quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Ciclista (Besta animalesca 1)

Através da luta dos ciclistas organizados aqui de Floripa, eles conseguiram que os acessos das passarelas da avenida beira mar fossem rampas, ao invés das escadas inicialmente projetadas. Assim, os usuários da ciclovia poderiam também utilizar as passarelas sem precisar apear. Coisa engraçada: a ciclovia mesmo, aquela baita ciclovia de oito quilômetros de extensão, não era uma demanda dos ciclistas! Foi uma obra feita para ficar bonitinha nas campanhas eleitorais. Nos entroncamentos e nas pontes por que passa, a ciclovia simplesmente acabava num meio fio. Obviamente quem projetou e construiu a ciclovia não foi um ciclista. A ciclovia não era para ser usada de verdade, era para ser somente olhada! De quando em quando o ciclista se via obrigado a apear e subir a calçada. Ridículo. Somente ano passado que a prefeitura fez pequenas rampas, muito curtas e mal feitas, para que o ciclista não precise parar.
Dia destes fui andar de bicicleta na ciclovia, era final de tarde. Coloquei a sapatilha e a bermuda de ciclismo, capacete e luvas, mas não vesti a malha de ciclismo, só uma camiseta comum, destas Hering. Fui em direção a UFSC, a intenção não era outra se não olhar um pouco a mulherada por lá, ver umas bundas, talvez passar uma cantada em alguma tchanga que valesse a pena. O passeio seria calmo. Ia girando os pedais numa marchinha de escalada, bem baixinha. Já voltando para casa, desci uma daquelas passarelas na banguela para pegar mais velocidade. Ao reentrar na ciclovia, nas rampinhas mal feitas, um pequeno degrau fez minha corrente saltar e cair. Bicicleta velha, manutenção negligenciada, sabe como é... Nem amaldiçoei a prefeitura, aproveitando o embalo que estava a bici, automaticamente abaixei o tronco e alcancei com a mão a corrente toda oleada colocando-a de volta no lugar. Me surpreendi que eu ainda sabia fazer aquilo com a bicicleta andando, apesar da pança. Mas, ao reerguer o tronco, percebi que um testículo tinha se enfiado entre a coxa e o banco. Com vinte quilos a menos isto não acontecia ao realizar a mesma manobra. Ali o ovo não podia ficar e, com a bermuda colante, dali ele não iria sair. Fiquei em pé na bicicleta, sem as mãos no guidon e ainda aproveitando o mesmo embalo da descida da passarela, com a mão da luva suja de graxa afastei a bermuda para frente e enfiei a outra mão dentro da bermuda resgatando a bola apertada puxando o saco para cima. Quem olhasse toda a cena veria uma série de malabarismos sobre a bicicleta sem entender nada do que estava acontecendo. No máximo imaginaria um maluco exibicionista fazendo um show erótico.

