terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A Boa Crise
Tiago de Moraes Alfonsin
Um novo fantasma assombra a humanidade: o fantasma da insustentabilidade. A insustentabilidade do modo de vida contemporâneo ameaça a toda a população mundial. Em 2008, uma crise econômica de abrangência global teve início. As crises são inerentes ao capitalismo e servem para reacomodar a economia em níveis de realismo depois de uma bolha especulativa. Mas, diferente de outras crises, esta teve início nos Estados Unidos. Este simples fato revela uma oportunidade única para os trabalhadores do mundo. O capitalismo sempre protegeu seu âmago para se perpetuar. Se as instituições sedes do capitalismo estão quebrando ou sofrendo grandes prejuízos, esta não é uma crise cíclica normal do sistema. O próprio modelo de desenvolvimento capitalista entrou em colapso. Uma simples retrospectiva histórica deixará evidente para o leitor o que esta tese defende: esta crise é boa para os oprimidos de todo planeta.
Há dez mil anos atrás, com a agricultura, a humanidade começou a viver uma onda de desenvolvimento. Soa como uma coisa muito boa. Atualmente desenvolvimento é quase um mantra, pronunciado hipnoticamente por todas as correntes políticas. Mas, vamos observar com cuidado a palavra. O prefixo “des”, em português, tem o sentido de negação, separação, ação contrária. Desenvolvimento, então, é aquilo que não tem envolvimento, não deseja se envolver, quer se distanciar do envolvimento. O não envolvimento desta palavra se refere ao mundo natural. Quanto mais desenvolvido, mais separado da natureza, mais se nega o pertencimento ao meio ambiente comum a todas as espécies. A humanidade não procurou o “des”envolvimento da natureza, ele aconteceu sem a menor intenção. A agricultura não foi descoberta ou inventada, ela emergiu como uma necessidade de sobrevivência, foi o primeiro “des”envolvimento humano da natureza.
Quando a agricultura começou a ser necessária, os seres humanos estavam vivendo uma grave crise de escassez de alimentos. A espécie humana, até aí, vivia no seu nicho ecológico como qualquer outra espécie animal, mas uma súbita mudança climática global aqueceu o planeta e tornou insustentável o modo de vida hegemônico daquela época, obrigando a humanidade a mudar seus hábitos milenares de cooperação na caça e coleta nômade. Aonde haviam florestas luxuriantes, que forneciam abundantes recursos energéticos necessários a vida, passou a existir, em pouco tempo, um deserto. Houve uma crise energética. Onde sempre houve facilidade para encontrar alimento, agora não. A natureza não era mais generosa, era cruel. Ela, que até então foi o útero que abrigava e protegia, aonde os seres humanos viviam envolvidos e evoluíram por milhares de anos, passou a ameaçar a sobrevivência da humanidade. Para sobreviver, a espécie humana teve que se defender da natureza, teve que se desenvolver dela, teve que sair de dentro dela num parto doloroso. Não havia mais alimentos suficientes para todos. A humanidade se viu, onde quer que estivesse, obrigada a trabalhar para comer. Era preciso cultivar plantas que antes nasciam sem o menor esforço de ninguém. Também foi preciso cativar animais para que eles não destruíssem os alimentos tão duramente adquiridos e também para que não fossem atacados por outros predadores que não fossem os próprios humanos. Há dez mil anos atrás, a vida da humanidade mudou drasticamente para pior.
A humanidade que vivia numa generosa opulência, onde todos cooperavam para subsistência, se viu obrigada a se tornar mesquinha e a controlar tudo. Cada um tentava garantir a sua própria sobrevivência e isto significava competir e se defender não só da natureza, mas também de outros seres humanos. Era preciso que quem obtivesse os recursos necessários à vida, água e comida basicamente, negasse a sobrevivência a outros, porque o que havia não era suficiente para todos. Surgia a propriedade privada. Se alguém investisse seus preciosos e escassos recursos energéticos cuidando da terra para produzir alimentos, tivesse o trabalho de plantar, cuidar, irrigar, colher e armazenar, não queria que ninguém mais tivesse acesso àquele terreno de onde saía a fonte da vida. Inventou-se também, as cercas e as leis. Quem não as respeitasse era morto ou expulso do lugar. Todo mundo podia cultivar os alimentos em qualquer lugar ao longo dos rios, lagos e mananciais, mas preferiam se aglutinar uns perto dos outros num lugar bem fértil para que ali, todos conhecendo as regras, se respeitassem mutuamente e fosse mais fácil competir com outros seres humanos que ainda teimavam ser nômades. Assim, unidos, cooperados, sindicalizados, o controle da produção era melhor. Cooperando com os que trabalhavam e produziam juntos e competindo com quem não fosse do local, estes indivíduos iniciaram um movimento humano para a exclusão institucionalizada. Eles foram os primeiros sedentários da humanidade, não porque não trabalhavam, mas sim porque tinham sede, cidades, não eram mais nômades, e criaram muitas regras para se proteger da competição que hoje acreditamos serem naturais. Uma nova espécie até então inexistente surgiu, o Homo Urbis, evoluída a partir de um ditame do ambiente como qualquer espécie sempre evoluiu. Curioso que os embriões das primeiras cidades, colônias desta nova espécie humana, foram construídos exatamente sobre as terras mais férteis. Este fato demonstra a evidente desesperada tentativa de sobreviver num meio ambiente hostil.
