sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Passárgada

Na casa de um dos alunos dos quais eu dou aula, trabalha uma guria. Ela tem uns vinte e cinco anos, eu acho. É uma alemoa batata, meia feia, nariz vermelho de furar fronha, com sotaque carregado, seu nome é Noela. Dia destes eu fui lá especialmente para montar uma bicicleta. Prescrevi para o menino tamanho, modelo, cor, preço, tudo. Mandei a mãe da criança comprar. Ela foi. O guri tem algumas dificuldades motoras, para ele seria bom, ganharia no Natal. Enquanto eu montava na lavanderia puxei conversa com a coloninha na cozinha:
-Maaas... Daonde tu é, tchê? Com este sotaque...
-Sô do Agudo.
-Nããããããooo... Do Agudo?!!
-Sô sim.
A partir daí a conversa seguiu animada, e continuou muito depois da bici estar pronta. Ela me contou tudo que sabia da “Picada do Rio”, pequeno e calmo lugarejo de onde tinha saído. Também me falou da geografia do lugar, dos “môro”, dos “mato”, dos “bicho” e do Jacuí, e da atmosfera amigável (ela, claro, não usou estas palavras) que envolve a cidade. Ela está com saudades dos parentes, dos amigos e de tudo lá. Está arrependida de ter vindo para “capital”, aqui ninguém não tá nem aí pra ninguém, anda decidida a voltar.
Esta atmosfera amigável de que falava a Noela, tem me chamado muito a atenção. Não só de Agudo, mesmo porque nem conheço o tal do Agudo, mas do interior em geral. Aqui é este stress tão gigantesco. No meu curso a gente estuda a saúde, a prevenção de males e a busca da longevidade através de uma maior qualidade de vida. Em tudo que eu estudo verifico que a vida aqui em Porto Alegre está ficando incompatível com a saúde, insalubre, e no interior, ao contrário, tudo favorece uma melhor qualidade de vida. Isto anda tocando alto como trombeta dentro da minha cabeça.
Estes últimos três meses foram horríveis. Eu estava levando ao mesmo tempo, não sei como, estágio (1ª e 6ª séries) no Colégio Uruguai, três cadeiras na ESEF, a pesquisa e a monitoria, a oficina de bicicletas e ainda uns dez alunos por fora. Felizmente, metade disto tudo acabou agora e eu posso sentar e escrever.
Eu andei muito estressado por estes dias. Saía sempre correndo de um lugar para o outro, dormia pouco, comia mal. Sempre atucanado com alguma coisa que era para ontem. Teve um dia que eu discuti e quase bati num velho que me fechou no trânsito, horrível. Depois fiquei tremendo (ação adrenérgica), arrependido e envergonhado. Teve outra vez que corri para pegar um taxi, entrei esbaforido: - Toca pra Nilo! O motorista era um velhinho bem magro e calmo, ele não disse nada e tocou. Respirei um pouco: - Que correria né? O véio mudo, só dirigia. Respirei mais. Eu parecia aquelas galinhas que atravessam a cidade dentro de um caixote, do aviário para o matadouro, aquele fel todo inundando a carne (depois a gente come aquilo!). Ainda estava atarantado. Respirei de novo e comecei a falar sozinho já que o véio não se incomodava comigo. Precisava falar algo com alguém, se não eu ia abrir a porta e correr empurrando o taxi para ir mais rápido.
- Não sei se o senhor viu... Uma reportagem que saiu na Veja estes tempos... A cidade com melhor qualidade de vida do Brasil fica aqui, no Estado... É Feliz, ali, logo depois de Campo Bom... O senhor viu?... Acho que muito da qualidade de vida que eles tem é porque eles não tem esta correria toda no cotidiano... Eles não tem metade do que a gente tem, mas tão numa boa... Barulho... Congestionamento... Assalto... Tudo tão caro... Esta porcaria de shopping novo aqui agora, só pra atrapalhar...
Quando eu parei de reclamar, divagar e maldizer tudo, fiquei, eu e o velho, um pouco em silêncio. De repente, eu até me assustei, o véio falou calma e pausadamente, com uma voz grossa e firme, como se não estivesse parado num congestionamento da Ipiranga, sob um sol escaldante, com um passageiro a beira de um ataque de nervos:
- Eu sô daquela cidade, aqui no Estado também, que tem a maior longevidade da América Latina...
Eu atropelei o véio e adivinhei a cidade:
- Eu sei: Veranópolis. Eu li aquela reportagem também.
A partir daí o velho destramelou. Começou a me descrever todas as vantagens de Veranópolis e eu concordando. - É mesmo... Tem toda razão... Isso... Não, o senhor tá certo... É verdade... Não, não tem dúvida... Bá, nem fale... No fim, esqueci até da pressa, o velho estacionou na frente do guri que eu ia e, em vez de descer correndo, fiquei ali sentado no taxi conversando com o véio um pouco mais. A gente se despediu com um aperto de mão e um tapinha nas costas como se já nos conhecêssemos a muito tempo.
Quando eu era guri, ia na padaria e deixava a bici na porta. Os brinquedos ficavam o dia inteiro esquecidos na frente de casa protegidos por uma cerquinha de quarenta centímetros de altura e um portão sempre aberto. A passagem do carro para os fundos era aberta, da calçada a gente via a mãe capinando na horta. Naquela época não tinha nenhuma grade aqui em casa ou na rua. Era melhor. Depois veio a época em que a mãe nos dizia que era bom não deixar nada dando sopa. Um tempo depois um cachorro se tornou necessidade, veio a Pepita e a Chiquita. Depois era bom ter grades, correntes e cadeados, veio a casa nova. Depois não se podia mais sair de casa sem ficar alguém cuidando. Depois seguro, depois alarmes. Agora já estamos na época dos vigias 24 horas na porta de casa, sensores de infra-vermelho e cercas eletrificadas. A Veja faz uma reportagem por mês sobre as vantagens de se ter um carro blindado! Até quando isto bastará? Isto é qualidade de vida? Não tô mais vendo graça nisto.
A Verô sempre me propagandeou o interior como uma boa opção, ela pensa em ir morar no Cassino um dia, perto do Luíz e da Hélida. Ela sempre me disse, do jeito dela, que a qualidade de vida lá é melhor. As vezes a gente fica pensando alto juntos. No interior a gente ganharia muito menos, um terço do que faz aqui mais ou menos. Não tem cinema nem teatro. Shopping: nenhum. Banco 24 horas... Não. Restaurantes ou bares, talvez um ou dois. Máquinas de Coca-cola e asfalto: ã, ã, nada disso. Mas... Pense bem, será que a gente precisa de tudo isto mesmo? Talvez às vezes! Mas será que o preço que se paga por tudo isto não é muito alto? E as necessidades inadiáveis que se inventa então? De uma hora para outra todo mundo tem que ter celular, se não é o fim. Computador conectado a internet para o chat e e-mail são quase o pão de cada dia para alguns. Carro tem que ter ar, direção hidráulica, câmbio automático e mais um monte de mequetréfes. Apartamento tem que ter três quartos, dois banheiros e uma bela vista por favor. No interior as necessidades não são assim tão urgentes. Depois, tem outra, todo mundo sabe que as coisas no interior saem pela metade do preço e o dobro da qualidade, acaba o cara tendo o mesmo poder de compra que aqui com o triplo de qualidade de vida. Só que tem uma coisa que lá fora se tem e que aqui já se perdeu a horas. E isto para mim não tem preço, é o que a Noela tentava dizer. É o sentimento de comunidade, o sentimento que todos tem um compromisso social com todos. Everybody care about everyone, that’s nice. Todos se cumprimentam na rua e se conhecem, isto não é fofoca, é qualidade de vida.

