quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

 A competição da eleição

Foi na cidade de Atenas na Grécia antiga que inventaram a democracia. A palavra vem de “demos”, que significa povo, e “kratos”, que significa poder. Ou seja, o poder emanava do povo. Qualquer cidadão podia propor problemas para debate e todos votavam na melhor solução exposta, aquela com a maioria dos votos ganhava. Ou seja, se realizava uma competição de ideias. O proponente falava em voz alta, no meio da plateia, o problema e sua proposta de solução, outras pessoas poderiam oferecer soluções alternativas àquela, no entanto, a decisão eleita como a melhor pela maioria era soberana e obrigatoriamente seguida por todos. Claro que, naquele tempo, esse sistema de tomada de decisão para o funcionamento da “polis”, cidade em grego, era muito embrionário e cheio de erros grosseiros aos olhos de hoje. Mulheres e pessoas escravizadas, por exemplo, não eram considerados gente, eram objetos negociáveis e sem direitos, como casas ou carretas, portanto, não faziam parte do povo e não tinham direito a falar ou votar na “ágora”, palavra que significa reunião ou assembleia. Somente uma pequena elite dominante, os homens livres nascidos na cidade, podia participar do processo. Isso significava menos de 10% da população, era um sistema aristocrático. Absolutamente qualquer assunto poderia ser colocado em votação por qualquer eleitor, inclusive assuntos estapafúrdios como qual o melhor tempero para salada da próxima festa na casa do Jorginho, qual atleta de arremesso de disco deveria ser o representante da cidade nos jogos olímpicos ou se o Vanderlei era mesmo o melhor flautista da cidade. Sim, eram nesse nível os assuntos propostos pelos eleitores atenienses. Um assunto, por mais idiota que fosse, poderia se tornar público e digno de apreciação por toda polis se proposto como tema de debate na ágora. Mas, perceba que dificilmente alguma pauta do interesse dos dominados seria colocada em debate, os dominantes é que determinavam o que seria apreciado nas assembleias. Naturalmente, esse sistema tinha críticos. Platão, o grande filósofo, talvez seja o mais conhecido deles. Na hora de defesa de seus pontos de vista, Platão não tinha a mesma eloquência de outros oradores e perdia no gogó, era um notório derrotado nas votações. Toda sua obra, de certa forma, é um grande deboche a democracia. Ele acreditava que os eleitores eram muito ignorantes e facilmente enganados por retóricas apelativas para o senso comum. Se algum bom orador surgisse com uma polêmica na hora das votações, ainda que falsa, a ágora se inflamava e votava contra propostas mais sensatas e em favor do polemizador. Bons oradores eram contratados por muito dinheiro por quem queria ver sua proposta eleita e obedecida por todos. O principal personagem dos diálogos de Platão era Sócrates, um homem muito feio, pobre e fedorento, que andava descalço e maltrapilho, mas que questionava inteligentemente os mais famosos e bem pagos oradores da ágora, os colocando questões constrangedoras que não sabiam responder. Platão queria provar, que mesmo os maiores vencedores de votações na ágora, eram ignorantes em assuntos pertinentes. Junto da democracia, surgiu a indústria da manipulação do povo. Mesmo com todos esses poréns, a ideia de democracia, onde cada pessoa valia um voto, era uma grande evolução diante de outras formas ancestrais para tomada de decisões existentes até então. A regra mais comum da época era que o poder vinha de um chefe tirano, filho do antigo chefe já morto. O poder costumava ser hereditário.  

