quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Família (Besta animalesca 3)

Tu sabias que um neurônio nunca toca em outro no cérebro? Um neurônio não precisa cutucar o outro para que o outro aja. Eles se comunicam através de neurotransmissores, uma gosminha que “voa” de um para o outro. Um indivíduo neurônio excreta gosminha (manda mensagem) para outro indivíduo neurônio perceber aquela gosminha (receber a mensagem) para que a “família cérebro” funcione. Eles não se tocam, mas movem um corpo inteiro só através de gosmentas mensagens. Na família é a mesma coisa: um indivíduo não precisa empurrar o outro para este agir, basta falar com ele. O neurotransmissor na família, a mensagem que faz os indivíduos se mexerem é a culpa. Sim a culpa! Pergunte a qualquer psiquiatra ou psicólogo. Que coisa gosmenta, não achas? Mas tem algumas gosmas que impedem os neurotransmissores de passar de um neurônio para outro. Na família estas gosmas são o desdém, o deboche e a arrogância. Estas são as gosmas que paralisam, que impedem a ação.
A família é uma besta animalesca, que reage a estímulos do meio como qualquer ser vivo. E reage reflexamente, automaticamente, inconscientemente, hipnoticamente, porque, como qualquer ser vivo, a família, não tem livre arbítrio. Exatamente como o cavalo domesticado na fazenda da Alice, como as crianças da creche defendendo o bem, como a Torcida Mancha Azul defendendo o Avaí ou como o douto professor Tiago na ciclovia da beira mar. Como todo ser vivo, a família se defende das agressões do meio e tenta sobreviver para perpetuar seus genes. Para sobreviver, a família obriga seus indivíduos mais fortes e capazes a proteger seus indivíduos mais fracos e débeis. Faz isto automaticamente, inconscientemente, reflexamente, hipnoticamente, porque a família, como qualquer ser vivo, não tem livre arbítrio. Se chover granizo, a mãe ou o pai, fortes, protegem a criança, fraca. Se o irmão pequeno, débil, é ameaçado na escola, o irmão maior, capaz, o defende. Se o pai fica doente e não pode trabalhar, o filho mais velho e capaz vai em seu lugar. Assim os genes se perpetuarão. Para aqueles indivíduos frágeis, que tem dificuldades em se independizar, com falta de criatividade para ser autônomos, a família estimula mais, oferece o que tem de melhor. Assim os indivíduos débeis são privilegiados para que tenham alguma chance de sobrevivência. O osso do crânio, resistente, protege os neurônios, frágeis. As leis sempre protegem os mais fracos para que tenham chance de sobrevivência. E a família sempre pensa no todo: o todo é a família. A família é que deve sobreviver. Então, para aqueles indivíduos muito soltos, resistentes, independentes, criativos e autônomos, a família tem que achar mecanismos para que permaneçam ao redor da família para proteger o todo. Se o pai pensa em se mudar para o Piauí atrás de uma tchanga, a esposa, as tias, as avós, a família toda faz com que ele se sinta culpado e não vá. A gosma da culpa tem que envolver o danado para que ele não se desprenda da família. Se alguém quer ir morar na Europa, tem que ser impedido de alguma forma. Solta a gosma! Tem que haver alguma forma de lei, uma culpa, para que a pessoa não aja, para que seja paralisada, impedida. Família é uma coisa grudenta mesmo.