Sendo obrigados por esta força maior do clima, que os tornou extremamente pobres e escravos do trabalho, os seres humanos não podiam mais se afastar das sedes onde plantavam e criavam os recursos energéticos necessários ao sustento. Não podiam mais migrar para fugir do frio inverno ou do calor do verão e se afastar dos meios de produção. Tiveram que enfrentar a natureza, agora uma inimiga, que não dava mais de graça a subsistência dos indivíduos. Tiveram que aprender a conviver com a labuta, com o calor e o frio. Além de ter que inventar palavras como lei, vizinho e propriedade, tiveram que encontrar soluções para moradia, agasalho, transporte de água, conservação de alimentos, ou seja, tiveram que se desenvolver da natureza e se envolver em uma vida artificial, organizada em função da produção. O alimento não mais brotava sozinho do chão ele tinha que ser produzido. Desenvolver, portanto, significa produzir. Não só alimentos, mas tudo que serve para viver longe da natureza, de casas e roupas a arados e aquedutos, os bens de consumo.
Ter que produzir para sobreviver passou rapidamente de contingência nefasta do Homo Sapiens, nômade, para uma coisa biologicamente desejável para a nova espécie do Homo Urbis, que vive em colônias. Quanto mais desenvolvido, quanto mais longe da natureza cruel, maior era a produção, portanto mais rico de recursos energéticos para sobrevivência o individuo ficava. Apesar de a terra ser originalmente de todos, aqueles mais frágeis, que primeiro sucumbiram à escassez de alimentos, agora alegavam ser donos dela, donos do único meio de produção de comida. Aqui fica evidente como o meio ambiente determinou um novo modo de vida. Quanto pior a condição climática, mais difícil ficava para sobreviver no nomadismo, somente os mais tenazes resistiam. Então, aqueles indivíduos que insistiram naquele modo de vida do Homo Sapiens, aqueles resistentes, ficaram excluídos da produção do Homo Urbis e, aos poucos, do acesso ao alimento. Os que finalmente cederam à nova ordem social por penar a fome, fora escravizados e tiveram que se submeter aos ditames daqueles que já eram donos do meio de produção, estabelecidos nas sedes sobre as terras férteis.
A grande eficácia humana na produção de alimentos logo gerou um excedente energético. A abundância de alimentos possibilitou o aumento populacional. Isto gerou um circulo vicioso. O aumento da população demandava mais recursos energéticos, mais terras tinham que ser cultivadas para produzir mais alimento para mais bocas famintas. Chegou um momento que as terras férteis conhecidas não bastavam para a população crescente. O modo de vida se aproximou da insustentabilidade novamente. A energia solar que incidia nas terras conhecidas não se transformava em alimento rápido o suficiente. Novas terras tiveram que ser buscadas. Iniciou-se um período de grandes navegações em busca de novos territórios. E não só para isso, mas também para importar especiarias e exportar gente. As especiarias eram muito valorizadas por que conservavam os alimentos para os períodos de escassez e a Ilha de Santa Catarina se chamava Desterro porque para cá eram exportados excluídos das terras européias. O capitalismo nasceu deste comércio com o além mar. Se especulava sobre as mercadorias que os barcos iriam trazer do exterior, de quanto seriam os lucros. Aqueles primeiros grupos de agricultores cooperados que cultivavam terras a beira dos rios, agora eram nações que competiam umas com as outras para conquistar os melhores territórios, com mais água, terras férteis e incidência solar, que possibilitariam sua futura sobrevivência. O capitalismo nasceu da desesperada tentativa humana de sobreviver ao desequilíbrio ecológico da mudança climática de dez mil anos atrás.
