quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

 

O senador Chico Rodrigues, do Democratas de Roraima, vice líder do governo e integrante do centrão, foi preso em sua própria casa. Na hora do flagrante policial, era bem cedo da manhã, tentou esconder trinta e seis mil reais em novas notas de duzentos no sulco interglúteo. Resolvi fazer uma compilação das brincadeiras que fizeram na época.

Apesar de tanto dinheiro guardado no cofrinho, o senador alegou que não tinha feito nádegas de ilegal. Aos policiais, ficou óbvia a cUrrupção, não é normal a pessoa ter grana na poupança em casa ou mesmo nos fundos de investimento dos Países Baixos. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro disse que estavam injustamente querendo socar os 30 paus nas hemorroidas do parlamentar. O deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL do Rio de Janeiro, disse que a notícia era um desbunde, estava explicada a escolha da cor das notas, seria para disfarçar as fezes. O colega senador Flávio Bolsonaro disse que, apesar de o dinheiro estar na posição, Chico é macho e não era rachadinha. O ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, disse que não via problema algum, afinal, o lobo guará é nativo da caatinga. A deputada Gleise Hoffmann, presidenta do Partido dos Trabalhadores, improvisou um samba-canção no plenário da câmara:

Dinheiro na bunda é vendaval, é vendaval

Na bunda de um senador, um senador

O pior foi ver a grana, pobre da grana, toda cheia de cocô

Tava tudo ali atrás, quase não cabia mais, no fundilho do rapaz

Num baita fedor...

 

sábado, 23 de janeiro de 2021

 

Sobre o meio social

Trabalho numa escola pública de um bairro afastado do centro de Osório, Atlântida Sul. É um lindo bairro, todo planejado, a beira mar, onde antes só havia dunas. Uma construtora comprou o terreno, terraplanou toda área, calçou ruas, fez praças com pista de skate, parquinho e campinho de futebol, plantou árvores, construiu escola, posto de saúde, estação de bombeamento de água, subprefeitura e loteou toda a propriedade. O preço dos terrenos dependia da proximidade do mar, quanto mais perto da praia, mais caros ficavam. Aqueles que da janela da casa poderiam ver as ondas quebrando, eram caríssimos, para magnatas. Já aqueles bem afastados, próximo à estrada, eram bem mais baratos. Imagino que o empreendedor teve a intenção de atrair uma classe média baixa que poderia trabalhar nos serviços oferecidos aos ricos. Sim, a diferença social é planejada. No entanto, o que não foi planejado, mesmo com essa facilitação para os mais pobres poderem também usufruir dos confortos de um bairro arquitetado por urbanistas, foi a ocupação dos terrenos baldios das cercanias por miseráveis. Todo um novo bairro de ocupação aleatória e caótica, horrível, apelidado de Vila Verde, foi surgindo para se alimentar das migalhas que caiam das mesas de Atlântida Sul. Sim, a miséria atrapalha os planos dos políticos e empreendedores, a favela enfeia e desvaloriza o lugar. Vila Verde surgiu como cracas que se grudam no iate, por mais que se tente raspar, elas sempre retornam. Não foram poucas as vezes que a Brigada Militar retirou a força algumas famílias para reintegrar a posse de algum ricaço, mas, por falta de opção, a favela ressurge das cinzas. Os seres humanos despossuídos são tratados como inço pelo poder público.

