alguns colegas gostavam de Pink Floyd, outros de AC/DC e tinha até aqueles que gostavam de The Cure. Dark, progressivo, metaleiro. Minha irmã do meio gostava de Talking Heads e Caetano, a mais velha curtia umas coisas mais gauchescas como Bebeto Alves e Nei Lisboa e a mais nova teve muitas fases, de Michael Jackson ao grupo new wave Devo. Algumas coisas eu gostava, outras me davam verdadeiro asco. O primeiro show que fui na vida foi do Camisa de Vênus no Gigantinho. Não conhecia nada deles, mas fui na carona das minhas irmãs. A acústica era uma merda e não se entendia nada. Então, o Marcelo Nova gritava: ô Silvia... E o gigantinho inteiro respondia em coro: PIRAAAAANHA!!! Eu TINHA que gritar aquele refrão a plenos pulmões também, não podia ficar de fora daquele orgasmo coletivo. Mas, como eu não conhecia a música e não entendia nada o que todo mundo gritava, imaginei que a palavra cantada em coro fosse outra, mas não tinha certeza. Ficava só movendo os lábios como se gritasse também, confiando que o ruído ensurdecedor do lugar camuflasse minha ignorância. Um amigo da minha irmã mais velha, percebeu meu truque e ficou me olhando. Ele exigiu: Grita Tiago! Arrisquei e gritei com tudo: TIRAAAAANA!!! O show acabou ali para mim e para os amigos da minha irmã. Eu tinha uns treze e eles eram muito mais velhos que eu, uns verdadeiros sábios anciões, tinham uns dessessete! Ficaram o resto da noite me rodeando, me imitando, me gozando e rindo da minha cara!
O meu problema com músicas é que tem que ter silêncio absoluto no ambiente para eu conseguir sentir se gosto ou não daquilo. Qualquer estímulo no ambiente que não seja a própria música já me desconcentra. O negócio é tão grave que qualquer música, por melhor que seja, passa a ser um desconfortável estorvo se alguém simplesmente me dirigir a palavra. Eu tenho que ficar deitado no chão, sozinho e no escuro para ouvir a música, se não, não consigo, vira ruído desagradável. Além disso, decorar uma letra, junto com sua melodia, é uma tarefa muito árdua para esse cérebro Neandertalensis que vos escreve. Tenho que ouvir umas quatro mil vezes a música, deitado no chão e no escuro, para poder cantar sozinho toda a letra. De formas que, aprender a cantar uma música é, para mim, como um trabalho de Hércules. Tirando o “atirei o pau no gato”, que aprendi depois de ouvir 4000 vezes na infância, o total de música que sei cantar de cor de ponta a ponta a letra é: uma! A música se chama “O Astronauta” de um grupo de punk rock que tu deves conhecer, Os Replicantes. A letra esta reproduzida abaixo:

Quando ela disse, "cai fora"
A lua inteira soube, na hora
Eu era só um pobre, astronauta
Trabalhando numa armadura de lata

Meu chefe era um, robô desalmado
Ele disse aqui na lua isso é bem normal
Mulher é coisa rara, brinquedo mimado
Primeiro bota em órbita e depois trata mal

Comprei uma passagem num foquete pra terra
e disse ao robô, a ferrugem te espera
Ele acendeu uma, luzinha na testa
e disse lá em baixo já acabou a festa

Não, eu sempre posso voltar
roubar um carro e rodar por aí
Não, eu sempre posso esquecer
a poeira lunar e ter uma mulher só pra mim

Desci pensando em todas as mulheres da vida
Gastei o meu dinheiro nos prazeres do sexo
O que pode fazer um astronauta cansado
Além de esquecer que um dia foi amado

Não, eu sempre posso voltar
Roubar um carro e rodar por aí / rodar por aí
Não, eu sempre posso esquecer
a poeira lunar e ter uma mulher só pra mim

Agora quando a lua, cresce no céu
Aperto contra o peito o coração de Bebel
e abençôo toda a indústria eletrônica
por ter criado a minha nova esposa fiel

E molho a garganta tentando me livrar
das últimas partículas de poeira lunar
Bebel então percebe e começa a chorar
e eu tenho medo que ela vá enferrujar também

Não, eu sempre posso voltar
roubar um carro e rodar por aí / rodar por aí
Não, eu sempre posso esquecer
a poeira lunar e ter uma mulher só pra mim