Qual seria o sexo dos anjos? O debate sobre essa questão tomava o tempo de grande parte da intelectualidade europeia durante a idade média, mas hoje em dia não tem mais tanta importância, sumiu da pauta das decisões a serem tomadas, pois era um falso debate, sobre coisas irrelevantes. Algumas outras perguntas clássicas que pareciam já ter sido respondidas pela humanidade ensaiam uma volta: a Terra é plana? As ideias humanas vão evoluindo, nem sempre em direção a sensatez. Quando criança, visitei com a escola o Palácio Piratini e o Museu Júlio de Castilhos na rua Duque de Caxias em Porto Alegre. Na garagem do museu, havia uma carruagem em que o cocheiro ia sentado logo atrás dos cavalos, numa tábua no lado de fora, já o privilegiado passageiro ia abrigado dos humores climáticos numa cabine com janelas e portas envidraçadas, com cortininhas e bancos estofados em couro. Li na plaquinha explicativa que se tratava de um “landau” de uso exclusivo do próprio Júlio, então presidente do estado. O landau me impressionou, na época admirava muito um carro produzido pela Ford que tinha exatamente esse nome, cinco vezes mais caro que a Brasília amarela de meu pai. Entendi o significado daquilo, ter um landau era um privilégio de poucos, veículo digno de finos aristocratas, obviamente isolados fisicamente da plebe rude que tomava chuva na cabeça. No entanto, um Ford Landau era mesmo um grande avanço para uma sociedade melhor em relação àquele de Júlio. Era um veículo muito mais rápido, não exigia maus-tratos aos animais, não defecava ou urinava nas ruas, não fedia a suor, não sapateava cascos ferrados em pedras de granito do calçamento sendo muito mais silencioso, além de ser uma grande concessão da elite dominante com o condutor, um avanço social, pois o motorista ia dentro da cabine e também usufruía dos seus confortáveis bancos em couro, telhado, janela envidraçada e até ar-condicionado. Na minha cabeça de criança, os problemas humanos estavam todos equacionados com aquele carro. Felizmente, há muitos anos a Ford tirou o Landau da linha de produção porque consumia gasolina como uma plataforma de petróleo em chamas, era muito inseguro em caso de acidente, além de que aristocratas com motorista começaram a ficar mais raros e politicamente incorretos. As inquietações humanas mudam conforme avançam as técnicas e as dinâmicas sociais. Discussões sobre o sexo dos anjos foram soterradas para dar lugar a debates sobre direitos humanos e trabalhistas, preocupações ambientais ou até mesmo direitos dos animais.

No tempo em que os landaus de Júlio de Castilhos eram feitos por marceneiros habilidosos, não existiam cintos de segurança para os passageiros do veículo. Já quando a Ford produzia os seus em série, cintos de segurança começaram a ser oferecidos como opcionais que encareciam os carros, muita gente os dispensava na hora da compra, pois não havia legislação para punir que não os usava. Hoje em dia, temos um alarme se os cintos de segurança obrigatórios não estão afivelados mesmo num carro popular. Além deles, existem muitos outros sistemas eletrônicos de segurança que foram sendo desenvolvidos, como airbags ou freios ABS, todos para proteger os passageiros dos erros dos próprios motoristas ou de outros veículos. São todos recursos obrigatórios, não se vende mais automóveis sem eles, pois as estatísticas provam que para sociedade sai mais barato pagá-los na fabricação dos veículos do que arcar com despesas médicas depois. A história provou que os mecanismos de segurança são necessários para proteger as vidas da própria estupidez humana. Futuramente riremos da segurança dos carros atuais, assim como achamos engraçado a fragilidade da tábua em que sentava o cocheiro no landau de Júlio. A brutalidade da diferença social que aquele assento denuncia, também será destacada como absurda. No entanto, se questões sobre a obrigatoriedade dos acessórios de segurança fossem colocadas para o povo decidir numa eleição, muito provavelmente decidiriam por carros mais baratos e sem tais equipamentos, também não veriam problemas em o motorista ir na chuva, desde que a cabine do dono fosse protegida da intempérie. O eleitor médio não tem os conhecimentos necessários para saber da magnitude da importância coletiva dos acessórios de segurança. Enquanto foram opcionais, airbags e freios ABS foram sempre preteridos em favor de carros mais baratos.