O bairro de Atlântida Sul fica as moscas durante o ano, são raros os verdadeiros moradores, geralmente idosos aposentados. As casas, em esmagadora maioria, são de veraneio para porto-alegrenses com a vida ganha. Os estudantes que preenchem as vagas da nossa escola são os moradores das duas ruas mais distantes do mar e da Vila Verde. Se visitar o bairro num final de semana, dificilmente encontrarei algum aluno, apesar da escola ficar bem no meio do loteamento, eles não moram lá. Uma que outra vez encontro os pais das crianças, cortando gramas, consertando cercas, pintando janelas, ou retirando entulho de alguma obra. Porém, já aconteceu de encontrar alunos, quando isso acontece estão sempre trabalhando também, como seus pais. Crianças de doze ou treze anos, carregando tijolos, puxando carrinhos de materiais recicláveis, ou nas rédeas de carroças cheias de caliça. Um deles, Karnel (nome fictício), menino negro, me disse orgulhoso que era dono do cavalo, mas ainda pagava a carroça que conduzia. Agora eu o entendia, o mais endiabrado da turma já era um pequeno empresário do ramo de transportes. O guri estava muito mais preocupado em garantir a próxima refeição da família, do que aprender o que é mesóclise ou binômio de Newton. A escola é um estorvo na sua vida, um obstáculo para realização de lucros do seu trabalho, uma espécie de cárcere. Os programas de alimentação escolar e bolsa família são obviamente insuficientes. Para a ONU, pobre é quem não escolhe o que come, o que veste ou onde mora. Meus alunos são realmente pobres.

Uma ocasião, conversando com um adolescente negro que reclamava de um “atraque” da polícia onde sofreu uma série de agressões, observei que eu nunca tinha sofrido abordagens semelhantes. Ele, então, me deu uma aula muito esclarecedora sobre história e sociologia brasileira dizendo uma única frase: “Mas, claro! Tu és branco!” A breve conversa com aquele jovem pobre, me conscientizou da posição social que ocupo assim como da dele. No Brasil, ser pobre e preto é crime. Para não ser preso, precisas carregar todos os documentos que tens todo tempo, inclusive carteira de trabalho assinada e notas fiscais dos tênis e das roupas que estás usando. Ao mesmo tempo em que o país criminaliza a existência da pobreza, não permitindo que habitem nem em beiras de estrada ou franjas de subúrbio, explora sua força de trabalho com subempregos extenuantes desde a infância. Os excluídos são sempre marginalizados, e marginalizados não conseguem deixar de ser excluídos. É um circulo vicioso perverso que se perpetua há séculos.

Gosto muito de assistir no YouTube entrevistas e palestras de grandes pensadores. É ainda melhor que lê-los, pois podemos conhecer detalhes de sua trajetória e personalidade que não aparecem no papel. Riem, fazem piada, contam curiosidades que ao escrever omitem. É realmente revelador. O historiador Leandro Karnal é um deles, muitas vezes já o vi defendendo a meritocracia. Faz discursos e mais discurso sobre como os vencedores são aqueles que se esforçam e até cita muitos exemplos, sendo ele mesmo o mais frequente de todos. Conta que é filho de um advogado de São Leopoldo, que frequentou uma escola particular de padres Jesuítas e que sua família tinha uma boa biblioteca em casa e até um piano. Quando perguntam como ele consegue ser tão erudito e ler tanto, debocha: seu grande segredo é que senta e lê. Claro está que Karnal não teve uma vida como a de meus alunos da Vila Verde, como Karnel. Ele, depois da escola, não precisava catar latinhas de alumínio para pagar a prestação da carroça ou alimentar seus irmãos menores. Aparentemente também, seu cérebro não estava preocupado se a Brigada Militar iria expulsá-lo de casa hoje ou amanhã ou se levaria um tiro durante o tiroteio entre as facções rivais do tráfico na favela em que habita. Branco, alto e de olhos bem azuis, duvido que tenha sofrido alguma violência policial que o deixasse com transtorno de estresse pós-traumático. Dia desses, postou uma foto da juventude nas suas redes sociais. O retrato o mostra ainda cabeludo, lendo um livro, confortavelmente deitado na cama de seu quarto, acompanhado de um calmo gatinho. A imagem não tem som, mas a claridade da janela e seu semblante tranquilo me fazem acreditar que ele não tinha vizinhos discutindo ou ouvindo som alto bem ao lado. Realmente, sentar e ler para ele não era na verdade muito difícil, Karnal pôde se concentrar bastante no esforço para ter uma boa formação. Mas, obviamente, somos obrigados a reconhecer que é um privilégio para poucos.