Aos cinco anos eu aprendi a andar de bici de duas rodas sem rodinhas auxiliares, com o incentivo da Bebeti. Acho que era Bebeti o nome dela, também agora nem lembro direito, sei que ela era mãe de um amiguinho meu ali da frente de casa. Acho que foi a segunda família que foi morar lá depois da casa pronta. O nome do meu amiguinho filho dela era Aloísio. Mas o Aloísio não era o dono da bici sem rodinhas auxiliares na qual aprendi a andar. A dele tinha rodinhas e era tão sem graça de andar aquela altura da minha vida quanto o meu triciclinho vermelho. Aprendi a andar de bicicleta numa Monark Monaretinha roxa de um guri que morava lá em cima da rua. Não sei quem era o guri, ele não descia muito seguido a rua. Numa tarde de sol, estavam muitas das crianças da rua brincando de bici pelas calçadas. Como eu não tinha bici, só o triciclinho, me voluntariei para ser o frentista de um posto de gasolina imaginário que funcionava embaixo do telhado da entrada da casa da Bebeti. Naquele tempo não haviam grades ou portões e a brincadeira era ir até os Hoffman, descer até a casa do Sandro e voltar para o posto abastecer. Nem todo mundo abastecia a cada volta, então eu ficava ali meio abandonado até que alguém se lembrava daquela parte da brincadeira que era minha incumbência e entrava na casa da Bebeti. Ela ficava por ali junto comigo, sentada numa preguiçosa, acho que lendo ou tricotando não lembro, e eu sentado no degrauzinho de entrada da sala da frente, esperando minha chance para participar de forma marginal da atividade. Bastaram quinze minutos de observação para Bebeti perceber que eu estava praticamente excluído. Ela fez uma limonada com gelo e chamou todo mundo para tomar, aproveitou a deixa para sugerir que nós revezássemos na função de frentista do posto. Ela, agora percebo, estava tão angustiada com a situação quanto eu. Obrigou seu filho que cedesse sua bici com rodinhas para mim e ele, bem contrariado, cedeu por uma única volta. Fiquei de novo ali olhando aquele banquete, roendo ossinho. Entrou o guri da Monaretinha roxa no “posto” e ela disse: agora é tu que fica no posto. Eu esclareci para ela que nunca tinha conseguido andar sem rodinhas. O Alemão, filho do Omar e a Sheila, irmã da Soraia, já tinham me dado umas aulas, mas numa bici grande, não consegui. A minha excitação era tão evidente que ela não teve a menor preguiça, levantou de um pulo e me levou para a calçada: eu te ajudo. Que eu me lembre ela só precisou empurrar um metro para eu já sair sozinho. Dei a voltinha com todo o cuidado: Deus me livre cair. Quantas aulinhas de cuidado com as coisas tive em casa. Quando eu estragava algum brinquedo ficava louco de medo porque: punições viriam! Também dei a voltinha o mais rápido que pude e voltei para o posto para render o guri, não queria abusar já na primeira voltinha. Não queria estragar a Monaretinha nem me aproveitar demais, se não ele não me emprestaria nunca mais. Que angustia! Naquela tarde a cada meia hora eu dei uma voltinha de um minuto. E tudo graças a Dona Bebeti e ao vizinho lá de cima da rua, minha família mesmo, se omitiu!
Tu vês, como é a família, né? Eu sempre lutei pelo não uso dos carros. Não sou nenhum sensível extraordinário, mas eu tive acesso à informação privilegiada em outras terras, na Holanda principalmente, para me conscientizar do problema. Ao voltar aqui para o Brasil me mobilizei para a luta. Escrevi o manual do ciclista urbano de Porto Alegre para o então vereador Gerson Almeida em 1991. Larguei a engenharia mecânica e abri a oficina de bicicletas em 1993. O Gerson foi escolhido secretário do meio ambiente e o Manual finalmente foi publicado em 1996. Em 1998, depois de muita luta, eu e o Schaan conseguimos publicar o Guia das Vias Cicláveis de Porto Alegre pela EPTC. Eu sempre era chamado pela RBS para falar sobre algo que envolvesse as bicicletas. Também era consultado pela prefeitura e pela EPTC quando era necessária uma tomada de decisão sobre alguma ciclovia ou evento ciclístico pela cidade. Eu era uma referência na cidade desta luta tão importante. Teve uma vez, no lançamento da ciclovia interparques, eu dei de dedo na cara do prefeito Raul Pont e do secretário de transportes Mauri, diante de toda imprensa, e disse que aquele modelo de ciclovia era um deboche para a cidade diante do que a lei previa. Eu só deixei a militância da luta pelas bicicletas e não uso dos carros lá em Porto Alegre quando vim para Florianópolis em 2002. Assim mesmo, voltei diversas vezes para grandes eventos como o fórum mundial social e um ou outro passeio ciclístico que houve. Me emocionei muito, com a notícia que o nome da ciclovia na Av. Diário de Notícias vai ser Eduardo D’Agord Schaan. Acho que se fosse ao contrário, eu tivesse morrido de câncer e o Schaan estivesse vivo, a ciclovia teria o meu nome. Eu era bem mais conhecido e radicalmente envolvido com a luta muito antes dele. A ONU ainda não toca diretamente no assunto, porque são brutos e insensíveis, mas para mim é óbvio que eles serão obrigados a regulamentar o uso e fabricação de carros no mundo em breve porque seu uso é imoral e insustentável. Aqueles seres humanos arrogantes e insensíveis que utilizam o carro hoje em dia, devem estar pensando: malditos chineses e indianos, para que estes pobres e esquisitos asiáticos foram inventar de começar a andar de carro agora!
