quinta-feira, 24 de setembro de 2020

 

Lições de um sonho apocalíptico

Uma ocasião, li a entrevista de Francis Ford Coppola, o premiado cineasta americano, célebre por ter dirigido filmes que problematizam e revisam historicamente mazelas sociais como a máfia (O Poderoso Chefão, 1972), a guerra (Apocalypse Now, 1979), a marginalidade (O Selvagem da Motocicleta, 1983) e até mesmo as histórias de terror (Drácula de Bram Stoker, 1992). A conversa passava longe de seus filmes, ele discorria sobre os avanços da democratização do conhecimento através da internet. Numa época que ainda não existiam Facebook ou mesmo YouTube, ele previa que a popularização dos equipamentos conectados a rede poderiam tornar “tudo, acessível a todos, todo tempo”. Aquela frase me impactou muito e, apesar de incrédulo, a levei em consideração seriamente. Acreditei que tal previsão era para um futuro muito distante, mas quando ocorresse realmente, tudo seria maravilhoso, o mundo avançaria muito rápido para uma fraternidade global. Fiquei esperançoso, pois, nos seus filmes, Coppola sempre denunciou que a história é a prova de como a humanidade se transforma num oceano revolto por corrupção, violência e dolorosa agonia, esse filme de terror que estamos tão habituados a vivenciar.

Coppola tem muitos parentes na indústria cinematográfica. Uma filha, uma neta, uma irmã e também um sobrinho, nem todos com o mesmo talento. O sobrinho se chama Nicolas Kim Coppola, mas adotou o nome artístico de Nicolas Cage. O menino teve uma infância difícil, sofreu com família desestruturada: a mãe separada passava muito tempo internada em hospitais psiquiátricos tratando um transtorno bipolar intenso. A carreira como ator reflete isso, Nicolas alterna Oscars com Framboesas de Ouro. Obviamente, em algum momento Cage “encontrou Jesus”, pois muitos de seus filmes são propagandas religiosas disfarçadas. Em “Cidade dos Anjos”, de 1998, Cage vive um anjo que tem a função de levar as almas dos mortos e encaminha-las para reencarnação. Já no filme “Presságio”, de 2009, vive um matemático da melhor instituição de ciência americana que mimetiza a busca de outros grandes pensadores da história como Isaac Newton ou Johannes Kepler. Os dois, físicos revolucionários que dedicaram toda sua vida para decifrar a linguagem de Deus, a matemática. Acreditavam que, por ser perfeita, a ciência dos números era o único elo acessível ao ser humano para falar com Deus. Se bem estudada, poderia descrever o passado e prever o futuro com exatidão. Nesse filme, o protagonista consegue chegar à fórmula para entender Deus. Ainda que não fale uma única vez o nome de sua crença, há uma ideologia religiosa evidente que tenta se mostrar neutra. Cage só sai do armário religioso descaradamente em 2014, no filme “Apocalipse”. Nessa obra, as cores do quadro cristão são ainda mais carregadas, onde o ator vive um adultero pecador arrependido. Aqui, Cage parece assumir finalmente sua ideologia e afinamento com as Testemunhas de Jeová, mas em nenhum momento do filme isso é dito, somente “provado” com os “fatos” retratados no filme depois do arrebatamento previsto por aquela religião.