Leandro Karnal é o terceiro de uma família com quatro filhos. Alguém poderia se perguntar: onde estão os outros três irmãos que também usufruíram dos benefícios da educação jesuíta, da biblioteca e do piano em casa, de quartos separados e camas boas em vizinhança tranquila e provavelmente até dos olhos azuis e da tez branca? Porque não são famosos e brilhantes como o irmão do meio? Ora, a família é um fractal menor da sociedade. Dentro das famílias também há excluídos e marginais, é o normal. Abra qualquer livro de psicologia das relações familiares para perceber que em todas as famílias, os padrões de interação na convivência determinam papeis fortemente marcados. A hierarquia familiar é tão opressora e imutável como a social. Inconscientemente, alguns acabam sendo privilegiados por inúmeras razões. Não há culpados nem vítimas dentro das relações familiares, são todos inconscientes de seus papéis sociais, principalmente os opressores. Aquele membro da família que lava a louça, sempre estará ocupado depois das refeições. Aquele que vai a padaria, sempre será o responsável por buscar o pão. Enquanto alguns estão ocupados rachando lenha, outros podem sentar e ler. São sempre os oprimidos da família que procuram ajuda de profissionais da saúde mental para o sofrimento psicológico. Você não verá um opressor da família deitado num divã de um consultório dizendo que para ele a vida está boa, assim como não vê um rico reclamando da diferença social. Quem busca uma mudança do equilíbrio social são os excluídos, os oprimidos, os dominados. Provavelmente, Leandro Karnal foi um privilegiado de sua família assim como foi na sociedade. Mas garanto que se entrevistado, negará seus privilégios e lembrará o esforço que fez para chegar onde chegou.

Se tu, caro leitor, estás pensando que não é assim, na tua família não tem opressores nem oprimidos, o mais provável é que tu sejas o opressor. O opressor não percebe a opressão que exerce. Quem é fachada do prédio familiar não percebe que o alicerce está soterrado e sobrecarregado. Para que cada membro “Leandro Karnal” brilhe, tem muitos outros membros “Karnel” da família que tiveram que dar um suporte para que ele deitasse tranquilo na sua cama para ler. A família é um fractal do corpo humano, o crânio protege o cérebro, os pés sustentam todo peso. Enquanto os neurônios duram uma vida toda, uma célula epitelial da sola do pé não dura uma semana. Cada membro da família exerce seu papel inconscientemente, assim como o coração bate ou o intestino faz seus movimentos peristálticos. E em todas as famílias é igual, por isso é possível estudar como funcionam. Um psiquiatra ouve a anamnese de seu paciente assim como o traumatologista, a única diferença é que a história é mais comprida. Estou assistindo a série “The Crown”, no Netflix, sobre a família real do Reino Unido. A produção se esforça em reproduzir para a plebe a vida na nobreza com fidelidade. Eu mesmo lembro vários episódios retratados: a eleição de Margaret Thatcher, a guerra das Malvinas, o casamento do príncipe Charles, os amantes de Diana e tantos outros momentos marcantes que chegavam até os jornais brasileiros. Os Windsor tem suas entranhas nojentas totalmente expostas, tudo é público. Mesmo naquela família, das mais abastadas do mundo, que se diverte abatendo veados a tiros, redecorando castelos ou dando rolê de Jaguar, impressiona como as relações familiares são absolutamente iguais a qualquer outra. Há oprimidos e opressores, quem brilha e quem é ofuscado, até bode expiatório têm, como qualquer família. Sempre simpatizo, claro, com os oprimidos, com aqueles que vão consultar psiquiatras. Chama a atenção que muitas vezes os indivíduos daquela família multimilionária não escolhem onde moram, nem o que vestem ou o que comem, e nem mesmo com quem devem namorar ou casar! Pelo critério da ONU, são pobres. A família decide qualquer assunto pelos indivíduos, repare que pode existir miséria mesmo no meio daquela opulência real. Incrivelmente, isso é possível quando se trata de psicologia das relações familiares. Pobrezinhos dos irmãos do Karnal.

