terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

 Bebeti e Abreu, dois professores marcantes


Há vinte anos exerço a profissão de professor. Se procurarmos a etimologia dessas duas palavras, profissão e professor, encontraremos a mesma origem: é alguém que declara algo em público, que tem coragem para fazê-lo, pois sabe será ouvido e suas palavras serão levadas em consideração. O professor fala em público pois crê que ensinará algo para aqueles que o escutam, é uma profissão de fé. A crença no aprendizado do aluno, essa estranha fé, faz o professor levantar da cama pela manhã, pois tem consciência de sua importância social. O cidadão que cedo na vida aprende o conhecimento acumulado da sociedade, logo será produtivo contribuindo para o coletivo. Depois de tanto tempo de magistério, olho para trás e reflito sobre meu próprio aprendizado como aluno quando criança e adolescente. Quais docentes tiveram real fé no meu aprendizado? Lembrei de dois professores na minha trajetória que foram muito marcantes e agora, depois de velho, posso deduzir sobre a influência que exerceram sobre mim.

Aos cinco anos desejava intensamente aprender a andar de bicicleta. Aquela máquina simples me fascinava, poderia me dar uma autonomia gigantesca para alguém de minha idade. Um pequeno detalhe me impedia o aprendizado: eu não tinha uma para treinar. Uma ocasião, estavam todas as crianças da rua, para cima e para baixo, em suas bicicletas coloridas, num curto passeio ciclístico circular infinito sobre a calçada. Subiam até a casa dos Hofmann e desciam a toda velocidade até a casa do nosso amigo Sandro. Era um trajeto de uns cinquenta metros, quase plano e calçado, onde nossas mães deixavam que nós brincássemos. Eu ficava sentadinho olhando a brincadeira, impotente, próximo a uma das mães que nos cuidava. Bebeti era o nome dela. Claro que na época não percebi, mas aquela dona de casa que observava a cena, sentada numa espreguiçadeira, estava a exercer a profissão de professor. Esclareço:

Bebeti percebeu meu desejo intenso e criou uma oportunidade para que eu aprendesse. Levantou-se de sua cadeira e preparou uma limonada. Chamou a todos para que viessem beber, cuidando de nossa saúde, nos hidratando durante a atividade física intensa sob sol. Enquanto bebíamos, sentou novamente em sua espreguiçadeira e nos explicou uma variação da brincadeira em que estávamos todos envolvidos para que passássemos a executar. De quando em quando, alguém teria que entrar na casa da Bebeti para “abastecer” num posto de gasolina imaginário, ela ia chamando um por um. Me colocou como o primeiro frentista do posto. Agora eu era um participante ativo da brincadeira, mas ainda marginalizado. Na sua amadora, mas feliz e eficaz, ação pedagógica, Bebeti criou uma nova regra: todos teriam que ser frentistas do posto por alguns momentos. Obrigou seu filho que cedesse sua bicicletinha com rodinhas laterais para mim quando veio abastecer e ele, bem contrariado, assumiu a função de frentista a cedendo por uma única volta. Logo fiquei ali de novo olhando aquele banquete, roendo o ossinho da brincadeira. No entanto, Bebeti era competente, quando entrou um guri pedalando alegre sua Monaretinha roxa, sem rodinhas auxiliares, no “posto”, ela o orientou a ser o frentista da vez. Fiquei bem angustiado, esclareci Bebeti que nunca tinha conseguido andar sem rodinhas. A minha excitação era tão evidente que ela não teve a menor preguiça, levantou de um pulo e me levou para a calçada com a reluzente bicicleta roxa. Super disposta, tranquilizou-me dizendo que ajudaria. Que eu lembre, Bebeti só precisou empurrar um metro para eu já sair sozinho. Não queria estragar a Monaretinha nem me aproveitar demais, dei uma voltinha com cuidado e voltei para trocar de novo com o dono. Naquela tarde, a cada pouco, dei uma voltinha de um minuto. Bebeti conseguiu, sem ninguém perceber, me incluir plenamente no aprendizado, com bicicleta e tudo. Aquela moça nunca leu Vigotski e seu desenvolvimento potencial, nem Freire e sua práxis visando a transformação da realidade e a produção da história, muito menos Piaget, Montessori ou Wallon. No entanto, Bebeti incorporou todos os grandes educadores da história desde Aristóteles, acreditou que eu poderia aprender e com essa fé mudou minha vida.

Aquela aula divertida na calçada rendeu muitos frutos. As bicicletas passaram a ser meu brinquedo preferido. Roubava de minhas irmãs mais velhas suas bicicletas empoeiradas na garagem para conhecer todo o bairro. Conforme fui crescendo meu alcance aumentava. Aos dez, minha mãe já me pedia para ir à padaria ou ao supermercado sozinho comprar alguma coisa. Com o dinheirinho que juntava de mesada, comprei minha primeira bicicleta e, assim que deu, a equipei com acessórios mais diversos: espelhos retrovisores, para-barros, buzina, farol, antenas e tudo mais que havia para vender nas lojas especializadas. Minha bicicleta era meu orgulho, parecia uma árvore de natal de tão enfeitada. Entrei para um curso técnico em mecânica no segundo grau para melhor entender aquela máquina maravilhosa. Aos quinze anos fiz minha primeira viagem de bicicleta para a praia, fui até Cidreira. Aos 16 subi a serra até Gramado. Nos meus primeiros empregos eu ia de bicicleta trabalhar, mesmo sendo ridicularizado pelos colegas. Aos vinte fui morar na Holanda, país de primeiro mundo e meca mundial das bicicletas, onde percebi que todos usavam a bicicleta como veículo para ir trabalhar e ninguém achava ridículo. Viajei de bicicleta de Amsterdam até Gênova, na Itália, cruzando os Alpes no caminho. Na Bélgica, fui convidado por um técnico para virar atleta numa equipe profissional de Genk, capital do ciclismo esportivo. Voltando ao Brasil, trouxe toda aquela cultura ciclística européia e escrevi o Manual do ciclista de Porto Alegre, para a Secretaria do Meio Ambiente (SMAM). Depois, desenhei o Guia das vias cicláveis para a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Dei muitas entrevistas nos telejornais reconhecido que era como o maior militante das ciclovias. Participei de muitas corridas de bicicleta e cheguei até a categoria da elite do ciclismo no campeonato estadual. Organizei vários passeios ciclísticos pela cidade estimulando a prática do ciclismo urbano. Abri uma oficina mecânica de bicicletas, para ganhar dinheiro consertando as bicicletas de amigos e vizinhos. Entrei no ensino superior para cursar Engenharia Mecânica na UFRGS, queria desenvolver minhas próprias bicicletas, ter minha marca. Cheguei a fazer muitos projetos incríveis de bicicletas inovadoras, mas, na faculdade surgiu, logo no primeiro semestre, outro professor que viria a mudar minha vida.  