No dia do aniversário de minha mãe, liguei para parabenizar. Comentamos um pouco sobre o meu sucesso como orador nas assembléias do sindicato. Rápido, ela falou: “É que tu aqui não tinha lutas.” Querendo dizer, acho eu, que eu só estava animado porque, finalmente, só agora, tinha achado alguma luta para travar. Evidentemente uma opinião da família, inconsciente e hipnoticamente pronunciada. Este comentário surgiu na mesa da refeição, estou certo. As opiniões inconscientes emergem assim, de estalo, sem esforço e sem questionamentos, como respirar, quando o ser vivo família está reunido. Ninguém tem culpa desta opinião, porque não temos livre arbítrio suficiente para não tê-la, mas todos somos seus co-autores. Se eu estivesse presente e protestasse, provavelmente ganharia um arrogante sorrisinho sarcástico acompanhado de uma perguntinha inocentemente desdenhosa: ah, aquilo eram lutas? Mas se estivesse presente eu nem protestaria, porque estaria imerso na gosma e sou da família. Família é uma besta animalesca, não tem o menor livre arbítrio. Tive que dar de presente para minha mãe um belo de um xingão.
Lembro uma cena que ilustra bem esta coisa de besta animalesca, da omissão e ignorância inconsciente da família. Eu passei a infância e a adolescência andando de bicicleta todos os dias, já tinha ido para Europa e viajado de bicicleta 6000km por lá, até já tinha competido algumas corridas de mountain bike aqui no Brasil, ia todos os domingos às seis da manhã para andar de bici nas trilhas de Gravataí. Estávamos eu e o pai assistindo TV na sala, ele fazendo aquele característico sobe e desce dos canais. Cena clássica que todo mundo conhece bem de pais ao redor do mundo. Normal. Ele trocava de canal e ficava uns três segundos em cada para ver o que estava passando. Quando ele passou pelo ESPN estava dando o Tour de France e eu achei jóia, cheguei a gemer de faceiro. Mas, passados os três segundos ele trocou de canal. Eu reclamei que queria assistir a corrida mais importante do mundo. Ele ficou surpreso com meu pedido para voltar a ESPN e, contrariado, voltou, daí comentou: Eu nem sabia que tu gostavas de ciclismo! Esta atitude do pai era da família inteira em muitas situações. Tenho uma lista das 21 bicicletas que usei na vida. Só entra para esta lista aquelas que usei mesmo, não as que peguei emprestado para uma voltinha na quadra. Só entra as que passei uns tempos andando todos os dias, tardes inteiras andando pelas ruas do bairro. Só entra na lista as que gastei de tanto usar, usei até estragar, tive que fazer manutenção, trocar peças, até que não dava mais e dei, vendi, troquei. Na lista tem o nome da bicicleta, marca, modelo, cor, tamanho, características principais, e um resumo de como aquela bicicleta foi parar nas minhas mãos e que fim ela deu. Destas 21, a única que eu ganhei da família, dado mesmo, de presente, foi a primeira: um triciclinho vermelho com o banco branco quando fiz três anos de idade. Adorei o triciclinho e usei bastante, foi ótimo. Mas, depois dos três anos de idade, a besta animalesca da família achou que o Tiagão não deveria ter bicicletas. No entender inconsciente da família, para os genes da família se perpetuarem e todos os membros sobreviverem, era importante que eu não saísse por aí de bici, porque todas as outras 20 foram compradas por mim mesmo ou pedalava na das minhas irmãs. Sorte minha que todas as três irmãs ganharam muitas bicicletas e não usavam. O bom disso é que a família, obviamente, me percebe forte e acredita que eu posso conseguir minhas próprias bicis e sair pelo mundo viajando com elas, o que realmente aconteceu, desprotegendo os membros mais frágeis.