Já está claro, para quem pensa o setor, que os automóveis não poderão ser guiados por seres humanos, essa mudança já está em curso, porque errar é humano. Os carros autônomos já estão sendo desenvolvidos com sucesso, as máquinas podem ser projetadas para conduzir o veículo com muito mais segurança: um computador não sente sono, não bebe, não se distrai, não se irrita, não se apressa, não se perde, não sente raiva, não tenta se vingar de uma fechada no trânsito, não esquece a necessidade de manutenção, não acende um cigarro, não precisa olhar para trocar uma música na playlist e não para na beira da estrada para um xixi. Essa ideia de um computador nos guiar por aí parece bizarra agora, mas pense bem: atualmente, ninguém refaz no papel as contas que uma calculadora eletrônica realiza para ver se realmente estão certas. Já confiamos cegamente no resultado apresentado no visor da máquina. Ninguém mais escreve uma carta, põe num envelope e posta no correio. Mandamos mensagens eletrônicas e confiamos que quem responde realmente é nosso interlocutor humano, o computador não está inventando as respostas. Médicos tomam decisões observando exames feitos por máquinas que nem precisam entrar nos nossos corpos para diagnosticar problemas de saúde. Falta pouco tempo para o próprio médico ser substituído por uma máquina, como nos alerta o historiador israelense Yuval Noah Harari, pois as máquinas também podem aprender a observar padrões nos exames. Aliás, poderão fazer isso com muito mais precisão que um falível ser humano.

Mesmo Platão, pensador genial que ainda é estudado 2500 anos depois de sua morte, não via problema em mulheres serem excluídas das votações ou a existência de pessoas escravizadas. Em nenhum momento, ele propôs mudanças sociais no sentido da inclusão desses dominados no processo decisório da ágora. Ao contrário, ele defendia que assim seria o certo para a ordem cósmica funcionar direito. Por fazer parte da elite dominante, jamais lhe ocorreria propor o fim desses absurdos morais. Se você não sente algum desconforto nas relações sociais, obviamente não é um dominado, nunca proporá mudanças. Porque? A vida está boa para você, já que é um dominante. Mas, vamos fazer um exercício mental imaginando que Platão ou algum outro cidadão ateniense propusesse a inclusão das mulheres e escravizados. A proposta não seria nem colocada em debate, pois o organizador da pauta do dia na ágora não permitiria. E, ainda que tal proposta fosse colocada em votação, perderia de goleada. Por quê? Ora, basicamente porque seria como perguntar: Você quer ter igualdade de direitos com seus dominados? Você quer deixar de ser dominante? Não, seria a resposta óbvia. Mas essa pergunta jamais foi formulada por qualquer grego e os privilégios se perpetuaram através dos séculos. Platão só era contra a democracia porque percebia que o sistema colocava a responsabilidade da decisão do que é melhor para a polis nas mãos de pessoas que não eram preparadas para tal, ignorantes. Aí está o que é a democracia.