Sim, eu me achei no Punk Rock. Titãs, Cascavelettes, Clash, Replicantes. Debochados, provocadores e subversivos da ordem me atrairam. Mas eu só conseguia ouvir deitado, sozinho e no escuro. Quando eu estava em pé, acompanhado e no claro, ou seja, para o mundo, eu não era um subversivo, mas sim um pacato cidadão. Andava de bicicleta e até cheguei a usar cabelos mullet, era “new wave” e estava na moda. Como pacato cidadão eu até me saia bem, parecia um gatinho comportado, penteava o cabelo, estudava e lia. Uma vez li um livro de um subversivo diferente, ele nem falava de música. Um cara que largou tudo e saiu pelo mundo a viajar de bicicleta. O livro era tremendamente mal escrito, o autor era um bronco do interior do Piauí, mas para mim, naquela altura da vida, era ótimo. Quando passou pela África, o ciclista relatou duas experiências que me impressionaram tanto que até hoje lembro. As duas foram durante a travessia do deserto na Namíbia. A primeira, foi quando estava pedalando numa estrada, sob um sol escaldante. Alguém num carro de luxo parou a seu lado, abriu a janela e estendeu a mão com uma lata de coca-cola gelada sem dizer uma palavra, fechou a janela e arrancou o carro. Uma coca-cola gelada no meio do deserto para alguém que viaja de bicicleta realmente anima a vida do sujeito. O outro fragmento do livro ruim que me chamou a atenção foi que, entre dois oasis distantes um do outro, o ciclista ficou sem água. Quando finalmente chegou num poço d'água, já cambaleante ao final da tarde, foi com tanta sede ao pote, bebeu tanta água de uma vez, que vomitou ainda com o jarro na boca.
Toda essa baita introdução é para ilustrar como pequenos paragráfos mal escritos por broncos ou punks podem nos influenciar. Algumas coisas que se lê podem ficar anos no subconsciente até fazer algum sentido. Outras entram direto, como se aguardadas para completar alguma lacuna cerebral. Algumas, eu pelo menos, leio como um astronauta que desce para a terra depois de anos na lua lidando com robôs, com muita gana de andar de carro e tara por sexo. Leio como quem se refrigera com uma coca-cola gelada quando está ardendo no sol do deserto. Leio quase me afogando, as golfadas, várias vezes, como quem encontra água no oasis depois de dias de angústia da sede no deserto. Leio como quem espera muito tempo por alguma coisa. Anos. Leio com alegria. E se o parágrafo for escrito por alguém inteligente? Em você, não sei, mas em mim provoca vontade de escrever, de responder aquela provocação. Este parágrafo, por exemplo, vi fazendo o roteiro:

”Pois falar em democracia no Brasil [...] é coisa extremamente difícil: em primeiro lugar, sempre foi difícil em decorrência da estrutura autoritária da sociedade brasileira; em segundo, ela se torna quase impossível diante da hegemonia econômico-política do neoliberalismo e da sua expressão social-democrata, a chamada “terceira via”[...] (CHAUI, 2001, p. 13)."