Passados quase vinte anos de que li aquela entrevista, a profecia de Coppola parece estar muito próxima de se concretizar. Os aparelhos celulares são relativamente baratos e o acesso a internet se popularizou dramaticamente. O conhecimento acumulado pela humanidade realmente está disponível na palma da mão para quem quiser a qualquer momento. Porém, a fraternidade universal que imaginei ainda está muito distante. Os saberes que seriam pertinentes para tal realização humana não são os mais procurados nas páginas da rede. Eu mesmo posso ilustrar o verbete da pesquisa sobre um típico internauta: vagueio a esmo entre testes de motocicletas europeias e gordas nuas. Há muito me indicavam uma série do ciberespaço que acreditavam que apreciaria. Mais de uma pessoa salientava que “Merli” era minha cara! Resisti e esnobei arrogantemente o professor de filosofia catalão, nem cliente de serviços de streaming eu era. Mas, com a pandemia do novo vírus corona, depois de ler “A peste”, de Camus, rachar muita lenha, cozinhar e lavar louça, planejar atividades on line para meus alunos, penei com o tédio e percebi a depressão começar a se enrolar nas minhas pernas devido ao isolamento social. Capitulei, assinei Netflix e assisti um episódio atrás do outro, como um fumante viciado, acendia um no toco do outro. Em pouco tempo, consumi e me emocionei com as três temporadas da série ficando com síndrome de abstinência de aulas de filosofia. Em cada capítulo, o professor Merli ensinava sobre um pensador diferente. A aula que mais me chamou a atenção foi a do inglês Adam Smith, que reflete sobre a competição, assunto que me é muito caro por força do ofício que exerço. Pelo menos na Catalunha, ficou claro para mim, os bons professores de filosofia se empenham em garantir que adolescentes aprendam que competições são abjetas e devem ser combatidas com amor, solidariedade e inclusão, o contrário da lei da selva proposto pela mão invisível da ideologia capitalista.

Logo depois de Merli, passei a varar madrugadas assistindo “Rita”, outra série sobre escolas públicas de países desenvolvidos. Eu que também sou profissional da educação, sadicamente me delicio satisfeito olhando aquela professora dinamarquesa sofrendo com as mesmíssimas dificuldades pelas quais passa um funcionário público subdesenvolvido tupiniquim. Legislações que engessam a ação pedagógica, chefias castradoras, enormes limitações financeiras, colegas de trabalho invejosos e traidores, alunos mal educados, pais absolutamente ignorantes e invasivos, interesses políticos que se sobrepõe as deliberações técnicas, homofobia, racismo, agressões físicas e verbais até contra profissionais, bulling sobre os incomuns, consumo de drogas entre os estudantes, alcoolismo da protagonista, a dificuldade de inclusão dos especiais, assédio sexual, a ansiosa espera pela aposentadoria dos professores mais velhos, famílias desestruturadas e até epidemia de piolhos são retratados com fidelidade. É até reconfortante para um docente brasileiro saber que na Dinamarca, um dos países mais desenvolvidos do mundo, praticamente as mesmas mazelas sociais assolam as instituições de ensino. De novo, o episódio que mais me causou reflexão foi o que debate as competições. Fica claro que há um grande cuidado dos professores para evitar a selvageria na prática dos esportes através das regras impostas aos adolescentes durante os torneios. O personagem principal, a professora Rita, sempre retratada como politicamente incorreta e com um passado familiar terrível, se atira as competições com uma gana feroz e incita seus alunos a massacrar os adversários, contrariando o diretor e sua supervisora. Mas a série evidencia que o cuidado solidário com os menos favorecidos, o contrário do que seria uma competição social, ou o livre mercado, permite a recuperação e reinserção dos socialmente vulneráveis como até mesmo a trajetória da própria professora Rita retrata.