Demorou 2500 anos, desde a criação desse sistema decisório, para a escravidão entrar em pauta e ser finalmente reconhecida como abjeta, mais tempo ainda para que pessoas pobres e sem posses pudessem votar e as mulheres foram as últimas a entrar no sistema como eleitoras aptas. No Brasil, somente em 1932, mulheres adquiriram o direito ao sufrágio depois de muita luta, porém, somente com o consentimento por escrito de seus pais ou maridos. Aparentemente, agora que os dominados estão incluídos no sistema e podem propor pautas para apreciação pública, o sistema está perfeito. Esse pensamento está tão equivocado como minha crença infantil que o Ford Landau equacionou os problemas sociais ao oferecer abrigo ao motorista ou que tenha resolvido os problemas de poluição tirando bosta e xixi de cavalo das ruas. Os eleitores ainda se inflamam na hora das eleições com falsas polêmicas, os temas pautados para apreciação nas assembleias muitas vezes não são relevantes, e, principalmente, a manipulação das opiniões grassa. Na eleição para presidente de 2018, Jair Bolsonaro, militar aposentado aos 33 anos por problemas mentais, era sem dúvida o menos preparado dos candidatos, ele mesmo admitia sua ignorância em relação a assuntos importantes como economia e relações internacionais durante a campanha. Mesmo assim foi para o segundo turno contra Fernando Haddad, mestre em economia e doutor em filosofia. Bolsonaro ganhou as eleições basicamente assustando o eleitorado dizendo que se Haddad fosse eleito, kits gay seriam distribuídos nas escolas para que as crianças virassem homossexuais e mamadeiras de piroca seriam distribuídas nas creches para que os bebês já fossem se iniciando sexualmente. Apesar de patéticas, essas alegações pautaram o debate da população e foram decisivas no resultado do pleito. Em outro caso conhecido, Manuela D’Ávila liderava as pesquisas para prefeito de Porto Alegre, mas, nas últimas semanas antes da eleição, brotaram boatos de que ela ofereceria carne de cachorro para a alimentação das crianças nas escolas e transformaria a cidade numa Venezuela. Assustada, a população votou no outro candidato, Sebastião Melo, tido como menos preparado pela imprensa local. Por mais que os boatos sejam uma galhofa ridícula, o povo não consegue distinguir o que é verdade do que é invenção. Não que o povo seja incapaz para decidir, mas sim porque ignora as verdadeiras propostas de cada candidato e suas consequências. Por mais que haja tempo para campanha, o eleitor médio está ocupado demais com seus afazeres para prestar a atenção devida ao debate. João, que trabalha no posto de gasolina, chega em casa exausto e não quer refletir sobre educação das crianças que ele nem tem. Maria, que sustenta sozinha seus dois filhos fazendo faxinas, ao chegar em casa ainda tem que preparar a janta para a família, nem tem tempo para pensar nas relações internacionais. Agora quem vota não são aristocratas que não trabalham e podem dedicar algum tempo para refletir sobre os destinos da polis. As demandas são tão diversas, que atualmente a democracia não é mais direta, mas sim representativa. Elegemos pessoas que pensam parecido e delegamos a elas o direito de decidir por nós, inclusive pagando salários para que se dediquem a isso. Ninguém que trabalha quer ficar refletindo sobre profundas questões econômicas, sociais, ambientais ou políticas, a reflexão pode se tornar filosoficamente exaustiva. Além disso, a população atual de eleitores aptos a votar em algumas cidades e países é tão maior que na antiga Atenas, que é impossível reunir todos em assembleia. Assim as possibilidades de manipulação aumentaram muito. Polemizadores com eloquentes discursos, exatamente como aqueles da ágora, são eleitos representantes. Depois de 2500 anos, o sistema não evoluiu muito, Platão diria que está até pior: aumentou a massa de ignorantes manipuláveis aptos a votar.

O grande problema de uma eleição é que se trata de uma competição. O sistema não prevê a construção de um consenso, mas sim a derrota de muitas propostas em favor de uma. A previsão de um segundo turno agudiza a competição, proporciona terreno fértil para conchavos de toda ordem e uma grande polarização ideológica. O sistema como está desenhado atualmente desenvolve e aduba o ódio na sociedade. Esse problema, ao longo dos séculos, só vem aumentando. Os esportes são uma grande ferramenta da elite dominante para se perpetuar no poder, solidificam no imaginário popular a justiça do sistema: é normal que muitos saiam derrotados e somente um seja vencedor. Não é por acaso que os esportes tenham papel tão importante na sociedade atual. Servem para ensinar a lei da selva ao povo: o melhor vence. O resto que resigne-se a derrota. Perceba que os dominantes de determinada modalidade são sempre os mesmos. Como exemplo, examinemos as regras dos campeonatos de futebol no Brasil. Os times da série A do brasileirão são quase sempre os mesmos. A regra determina que somente quatro dos vinte times cairão para segunda divisão no ano seguinte. Coincidentemente serão os quatro que geralmente retornam a primeira divisão depois de uma rápida punição de um ano. A estabilidade dos participantes da série A é notável. Dominante não quer deixar de ser dominante, portanto cria regras para que se perpetuem no poder. Há um belo discurso, que as regras são justas, que qualquer time do Brasil pode participar por seus méritos, mas a realidade é diferente do discurso. Os times que estão próximos ao grande manancial de dinheiro da série A são sempre os mesmos e isso proporciona comprar os melhores jogadores para que obtenham melhores resultados. É um circulo vicioso planejado para parecer justo. O povo cai direitinho nessa conversa manipuladora de eloquentes oradores que ganham farto tempo para discursar em todas as mídias possíveis. O próprio fato de os jogadores serem negociados como coisas, são “comprados”, já denuncia a perversidade corrupta da atividade. Mas o povo não só está acostumado com isso e aceita como justo como aplaude em pé e até colabora com dinheiro para que as coisas fiquem como estão.

O povo é dominado e facilmente manipulável pela elite, pois não tem tempo para filosofar sobre coisas reais. As mídias enchem as cabeças da população com debates intermináveis sobre questões absolutamente irrelevantes: a falta foi dentro ou fora da área, o Grêmio deveria escalar o Joelson no lugar do Bita? O novo técnico do Inter vai conseguir reverter a situação ruim no campeonato? Programas esportivos são colocados nos horários nobres, coincidente com a folga da classe trabalhadora, nas noites ou finais de semana. Quem trabalha não pode ficar gastando energia em reflexão em coisas pertinentes se está tão atarefado decidindo questões em falsos debates que preenchem suas mentes. Em todos os telejornais, jornais impressos, programas de rádio, sites de notícias, os espaços para o esporte são fartos. Se você notar, no início de uma transmissão de um evento esportivo, o narrador sempre faz questão de dizer que aquela é uma partida “muito importante”. No entanto, uma análise fria revela que qualquer partida só tem importância para a elite dominante ir passando a boiada por gerações enquanto João e Maria são distraídos para refletir sobre futebol ou outro esporte qualquer. Antônio Carlos Magalhães herdou o poder na Bahia e ficou nele até a morte quando cedeu o cetro para seu neto. José Sarney, no Maranhão, não larga o osso há 65 anos e seus filhos estão na política também. Os Amin e Borhausen em Santa Catarina. No Brasil inteiro as oligarquias se perpetuam no poder assim como o Flamengo ou o Corinthians no futebol. O poder acaba sendo hereditário, como antes da democracia ser inventada. Apesar de as regras democráticas preverem fim do mandato, os dominantes as criam de forma que se perpetuem no poder com um verniz de acaso ou meritocracia, assim como no futebol. Vereador vira deputado estadual, que vira federal, que vira senador, que se elege prefeito, depois governador e então tenta a presidência e lá se foram sessenta anos e seus filhos já são deputados. História comum que a regra permite. Nos Estados Unidos, mais de uma vez o mais votado não foi o eleito. Hillary Clinton foi a mais votada quando Trump se elegeu, porque a regra das eleições foi escrita de forma bizarra para garantir que sempre os mesmos oligarcas ficarão no poder. Em Osório, a mesma coisa. O sétimo vereador mais votado nas últimas eleições foi uma mulher negra, mas ela não se elegeu, porque a regra maquiavelicamente é desenhada para que os mesmos de sempre estejam na câmara. Somente homens brancos ocuparam as nove vagas. João e Maria são barbaramente manipulados a acreditar que as coisas só podem ser assim, já que sempre foram. Os próprios dominados, incrível fenômeno antropológico, seguem votando para ser governados pelos mesmos dominantes de sempre.