Somente uma grande crise pode modificar o equilíbrio familiar, modificar os papéis que cada um exerce. Elas são até listadas nos manuais de psicologia: Morte de algum membro, separação do casal, desemprego do provedor, algum oprimido ganha na loteria, revelação de um segredo, nascimento de um novo membro, etc. Coisas dessa natureza abalam as estruturas da família e obriga seus membros a assumir outras funções. De novo, se fizermos uma relação com o fractal do corpo humano, se uma perna é amputada, outros membros vão ter que cumprir funções daquele que se ausentou. Para a outra perna não ser sobrecarregada, os braços vão ter que passar a usar muletas. Veja que humilhação para o braço, membro que exercia funções mais nobres para a sobrevivência do corpo, passa a ser obrigado a sustentar o peso do corpo como um humilde pé!

Psicologia das relações familiares não é ensinado na escola. Uma pena, evitaria tanto sofrimento inútil. Teoria política sobre sociedade de classes, o fractal maior da família, é ensinado desde o ensino fundamental, mas de forma bem superficial. Os professores de história correm o risco de ser acusados de comunistas e doutrinadores se aprofundarem o assunto. Porém, o conhecimento desse assunto seria outra coisa que faria a felicidade da população aumentar muito. Curioso que algumas matérias bem menos urgentes, como futsal ou vôlei, são ensinados insistentemente desde as séries iniciais. Depois de fazer essas reflexões, alguém deve se perguntar: a quem interessa ensinar coisas inúteis e não ensinar coisas úteis? A resposta é simples e rápida: aos dominantes, aos opressores, aos incluídos. Imagine se algum pai ou mãe opressor recebe em casa uma criança questionando o funcionamento da família. Imagine se algum governante autoritário gostaria de ter uma horda de estudantes excluídos como Karnel questionando o funcionamento da sociedade. Ia ser um reboliço. Na escola se ensina a seguir regras, como no futsal ou na família real, por mais que reproduzam uma sociedade desigual e opressora para muitos. Para cada Karnal, a sociedade excludente necessita que haja dez mil Karnels.

Na atual sociedade, Karnal e Karnel não são nem da mesma espécie. Há muitos pessoas, inclusive muitos governantes, como nosso atual presidente Bolsonaro, que veem os “Karnéis” como um inço a ser combatido e exterminado. Ele já verbalizou publicamente que é a favor das milícias e grupos de extermínio. A polícia atual já está bem perto disso, mas ele quer acelerar o processo. Esse tipo de gente entende que as vilas verdes do país são cracas que devem ser raspadas dos cascos dos iates a beira mar. Basta ver as estatísticas sobre quem morre a bala ou é preso pela polícia no Brasil. É forçoso perceber que são pretos e pobres. A polícia é de classe, defende a elite e ataca os pobres. Torço e luto para que uma nova escola seja planejada, uma que ensine psicologia, sociologia, teoria política e filosofia com a mesma carga horária de matemática e português. Precisamos planejar uma escola que ensine a cooperar, mas não ensine a competir. Se a diferença social é planejada, a igualdade social pode ser também. Uma escola que não ensine a excluir, como nas competições esportivas, mas sim a incluir, como nas hortas comunitárias. Uma que não permita que alguém passe qualquer necessidade, dividindo a riqueza do país com todos. Sonho que podemos planejar uma sociedade onde não haja diferença social escandalosa como a atual. Onde cada um herdasse do país, não de seus pais, uma boa casa e algum trocado para sentar e ler, estudar tranquilo, se formar com calma, viajar e aprender. Já não herdamos coisas muito mais caras? Estradas, pontes, hospitais, escolas, parques, polícia, bombeiros, correios, internet, televisão... Todas coisas herdadas da coletividade, do país, das pessoas que habitava aqui antes mesmo de nascermos, é um patrimônio público. Parece besta, mas o país pode pagar isso, basta distribuir a riqueza entre todos. Mark Zuckemberg tem falado disso, assim como Bill Gates. A humanidade é capaz, acredite e lute por isso.