No exato instante que dei por concluída todas aquelas atividades bizarras e nenhuma corrente caída ou ovo espremido me distraia mais, um ciclista passa por mim como um raio. Instintiva, automática e reflexamente eu subi as marchas, colocando numa de sprint, bem alta. Saltei sobre os pedais e puxei o guidon com força. Em dez segundos eu tinha me transformado numa besta animalesca e já estava colado na roda do atrevido. Como ousa me ultrapassar? Estou cansado de aceitar estas “provocações” e de vencer este tipo de “desafio” de ciclistas de fim de semana. Mas aquele guri parecia ser diferente. Era um sujeito magérrimo. Devia ter uns dezoito ou vinte anos. As pernas finas pareciam duas cenouras grandes, de tão finas. Os feixes musculares eram visíveis a olho nu. Corpo e técnica de atleta profissional. O jeito dele na bici é de quem está acostumado a andar forte, muito acostumado. E ele estava andando muito forte. A bici dele era um frankstein total, coisa de quem gasta as peças e tem que trocar com a que aparece, com a que o dinheiro dá, coisa de quem anda muito. Muito afinada, super bem montada e ajustada para o tamanho dele, uma bicicleta de corrida. Ele estava concentrado na posição de contra-relógio: costas na horizontal, cabeça erguida com os olhos focados no horizonte, pescoço mergulhado no meio dos ombros como uma garça, mandíbula inferior lançada à frente numa expressão de dor e raiva, joelhos passando rente ao quadro, cotovelos colados ao centro do peito, mãos unidas no meio do guidon, as coxas visitando os mamilos a cada pedalada, os pés girando como um ventilador. E eu, agora na mesma posição que ele, com minha roda da frente a cinco centímetros da traseira dele. A roda traseira dele era só o que eu via. Já não via mais o mar, era só um borrão sem importância do lado direito. Os carros passando na avenida eram só um borrão irrelevante do lado esquerdo. Nem o barulho da avenida ouvia mais, só o ensurdecedor barulho do vento contra. Já não via mais nem uma bunda caminhando ao lado da ciclovia. Meu sistema nervoso interpretava, naquele momento, que a luta pela sobrevivência passava antes por aquela roda traseira. Já não tenho mais vinte anos, nem trinta, para aquele tipo de desafio, mas, irracionalmente, não conseguia tirar o olho daquele pneu girando a toda velocidade. Qualquer mínima distração, meu pneu rasparia no dele e somente eu cairia no asfalto quente e abrasivo. Ele talvez só escutasse o tombo. A camiseta Hering panejava como uma bandeira no meu ombro, funcionava como um paraquedas. Todas as informações que meu cérebro processava eram somente sobre a direção do vento e as prováveis condições físicas do guri. Eu tinha que me manter a sotavento, ali onde não se ouve o barulho do vento e se pode sentir com grande clareza o cheiro do ciclista à frente. Mesmo ali, me aproveitando da força do guri para acelerar a massa de ar, eu já estava sofrendo. Ele não poderia segurar aquele ritmo por muito tempo, não aquele ritmo. Passamos o Angeloni zunindo, ele não abaixou o ritmo. Acho que ele percebeu minha inconveniente presença, mas nem deu bola, não fez nenhum movimento de ataque para me despachar. Esta atitude no ciclismo é típica de quem está muito treinado e confiante de sua condição física. Uma forma de arrogância, quando tu tens tanto sangue para dar que não se incomoda de remover um parasita minúsculo que te suga. Chegamos no koxixos a toda. Lembrei de como ali costuma ficar cheio de pedestres à tarde, crianças com bicicletinhas na ciclovia. Meu cérebro imediatamente deletou esta informação como coisa inútil para a situação. Minha visão periférica e minha audição registraram borrões de uma multidão passando, mas o guri não diminuiu o ritmo. Pensei em como seria grave um acidente aquela velocidade no meio de um grupo de pessoas caminhando, mas de novo meu cérebro deletou o pensamento. Eu não via nada a frente, só confiava cegamente nele. Minha respiração já tinha o ruído da de um asmático em crise, assobiada, e pela mesma razão: falta de ar! Já estava esticando a veia do pescoço naquele tirambaço, mas, mesmo assim, eu só via a roda girando a cinco centímetros da minha, algumas vezes chegou a sete e me preocupou, me obrigando a pedalar mais forte. Lembrei que tenho vinte e cinco quilos a mais de que quando corria de bicicleta e que eu estava numa pesada bicicleta de viagem, mas meu sistema nervoso se irritou com mais esta lembrança inútil. Chegamos na altura do shopping beira mar, na sinaleira que eu uso para atravessar a avenida quando volto para casa. Mas nem me passou pela cabeça parar. Minha boca já estava seca e com aquele gosto de vômito. A garganta em brasa, queimando com a passagem do ar soprado que a secava. Um cuspe em forma de pasta seca se formava nos cantos da boca. Eu já estava enrolando a língua no pneu, mas não conseguia largar aquela roda que ia à minha frente. Ele tinha que já estar sentindo algum tipo de cansaço, pensava eu a todo instante, logo ele baixaria o ritmo. Mas não! Ele parecia tão concentrado no giro dos pedais como quando passou por mim. Mesmo não estando muito quente no dia, um pingo de suor se formou no meu nariz, pinicando, mas não tinha tempo para tirar ele dali com a mão e nem ar sobrando para soprá-lo. Fiquei pensando que quando eu treinava, nós revezávamos a dianteira para que o cara que vai na frente não se queimasse sozinho. O guri esnobava solenemente minha presença ali e em nenhum momento sugeriu com seu posicionamento na via que eu assumisse a dianteira. Na sombra da minha bicicleta, vi luz do sol passando entre a corrente e a coroa, óbvio sinal de desgaste e folga. Na sombra da bici dele, tudo justinho, somente sombra entre a corrente e a coroa. Meus ouvidos estavam úmidos e pareciam sangrar. Minhas musculaturas cervicais e lombares reclamavam em voz alta, desacostumadas que estão, daquela posição estapafurdia. Meu corpo inteiro fazia um grande esforço metabólico para extrair as últimas gotinhas de caldinho do fígado. Uma faca parecia estar cravada nos rins, fazia muito tempo que eles não tinham que filtrar tanto sangue. Até meu ombro já estava ardido do chicotear da camiseta. De repente, num estalo de consciência, parei de pedalar e vi a roda do guri se afastando rápido de mim já quase na ponte Hercílio Luz. O guri no mesmo ritmo do início e eu já sem fôlego nem para ser seu parasita chupa roda. Eu parei não porque me dei conta que aquele duelo idiota era uma coisa primitiva ou infantil, mas porque meu sistema nervoso percebeu que meu corpo tinha sido abatido por um macho muito mais poderoso do que eu. No esporte, uma besta animalesca assim, que responde a estímulos instintivamente, como eu ou o guri magrinho, se chama atleta. 

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