O aumento territorial possibilitou mais aumento populacional humano, pressionando ainda mais o meio ambiente por recursos energéticos. A Europa já não tinha mais florestas para usar como combustível e na construção civil. Até múmias dos cemitérios egípcios foram importadas para servir de combustível, mas elas também acabaram. Urgia uma nova solução energética que aumentasse a velocidade de transporte e produção de alimentos. A solução foi encontrada no subsolo: carvão, turfa, gás natural, xisto betuminoso e petróleo. Energia solar fóssil, armazenada durante milhares de anos no subsolo, uma poupança energética gigantesca começou a ser explorada. Esta solução fez a oferta de energia e a capacidade humana de produção de alimentos aumentarem de forma vertiginosa. A exploração dos recursos energéticos fósseis viabilizou o surgimento do industrialismo e o “des”envolvimeto completo da humanidade, seu afastamento total da natureza.
A grande densidade energética dos combustíveis fósseis tornou obsoleto o lento metabolismo animal e humano de energia solar. Com o brutal e súbito enriquecimento de recursos, a população mundial também começou a aumentar exponencialmente. Se em 1800, no início da revolução industrial, a população humana era de um bilhão, em 2010 já é de sete bilhões de pessoas. Com este subsídio energético fóssil, o Homo Urbis se adaptou a um falso meio ambiente. No entanto, esta grande oferta energética é finita. Em 1800, turfa era retirada com pá no fundo dos pátios da Europa. Em 2010 o Brasil se dispõe a perfurar poços de petróleo a sete quilômetros de profundidade no mar, a 350 km da costa, e anuncia isto como sendo a salvação econômica do país. Chegamos novamente a um ponto de insustentabilidade do modo de vida, no qual a humanidade sofrerá um grande revés.
O Homo Urbis e seu modo de sobrevivência “des”envolvido, nas cidades e com o capitalismo, é uma espécie animal que ocupou um nicho ecológico muito breve em escala geológica. É evidente que, por utilizar energia fóssil e não a única fonte de energia do planeta, o sol, a espécie é insustentável. Esta espécie oportunista, pela proporção que tomou, se tornou um câncer no ecossistema global. Sua eficácia no “des”envolvimento da natureza e na produção de alimentos e bens de consumo na luta pela sobrevivência, ameaça sua própria existência. Com sua hiperpopulação, os recurso mais básicos a vida se tornaram escassos. A biodiversidade do planeta, necessária ao equilíbrio ecológico do qual a espécie faz parte, está diminuindo rapidamente. O solo, do qual tira todo seu sustento, está exaurido e erodido. A água e o ar limpos, já começam a diminuir. Até recursos minerais estão em extinção. O mar, berço da vida do planeta, está morrendo pela sobrepesca e poluição. Além de tudo, uma brutal e súbita mudança climática novamente se avizinha para a humanidade. Estudos indicam que o nível dos oceanos há de subir durante este século. As maiores áreas de terras férteis e cultiváveis do planeta serão alagadas, justamente aquelas áreas mais populosas que serviram de útero a espécie e onde estão localizadas as grandes cidades.
Chegamos, finalmente, ao imo de nossa tese. O Homo Urbis e seu capitalismo exigem crescimento constante e isto é impossível infinitamente em um mundo finito. Por mais que os visionários capitalistas insistam que os novos territórios humanos sejam extraterrestres, dificilmente a humanidade se expandirá além do planeta a tempo. Atingimos o limite de nosso modo de vida contemporâneo. A espécie não tem mais para onde correr. Os recursos energéticos que viabilizaram toda a modernidade estão acabando. O “american way of life”, com casa, ar condicionado, carro e outros produtos industrializados que o capitalismo apregoa que podem ser universalizados, o meio ambiente da Terra não comporta. A equação que envolve população, alimentos, bens de consumo e recursos naturais, não fecha. O mais chocante para os trabalhadores de todo mundo é que, do ponto de vista da sustentabilidade, nem o socialismo consegue resolver esta insolúvel equação. Os atuais sete bilhões de seres humanos não podem ter acesso aos níveis de consumo dos países conhecidos como desenvolvidos, simplesmente porque não há recursos naturais suficientes para todos.