Platão admitia que a democracia pudesse funcionar somente se os eleitores passassem por uma escola de filosofia política, ética e cidadania. Ele argumentava, através de seu alter ego Sócrates, que ninguém quer uma pessoa ignorante no comando de um navio. Para que o navio chegue ao seu destino em segurança, é bom que o capitão seja uma pessoa instruída em navegação. A analogia é boa: Quem decide os destinos de uma cidade tem que ser uma pessoa especializada em administração pública, não qualquer um. Aqui no Brasil, de dois em dois anos temos um pleito em que qualquer um tem que decidir qual a melhor proposta para governar a cidade, o estado, o país, mas esse qualquer um não tem a menor ideia de qual seria a melhor e muitas vezes erra elegendo aberrações como o palhaço Tiririca ou o goleiro Danrlei como representantes. Quando o voto era por escrito, o rinoceronte Cacareco teve quase cem mil votos para vereador em São Paulo em 1959. Sério. Claro que a democracia com a qual Platão lidava no cotidiano e planejava para o futuro era como aqueles landaus de madeira de Júlio de Castilhos, onde os servos vão segregados dos aristocratas. Ele nem teve a oportunidade de conviver com democracias Ford Landau em que o motorista tem direito a usufruir dos mesmos confortos do patrão e mulheres e empregados votam, mas gastam muita energia. A democracia evolui, assim como os veículos de transporte de passageiros. Platão não podia imaginar, com as técnicas que existiam então, uma democracia autônoma, cheia de equipamentos de segurança, um algoritmo cibernético de decisão da polis que protege os cidadãos de seus próprios erros. Atualmente a técnica pode produzir um super computador que decida sem a necessidade de uma fratricida competição eleitoral. Basta programá-lo com as leis da robótica de Asimov e alimentá-lo com os dados do local. As instruções do programa são que as riquezas produzidas pela coletividade tem que garantir igualdade de acesso a casa, alimentação, educação, saúde, transporte, segurança, sossego, preservação da natureza e demais necessidades para todos e o excedente ser investido em demandas de ocasião do povo. Uma máquina assim instruída gerenciaria com tranquilidade a sociedade, não haveria pobreza, diferença social, acabariam os privilégios e a criminalidade seria quase zero. A máquina não se corrompe, não tem amigos ou parentes que queira beneficiar, não dorme, não cansa, não tem vícios nem ambições, não se inflamava com assuntos estapafúrdios. Numa situação como a da atual pandemia, que para um ser humano é difícil de lidar, pois nunca viveu, a regra da programação protegeria a coletividade em favor de apetites individuais, a vacinação seria obrigatória para todos por que a doença ameaça a coletividade. As máquinas sempre foram ótimas para resolver problemas mundanos com muito mais eficiência e rapidez que nossos melhores esforços. Qual ferramenta você prefere para cavar uma vala de um metro de fundura e vinte metros de comprimento: uma pá ou uma retroescavadeira? Big data é o futuro das cidades, sem competições, sem eleições, sem dominantes nem dominados. Lembrei agora da música Imagine de John Lennon, filósofo que morreu há quarenta anos, não da República de Platão, que morreu a 25 séculos.

 Imagine

Imagine que não existe paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum inferno sob nós
Acima de nós apenas o céu
Imagine todas as pessoas
Vivendo o presente

Imagine que não há países
Não é difícil de fazer
Nada por que matar ou morrer
E nenhuma religião também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz

Você pode dizer que sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Torço pra que um dia você se junte a nós
E o mundo viverá como um só

Imagine que não existam propriedades
Será que você consegue?
Sem ganância ou fome
Uma fraternidade do Homem
Imagine todas as pessoas
Compartilhando o mundo inteiro

Você pode dizer que sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Torço pra que um dia você se junte a nós
E o mundo viverá como um só


  • 1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
  • 2ª Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que entrem em conflito com a Primeira Lei.
  • 3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.
  • Mais tarde Asimov acrescentou a “Lei Zero”, acima de todas as outras: um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.