segunda-feira, 8 de junho de 2015

Da pertinência dos Jogos Escolares de Osório
Quem hoje, em 2015, assiste o longa metragem “Tropeiro Velho”, de 1979, do cantor, compositor e cineasta Teixerinha, totalmente rodado na cidade de Osório, se choca. O filme é uma mostra franca de várias mazelas sociais comuns à época e ainda existentes, mas agora de forma escondida e não orgulhosamente explicitada em produções cinematográficas comerciais. O processo civilizador destes 36 anos, fez com que o racismo, a violência contra mulheres, os maus tratos aos animais, o consumo de drogas como o tabaco e o álcool e até o trabalho escravo de algumas cenas não acabassem, mas pelo menos não fossem mais admitidos como normais e até usados como motivo de chacota ou piada. A película toda é permeada de situações que hoje seriam no mínimo reprovadas pela moral do imaginário popular ou mesmo proibidas por lei.
A democracia é uma conquista recente na sociedade brasileira e não era vigente na época das filmagens de Tropeiro Velho. Nas ditaduras os oprimidos não podem se manifestar. A longa e dolorosa luta dos excluídos conquistou a duras penas que cada indivíduo valesse um voto e fosse igual a todos perante a lei. Todos somos iguais em direitos e deveres e incluídos na sociedade a não ser, claro, quando se trata de competições. A competição, numa economia capitalista, excluí despudoradamente grande parte da população e privilegia alguns poucos escolhidos. Os exemplos são abundantes: Poucos andam de Mercedes Benz e muitos andam de ônibus ou bicicleta. Poucos comem no restaurante Santa Helena e muitos comem em escola pública. Não estou dizendo que a comida das escolas é ruim ou andar de bicicleta faz mal. Estou chamando a atenção para a brutal diferença social tolerada pelas massas.
Foi a partir da filosofia cristã, que rompia com uma democracia aristocrática grega, onde só os homens livres votavam, que a humanidade passou a compreender a igualdade entre todos como sendo mais moralmente virtuosa e justa. As revoluções francesa e americana do século XVIII, entre outras, abraçaram esta filosofia e a tornaram política de estado, disseminando pelo mundo os ideais de fraternidade, igualdade e liberdade. Mesmo assim, a aceitação pela elite opressora desta nova ordem social demorou muito. No Brasil, os negros só foram libertos dos grilhões por lei um século mais tarde, em 1888, e as mulheres só tiveram o direito ao voto em 1932. No filme de Teixerinha, de 1979, passados mais de duzentos anos das primeiras revoltas, fica evidente que essas coisas - trabalho escravo, racismo e sufrágio feminino - ainda não estavam de fato em prática nos grotões do país. Mesmo hoje em dia, 2015, as práticas cruéis contra animais retratadas no cinema ainda são orgulhosamente ostentadas como valores positivos da “Cultura Gaúcha”, inclusive na cidade de Osório que acaba de encerrar um grande evento chamado de “Rodeio”, sem constrangimento nenhum.
Quando o Iluminismo e suas revoluções começaram a tirar de Deus os poderes de controle social, as elites buscaram formas de se manter no poder. E, juntamente com a publicação de “A Origem das Espécies” de Charles Darwin em meados do século XIX, que enterrava definitivamente a ideia de um deus controlador e uma elite natural, começaram a ser criados todos os esportes modernos, inclusive resgatando os jogos de guerra gregos, as olímpiadas. Os esportes foram o modo encontrado pelas elites de continuar a promover a exclusão e o controle social de uma forma muito sutil e com a aceitação das massas. Didaticamente, os mesmos opressores de sempre começaram a ensinar que competir é importante, mas vencer não é fundamental. Perder é tão honrado quanto ganhar, Espertamente, construíram podiuns onde não cabem mais de três e assim mesmo com degraus hierárquicos onde somente um fica em primeiro. No imaginário popular da época uma coisa muito plausível. Se em duzentos anos e com acesso a internet nós ainda fazemos rodeios, é natural que naquele tempo de iletrados se aceitasse que uns fossem melhores e ainda fossem premiados com medalhas por terem derrotado outros não tão aptos. Em substituição as grandes catedrais, prova arquitetônica do poder moral de Deus, grandes estádios, prova arquitetônica do poder moral da competição, começaram a ser erguidos.
Nos Jogos Escolares de Osório que agora se encerra, uma rotina de exclusão se perpetuou. Uma “seleção” prévia com os melhores de cada escola foi feita. Somente uma fração dos estudantes foi participar da atividade. Aqueles que foram selecionados logo perceberam que a história toda era um engodo, porque foram excluídos durante a competição. Se aceitarmos que os “vencedores” o são por esforço próprio, por mérito, temos que aceitar que os perdedores também o merecem ser. Por mais discursos que se façam que as oportunidades foram iguais para todos (discurso capitalista por excelência), as crianças saem cabisbaixas ou irritadas, umas culpando as outras de seu fracasso. Ardilosamente, a aristocracia encontrou uma forma de se manter viva na sociedade e destruir qualquer união entre os desfavorecidos os colocando uns contra os outros num jogo. Não há como negar que os esportes são excludentes, mesmo se mil crianças participarem de uma corrida, somente três subirão ao podium. A atividade foi projetada para descobrir quem é o privilegiado natural e flagrantemente desdenha da igualdade e fraternidade cristãs. O discurso oficial prega que ainda sobra a liberdade: você é livre para treinar e participar se quiser. Claro, todas as crianças querem participar, porque, já nos ensinava Paulo Freire: “Quando a Educação não é libertadora, o sonho de todo oprimido é se tornar opressor.” Quem participa de uma luta quer bater, não apanhar. A possibilidade de poder bater é excitante, mesmo quando dentro de regras “justas”. Os professores de Educação Física promovem lutas!!!
O que ensinamos para esses alunos? Que competir é justo e até importante. Que a vida é assim, temos que aprender a perder assim como a ganhar. Que temos que obedecer autoridades e não questionar as regras. Que estamos sempre treinando para a vida competitiva, que teremos vestibulares, concursos, seleções de emprego. Que a vida é uma luta. Este é o texto de um perdedor, argumentarão os vencedores. Minhas alunas do basquete perderam de quarenta e quatro (sim, 44) a zero. Meus alunos do futsal perderam de oito a um. Sem dúvida, eu ficarei do lado dos perdedores sempre. Foi unindo perdedores que não sobem no podium que conquistamos tanto. Oprimidos unidos mudamos o mundo. Será que queremos uma sociedade de “tropeiros velhos”? Com cigarros, cachaça, chicotes, negros ignorantes na cozinha, mulheres submissas e sofrendo violência? Ou será que devemos repensar nossa educação para construir uma sociedade melhor? Os Jogos Escolares foram uma celebração da exclusão, massacres estavam autorizados se dentro das regras. De Texeirinha para cá evoluímos muito, mas acredito que em mais 36 anos olharemos para trás e nos chocaremos com os Jogos Escolares: Nossa, nós botávamos as crianças a competir!!!
Tiago de Moraes Alfonsin, Professor de Educação Física da Escola Osmany Martins Véras