A disciplina de cálculo é básica no curso de Engenharia Mecânica. Dela dependem muitas outras que vem depois, principalmente as de projeto mecânico. Entrei na cadeira entusiasmado, finalmente começaria a aprender a projetar minhas bicicletas. O professor era um senhor idoso, o chamávamos de Abreu, dava as aulas sentado na mesa e fumando um cigarro atrás do outro. Ele contava muitas histórias interessantes, de como alguém que sabia calcular o seno de um ângulo, sem calculadora, no meio da floresta amazônica, se deu bem como Engenheiro, ou como se descobriu a fórmula da área da esfera. Porém, Abreu não tinha habilidade didática nenhuma. Gesticulava com o cigarro aceso entre os dedos e pernas cruzadas e nos mandava imaginar as funções matemáticas. Dizia: “Imaginem a função éfe de xis, um sobre xis! Observem o comportamento dessa função!” Eu, que recém estava saindo do segundo grau, não tinha a menor ideia do que ele estava falando. O que é função? Era para observar o que nela? Onde? Não conseguia nem anotar alguma coisa no caderno daquela aula falada. No meio de semestre comecei a entender o que ele queria dizer, depois das primeiras provas nas quais não caiu nenhuma daquelas histórias interessantes, mas sim contas, gráficos e mais contas. Fui muito mal e reprovei. Dos sessenta alunos, somente seis aprovaram, dez por cento, alguns deles já tinham feito a cadeira outras vezes. Abreu tinha essa fama, de durão. A intenção dele não era que os alunos aprendessem, era de conseguir reprovar o maior número de alunos. Sua crença era que os alunos não tinham competência para aprender, então nem se preocupava em ensinar. Sua profissão não era de fé. Ele conseguiu, em um semestre, tirar todo meu entusiasmo pelo curso.

Enquanto a dona de casa não remunerada Bebeti foi uma professora que me deu potência de agir, entusiasmo, elã vital, que me levou a muitas realizações de incrível sucesso e alcance, Abreu, o professor profissional dos mais bem remunerados do país, na maior e melhor universidade do estado, me entristeceu de forma brutal, me apequenou, me secou a alma, matou o entusiasmado engenheiro que havia dentro de mim. Ainda redemunhei pela Engenharia alguns semestres. Encontrei alguns outros abreus por lá, até me dar conta que ali não era minha praia. Decidi voltar para os professores Bebeti. Mudei de curso superior, fui para Educação Física. Ali quis me aprofundar no motor da bicicleta, o corpo humano. Logo me formei Professor de Educação Física, o curso era alegre e eu podia ir de bicicleta para o campus. Havia muitos outros estudantes que também iam de bicicleta, fiz muitos amigos que perduram até hoje. 

O impacto de um professor pode ser decisivo na vida de um sujeito. Trabalhei esses últimos vinte anos tentando imitar Bebeti, ajudando os alunos a aprender, ajudando a atingir seus objetivos de vida, dando aquele empurrãozinho de um metro para serem felizes e evitando ao máximo ser Abreu, alguém que dificulta o aprendizado dos alunos. Ela foi perfeita, percebeu a exclusão, promoveu a inclusão, percebeu minha sede de conhecimento e me encorajou a adquiri-lo, e fez tudo isso usando os recursos que estavam ali, com o grupo que estava ali, de forma lúdica, sem ninguém perceber que era uma aula. A professora Bebeti tornou tudo uma coisa fácil e apaixonante para o educando. Quero ser um professor assim.

Passados quase cinquenta anos, deixei de pedalar. Não porque a influência de Bebeti acabou, ou a de Abreu venceu, mas porque já tinha corrido o mundo de bicicleta, da Holanda ao Uruguai. No fim das contas, tive vinte e quatro bicicletas e todas rodei até gastar. Foi bom. Bebeti venceu e vivi no pleno o que ela me ensinou com simplicidade. Esgotei todas as possibilidades da ferramenta didática bicicleta e vi o mundo sobre ela. Passei a andar de moto, parente motorizado de duas rodas, que também me enche de elã vital, apesar de estar bem mais velho. Tive um filho e, conforme ele ia crescendo, fui trocando sua bicicleta por uma maior, ele está na quinta. Como eu, as utiliza para ir a escola e subir trilhas no morro. Como fez dezoito anos, o presenteei com uma moto. Acho que ele também vai curtir, como eu curto. 

Recentemente, reencontrei Bebeti na internet. Passei a mandar meus textos para ela, escrever é meu novo hobbie. Bebeti, incrível professora, lê todos e me retorna comentários. Depois de tantas décadas, ela segue acreditando no meu potencial e professa sua fé em mim.