Marilena Chauí é a filosofa mais famosa do Brasil, é a mais conhecida internacionalmente. O livro mais popular dela é o Convite a Filosofia. Este livro, se tu vais fazer mestrado, em algum momento vão mandar tu ler. Ela faz uma revisão dos filosofos mais famosos da história. O livro é caro, deve estar uns cem reais hoje em dia, mas tem sempre um truque de estudante pobre para contornar o problema. A Editora Ática tem uma coleção de livros didáticos para o segundo grau. Cada área quem escreveu foi um autor famoso por sua didática ao ministrar a ciência. Tem o de matematica, o de português, o de geografia, o de física, etc, e, felizmente para nós estudantes, o de filosofia quem escreveu foi a Marilena Chauí. Lembra o Convite a Filosofia, com muito mais figuras, só que custa vinte cinco pila. Com o desconto de professor e algum choro eu comprei o meu por dezenove. Mas não tenho mais! Dei, sem nem ter lido todo, para a filha de uma namorada que tive em 2004. Ela ia fazer vestibular e estava indecisa entre filosofia e história. Eu quis ajudar. Outro livro da Marilena muito conhecido entre os estudantes é O que é Ideologia daquela coleção primeiros passos. Esse custa uns déiz pila.
Bueno, eu não sou nenhum filósofo, sociologo ou economista para dizer com propriedade o que é neoliberalismo, mas vou tentar. Adam Smith, conhecido como o pai do capitalismo, dizia que a riqueza das nações se daria quando não houvesse muitos impostos e regulações do governo. O mercado deveria ser livre de amarras, por isso seus seguidores são chamados de liberais. Assim, mesmo se cada um tratasse somente de seus próprios interesses, mesmo se cada um agisse de forma egoísta, uma mão invisível se encarregaria de auto regular o mercado porque os clientes, cuidando de seus interesses, se afastariam de alguém que cobra agio ou lucros exorbitantes. A mão invisível também previa que outras pessoas entrariam no mercado oferecendo o mesmo produto ou serviço para concorrer com preços mais baixos com quem quissesse se aproveitar. Além disso, todo mundo buscaria oferecer melhores produtos e serviços para ter uma clientela maior, essa concorrência acirrada por clientes levaria a um avanço tecnológico.
O Adam Smith compreendia o lado biológico do ser humano, a lei da selva: se eu posso mais tenho mais! Mas ele também pensou, e isso pouca gente sabe, no lado cultural do ser humano. Esse lado cultural deveria ser o das leis, das regras, das regulações. Então, os liberais também diziam que o governo deveria exercer um poder moderador sobre algum excesso do cidadão. Adam Smith previa que em caso de excessos ou escassez o governo deveria moralizar os negócios: tomar de quem tem para dar para quem falta. O Neoliberalismo é um termo até um pouco jocoso por parte das pessoas que criticam o liberalismo de Adam Smith. É que as regulações governamentais, culturais, que impediam os excessos, muitas vezes eram um impedimento para a obtenção de lucro mais animal, mais natural, mais selvagem. Os predadores naturais da sociedade, aqueles mais adaptados ao meio ambiente do mercado, eram quase castrados a força. Além disso, os indivíduos, as pessoas físicas, sentem um pouco de culpa se estão comendo caviar e faisão e seu vizinho está comendo papelão com polenta para estufar mais. Aqueles predadores da sociedade, pressionados por muitos outros individuos da comunidade, o poder moderador da coletividade do estado, se sentem obrigados a dividir. Por isso foram criadas as corporações, corpos não humanos, pessoas jurídicas, completamente insensíveis a qualquer moralidade, para que a possibilidade de lucros seja grandemente aumentada sem ferir a moral de ninguém. A pessoa jurídica foi uma esperta manobra dos liberais mais ferozes e contidos por mais mordaças. O neoliberalismo é o liberalismo de corporações, é o mesmo liberalismo de sempre, mas não humano e desprovido de moralidade!
A social-democracia se auto intitula a terceira via porque estaria entre o privilegiamento da liberdade individual do capitalismo (primeira via), e o privilegiamento da justiça social do socialimo (segunda via). Os países mais desenvolvidos do mundo são democracias sociais. Suécia, Holanda, Noruega, Dinamarca, Finlândia são exemplos de Social-democracias. Lá a economia é capitalista: concorrência com preços mais baixos e melhores produtos. Mas o governo é socialista, tomando, através dos impostos, todo excesso que alguém possa vir a conseguir. Isso faz com que o indivíduo mais rido do país ganhe mensalmente somente cinco vezes mais do que aquele que ganha menos. Parece bom, não é? Mas é uma falácia porque as corporações neoliberais amorais desses paises exploram pessoas noutros países. Quem usa um celular Nokia (empresa sueca) está garantindo a seguridade social tranquila de um cidadão sueco, mas explorando o trabalho semi escravo do operário terceiro mundista que fabrica o aparelho. O bem estar social lá na escandinávia é resultado de um mal estar social em Bangladesh. É um neoliberalismo de estado, não de indivíduos!
É por isso que a Marilena Chauí chama de Hegemônico o neoliberalismo, porque mesmo disfarçado de social democracia ele está lá com toda sua força. E, claro, os estados socialistas que sobraram, moralistas que privilegiam a justiça social em detrimento da liberdade individual, são minúsculos e sufocados por todos os lados para que morram por estados capitalistas imorais.
Acredito que a Marilena Chauí fala da dificuldade de falar em democracia no Brasil, assim como em qualquer país neoliberal, por que no nosso sistema de governo a "verdade" é a do mercado. Então, as opiniões de todos tem a fortíssima influência do que é melhor para o mercado. Temos a nítida impressão de que estamos escolhendo livremente numa democracia, mas isso não é verdade. Imaginemos que houvesse um plebiscito no Brasil sobre a legalidade da farra do boi. Provavelmente o folguedo seria colocado na ilegalidade, como aliás, já foi, sem nem a consulta da população. Mas porque é ilegal correr atrás de um boi tentando dar um tapa na sua bunda? Porque não tem regras de participação do cidadão, não tem limites de onde a brincadeira pode ocorrer e principalmente não tem competição, coisas importantíssimas para o mercado. Torturar milhares de bois, porcos e galinhas lá em Chapecó, em escala industrial, visando o lucro de corporações, pode! Uma comunidade de pescadores, brincar com um único boi num momento de festa do vilarejo, num momento raro de alegre comunhão de bens e alimentos, um exemplo prático de sociedade humana ganha-ganha, para comemorar a única carne que os pobres vão ver no mês, isso é terminatemente proibido! O mercado pinta os foliões com as cores do pecado, da maldade, da crueldade. Agora, se fosse feito o plebiscito da legalidade do futebol, certamente o futebol seria mantido legal. Os cidadãos que dele participam seguem regras, limites e, principalmente, competem entre si! O mercado quer isso, quer que o cidadão seja mantido sob regras rígidas, sob limites claros de movimentação e que esteja sempre iludido que quanto mais comportado for ao seguir essas regras e limites, maiores serão as chances de vencer (na vida).  O mercado abre espaço em horário nobre da TV para essa brincadeira em que uns competem contra os outros e a maioria perde, quem ganha o campeonato é uma "seleção" dos melhores cidadãos. A exclusão é celebrada. Os mais criativos dentro daquelas regras e limites, os operários mais produtivos dentro daquelas estratégias e táticas para massacrar derrotados, esses serão premiados. É isso que o mercado quer! Obediência as regras e resignação por ser perdedor. O mercado pinta os jogadores com as cores de altruístas, cidadãos maravilhosos, verdadeiros heróis da pátria. Uma sociedade neoliberal imoral de ganha-perde. Ou seja, não é democracia quando o sistema induz as pessoas em suas opiniões sob um falso discurso de liberdade de opinião. A estrutura autoritária da sociedade brasileira que a Marilena fala é essa.


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