Há anos atrás, fui assistir e tirar algumas fotos na Volta Ciclística de Porto Alegre. Como sempre nestes eventos, se pode observar muitos atos de heroísmo. Teve um rapaz que, ingenuamente, liderou as cinco últimas voltas da corrida num ritmo alucinante, permitindo que seus adversários poupassem energias para o sprint final, simplesmente seguindo seu vácuo. Fez todo o trabalho, porém foi ignorado na pontuação da corrida e na reportagem do jornal. Teve outro, de outra categoria, que tirou segundo lugar pedalando uma bicicleta, carinhosamente ajustada, de 400 reais e vestindo bermudões de skate. Vale lembrar que competia contra ciclistas equipados com bicicletas de 8000 dólares, que dirá reais. Ao final da corrida, exausto, foi carregado em júbilo por três amigos que foram prestigiar sua atuação. Estes feitos não ficam escritos em nenhum lugar exceto nas mentes dos que foram lá assistir ou participar. É a glória olímpica! Assim é que nascem os mitos e as lendas do esporte.
Enquanto assistia aquela grande festa do ciclismo gaúcho, lembrava do tempo em que eu também treinava e competia. Para ser competitivo tinha que se estar treinando diariamente, comprando peças novas para manter a máquina afiada e precisa como um bisturi, participando de todas as provas, mesmo se fossem em Bagé ou Erechim. Qualquer descuido em algum detalhe e tu corrias o risco de “pingar do pelotão”, ou seja, não conseguir acompanhar o ritmo dos adversários, perder o vácuo e gradualmente ser deixado para trás. Os ribeirinhos todos pingavam na primeira curva. Somente os realmente bons saíam juntos da última curva, se empurrando, se maldizendo e se cuspindo. Era um momento de luta corporal, só ali era decidida a corrida, nos últimos duzentos metros de quarenta ou cinqüenta quilômetros. Ganhava o que estivesse mais disposto a briga no dia, the meaner, the best. Se tu pingavas, melhor que fosse só numa corrida, se fosse no campeonato era o fim. Não pontuar no fim de semana era uma desgraça, ainda que tu tivesses feito uma excelente corrida. O espectro da derrota rondava tua mente. O que me gratificava na época era a possibilidade de vencer. A explosão de alegria se eu sprintava entre os primeiros e subia no pódium.
Dá para se fazer um belo paralelo entre as competições esportivas e a vida. Vê bem se não é assim. As categorias são divididas por idades. Os mais bem dotados financeira ou geneticamente se sobressaem da massa. Não basta se destacar, you got to keep up, se não pinga. Tu tens que ter as últimas informações e os últimos acessório da moda. Tu tens que estar na crista da onda, se não tu estás out. Tu não tens celular?!???!!! Me perguntam em assombro. Tu ainda não viste “Shakespeare Apaixonado”?!??!! Tu tens que sempre estar fazendo some move up, otherwise you’ll be placed down. I’m good, and I struggle to keep up! Eu até chego junto na última curva. Só que eu nunca tive hormônios muito desequilibrados, que me deixassem muito agressivo. Eu sempre sprintei por fora, evitando a briga pela melhor trajetória. Chegar em terceiro, quarto ou quinto, para mim já tinha gosto de vitória. Vê que eu competi anos na elite do ciclismo Gaúcho, mas depois de um tempo enchi, pra que tudo isto? Ai é que está. Se tu não competes, não tens como perder. Além do que, numa corrida de ciclismo, assim como na vida, num pelotão de duzentos ciclistas somente um vencerá, cinco ainda conseguirão subir no pódium, mas cento e noventa e cinco, certamente, baixarão suas cabeças e refletirão sobre seus erros, ainda que não tenham feito nenhum.
A competição é um troço cruel, mesmo quando se ganha. Vê que todos se esforçaram ao máximo, será justo? Lá do alto do pódium tu olhas para os sorrisos amarelos dos adversários lá embaixo... Não sei, pelo menos eu não me sinto muito a vontade lá em cima, mesmo estando feliz, mesmo sabendo que todos acharam justas as regras antes de entrar na corrida. Eu venci por que sabia regular melhor um melhor equipamento. Venci por que sabia os segredos do treinamento e da alimentação. Mas eu tinha este equipamento e estes saberes por que tive oportunidades que meus competidores não tiveram. Então não é assim tão meritória a vitória!

No ciclismo eu não compito mais, só me delicio de fora. Na vida eu estou pensando if it’s worth... Para cada um que se dá bem tem dez que ganha salário mínimo ou está desempregado, is it fair? Ok, I’m doing fine, my folks are happy... So, that’s enough?... Is the “I’m the best and fuck the rest” approach, the right one? Don’t think so.

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