Eu tenho pensado muito em ir morar no interior. Não é uma fuga, é uma escolha. Tanto não é uma fuga que eu estou ficando muito bem colocado aqui nesta sociedade louca, estou bem encaixado, bem louco. Os grandes caciques da minha área me reconhecem e me consideram um louco a compartilhar privilégios. Trabalho feito louco, estudo feito louco e, agora, estou podendo passar a fazer o que é bom nesta comunidade louca: consumir como louco. Como eu sou jovem, forte, bonito, rico e inteligente, venço qualquer competição contra indivíduos menos favorecidos. E como estou fazendo tudo, direitinho, como a sociedade urbana neoliberal idealiza como bom, estou sendo muito bem recompensado e mais linhas de crédito estão se abrindo para que eu possa ficar ainda mais fisgado nesta vida. Mas eu sou bagre velho e já carrego outros anzóis no beiço (lembra dos automóveis). Quero pular fora desta loucura de alguma forma. De jeito nenhum quero meus filhos neuróticos como eu. Uma maneira legal de escapar seria ir morar no interior. Mas não como a Verô pensa, uma Rio Grande pra mim já é muito grande. Pelotas, Santa Maria, Caxias, Uruguaiana, Passo Fundo, nada disso me serve. Diz que até Lajeado já tem um shoppinzinho. A não! Sinto muito. Eu quero menor. Eu quero uma cidade em que o centro seja uma praça rodeada pela igreja, prefeitura, correio, padaria e ferragem e onde tudo fecha ao meio dia, até o restaurante. E assim mesmo eu não gostaria de morar no centro, gostaria de morar na periferia. Lá nos últimos postes, onde a estrada já é de terra e não é reta, serpenteia desviando de pedras e árvores. Lá onde a água é de poço, e um motor enche a caixa. Lá se colhe do quintal e um cachorro espanta os gambás. Lá teria milhões de trilhas e estradinhas de terra subindo e descendo morros para eu andar de bicicleta sossegado. Lá teria ar puro, lá teria silêncio, lá teria boa alimentação, lá teria saúde, lá teria paz, nenhum vizinho chato. Lá o progresso demoraria quarenta anos para chegar. Passárgada, lá eu mesmo construiria meu castelo de dois quartos e um banheiro. Nem tô se tu achas romantismo besta. Lá teria um pátio imenso. Lá meus filhos cresceriam bem. Informação eles teriam, porque hoje em dia ela vai para qualquer recanto do planeta. Além disso os pais são sempre os melhores professores e eu estaria muito mais presente que se vivesse aqui. E a riqueza de experiências que eles teriam? E quando precisassem algo diferente, como um dentista, a capital é ali e os transportes são rápidos. Quando eu penso numa cidade do interior que se encaixa neste perfil, desde que conheci a Noela, eu penso “no Agudo”. Não, na verdade eu não penso num Agudo, eu penso é numa Picada do rio.

Um comentário:

  1. Bah! Desejar é o início ...olha agora...anos se passaram e você está onde queria

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