Minha namorada, sabedora de minhas inclinações, me indicou um filme alemão, de 2011, disponível na integra no YouTube e totalmente legendado em português sobre a introdução do futebol na Alemanha em meados do século dezenove cujo título em português é “Lições de Um Sonho”. A obra ilustra bem a educação formal das escolas naquela época e em especial a Educação Física. Ginástica calistênica, castigos físicos, o descarado ensino da guerra como a coisa mais honrada que um cidadão do Império Alemão poderia ansiar viver, nada de mulheres na escola, a firme determinação de excluir os pobres do ensino formal. Mutilados de guerra são trazidos para dentro da sala de aula, palestrando e motivando os adolescentes a entender a nobreza do sacrifício do corpo de um indivíduo em batalha para o bem do coletivo da pátria. Nesse contexto, um jovem professor alemão, mas que viveu três anos na Inglaterra, país inimigo da Alemanha, é contratado experimentalmente para ensinar a língua e a cultura inglesa para os adolescentes. Após a resistência dos alunos em aprender o idioma bretão, pois entendem que logo seria uma língua morta diante do poderio militar alemão, o protagonista ensina o futebol, esporte recém-sistematizado nas ilhas britânicas. Aqui fica tão evidente o posicionamento ideológico do filme quanto no Apocalipse de Nicolas Cage. Há uma clara pregação, quase religiosa, do roteiro, “provando” que os dogmas esportivos são uma panaceia social para integrar as nações e resolver conflitos de forma amistosa e divertida. O professor, seus alunos e sua nova paixão, o fussball, são perseguidos e proibidos como coisa subversiva à ordem. Ao final, claro, há uma espécie de “arrebatamento” dos puros de alma com a prova de que os praticantes do esporte seriam uma casta moralmente mais sofisticada que pode elevar a civilidade da nação á um nível muito superior. Até os pobres e gordinhos são incluídos e reconhecidos como capazes. É um verdadeiro milagre divino! Os créditos nos ensinam que a história é verídica e que aqueles “fatos” teriam mesmo ocorrido e, depois daquele professor pioneiro, o futebol se disseminou por toda Alemanha, até ser finalmente permitido na Baviera, ultima província alemã a sucumbir à sedução do futebol, apenas em 1927.

Para este professor de Educação Física que vos escreve, caro leitor, parece evidente que, no longo processo civilizador pelo qual atravessa a humanidade na sua experiência na Terra, os esportes tiveram papel fundamental para afastar o ser humano da sua animalidade, colocando regras e limites nos conflitos, retirando a morte e as mutilações como coisas normais do cenário social. No entanto, não são um fim em si, mas um meio, uma ferramenta necessária numa etapa intermediária na construção de uma civilização humana igualitária, fraterna e socialmente justa. No meio do século XIX, quando surgiram os esportes modernos estimulados pela revolução industrial, o conhecimento era produto consumido somente por uma elite, mulheres eram coisas negociadas em troca de terras ou dotes, nem sequer votavam, os pobres não tinham direito a educação ou saúde, negros, asiáticos e indígenas eram escravizados nas colônias exploradas sob coerção de armas de fogo. O mundo era completamente diferente do atual, tínhamos um bilhão de habitantes no planeta e agora somos oito bilhões, os recursos naturais são finitos e não há mais territórios inexplorados. O passado é tão moralmente vergonhoso aos olhos do cidadão do mundo atual para algumas nações e castas sociais, que ações afirmativas se fazem necessárias para reparar os abusos cometidos com os oprimidos ao longo da história.

O livro Drácula, escrito pelo irlandês Bram Stoker em 1897, conta a história de um nobre Romeno da região dos Carpatos que renega a igreja católica por essa se recusar a enterrar em solo sagrado sua amada por não ser cristã, sendo então amaldiçoado a não morrer. Artistas como Coppola e Stoker, denunciam inteligentemente injustiças sociais praticadas por um status quo opressor e cruel. Suas obras trazem à luz mazelas sociais importantes que precisam ser debatidas e resignificadas, não podem cair no esquecimento. O código de ética humano é reescrito toda vez que lumiares assim nos fazem refletir. Fico feliz ao perceber que nas sociedades mais desenvolvidas como aquelas retratadas nas series da Netflix, Merli e Rita, as competições já são tidas como nefastas ao bem comum das sociedades catalã e Dinamarquesa. No entanto, fico triste ao perceber que obras muito contemporâneas como os filmes Apocalipse e Lições de Um Sonho, ainda pregam o fundamentalismo dogmático de ideologias conservadoras e representantes de um passado cruel. Por mais que a Globo e seus esportes, ou a Record e seu cristianismo, tentem nos convencer do contrário, o código de ética humano tem que ser reescrito de forma laica, sem as leis de qualquer deus e sem a lei da selva das competições capitalistas. Temos todo o conhecimento humano na palma de nossas mãos agora, como previu Coppola no começo dos anos 2000, precisamos estudá-lo e usá-lo para construir um mundo solidário e cooperativo, respeitador das diferentes crenças, do meio ambiente e de toda diversidade sexual e étnica humana. Coragem, companheiros, pois o processo civilizador fabrica muitos mártires.