A população mundial, já está ciente de todos estes fatos. Basta abrir os jornais de qualquer nação para tomar conhecimento de uma grande convergência de crises. Notícias sobre agressões irreversíveis ao meio ambiente, grave escassez de matérias primas, urbanização descontrolada, hiperpopulação, crise econômica mundial ou eventos climáticos extremos são cada vez mais freqüentes. Mas, apesar da abundância de informações, a maior parte das pessoas parece não se importar com a gravidade do problema e não se dispõe a mudar nada de seu cotidiano. Esta estúpida atitude se explica analisando as características do sistema nervoso dos indivíduos da espécie. A tomada de decisões de todos os sete bilhões de seres humanos é feita por parte especializada do cérebro que avalia a todo instante o estado atual do corpo comparado com toda sua história prévia. Atualmente, a ingestão de alimentos é a maior da história da humanidade e a obesidade é um problema maior no mundo do que a fome. Além disso, não tem mais nenhum ser humano vivo que tenha testemunhado a grande mudança climática de dez mil anos atrás. A história prévia na memória de todos os cérebros vivos não registra aquele sofrimento. Ao contrário, os sistemas nervosos percebem uma grande abundância de recursos energéticos e diminuição do sofrimento nunca antes registrado. Os indivíduos da espécie humana acreditam piamente que as condições climáticas nunca mudaram, que o nível dos oceanos nunca foi outro, que a agricultura e a vida nas cidades melhoraram as condições de vida e que a ciência vai descobrir soluções para qualquer problema futuro, mas nada disso é fato.
Para o capitalismo, é muito importante que a humanidade continue alienada e ignorante das possíveis conseqüências de seu modo de vida ambientalmente irresponsável. O capitalismo tomou vida própria e luta para sobreviver, como qualquer outro ser vivo. Sua estratégia para sobrevivência se baseia num tripé alienante: produção, família e esporte. A produção é o pilar mais conhecido de sustentação do sistema. Serve para o crescimento do organismo capitalismo, seu lucro. O segundo pilar é a família. O Capitalismo estimula a formação e a continuidade das famílias. A TV martela das três da tarde até as nove da noite, com uma novela atrás da outra, sobre a importância da manutenção da família. A razão é biológica: os mamíferos com prole não gastam recursos energéticos para atacar, só se defender. Desta forma, obtém-se o controle das forças de produção da forma mais energeticamente econômica. O último, mas não menos importante pilar, é o esporte. Ele serve para ensinar os Homo Urbis a se resignar, ser somente mais uma célula fisiológica do ser vivo maior, o capitalismo. A mensagem a ser aprendida com o esporte é que todos os indivíduos devem competir entre si, obedecer todas as regras, respeitar as autoridades, se resignar em ser um perdedor, não propor união, cooperação ou outra sociedade que não a competitiva e acreditar que ela é a melhor. Todos são induzidos a competir lealmente, sabendo de antemão que só alguns poucos vão vencer e, claro, todos têm que se resignar e acreditar que isso é bom, justo e até altruísta. O tripé de sustentação do capitalismo funciona muito bem como instrumento de alienação e culpabilização do indivíduo. Se alguém não produz o suficiente, não tem uma família feliz, não for vitorioso nos esportes, enfim, não se der bem na vida, a culpa é sempre do individuo. A culpa da exclusão é sempre do excluído. É a pedagogia da resignação: ensina-se que a culpa é do indivíduo, que não se esforçou o suficiente, nunca do sistema. É muito importante que todos os Homo Urbis amem a família, os esportes e o crescimento econômico para que jamais culpem o sistema e se voltem contra ele.

O Fantasma da insustentabilidade ainda não se materializou, mas já é visível a olho nu. Mesmo tendo conseguido transformar todas as manifestações culturais numa competição excludente, do carnaval ao soletrando, do concurso público ao concurso de beleza, do vestibular a competição de cães de artistas no Faustão, o capitalismo esta perdendo para si mesmo no seu próprio jogo. Até a lógica neoliberal de estado mínimo acabou. Chegamos ao ponto de ruptura do modelo de desenvolvimento capitalista. Todas as nações do mundo já tiveram que intervir pesadamente doando dinheiro a bancos e fábricas. As estatizações ou intervenções do estado, o estado máximo, se tornaram comuns. No Brasil, indo contra todos os indicadores ambientais e urbanos, Lula isentou de IPI as montadoras de automóveis e eletrodomésticos numa tentativa desesperada para que não quebrassem. Todas estas medidas em detrimento da classe operária. Mas a derrocada do capitalismo segue inevitável. Somente um adolescente acreditaria em sua vida eterna. Os oprimidos do mundo estão diante de uma oportunidade maravilhosa. Um momento histórico de transição, uma oportunidade de construir uma sociedade ganha-ganha diante do colapso da sociedade ganha-perde. Uma sociedade comunista, sem competição, sem esportes, sem família nuclear, sem propriedade privada, sem cidades insustentáveis. A classe trabalhadora vai deixar de ser classe, não porque venceu a luta de classes, mas porque não vai haver mais diferença de classes. Dinheiro, bens, propriedades e títulos, os valores da modernidade, não terão mais valor. Os Seres Humanos passarão a valorizar água limpa, contato com a natureza, silêncio e conhecimento, os valores da pós-modernidade. O envolvimento com a natureza vai ser resgatado e a produção voltará a ser de subsistência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário