domingo, 26 de abril de 2020


O “viés ideológico” da programação televisiva
Na quarentena se tem tempo livre. Depois de cozinhar, lavar a louça, as roupas, o banheiro, dar uma lidinha, responder aos apelos das redes sociais, sempre sobra um tempinho em que você não quer fazer nada. Acordei cedo um domingo e liguei a televisão. Fiquei assistindo catatônico a programação da Globo. Aos poucos, entre um bocejo e um espreguiçar, alguns detalhes me chamam a atenção e despertam minha consciência até ali alienada. Num programa sobre automóveis e motocicletas, um rapaz jovem fala sobre o carro verde limão que está dirigindo: - Custa um milhão e meio, mas vale cada centavo porque é muito divertido! Oi? Eu ouvi isso? Querem dizer então que um trabalhador que ganha um salário mínimo vai ter que trabalhar 1500 meses, 125 anos sem gastar nada, para ter aquela mesma diversão? O programa insulta toda a classe trabalhadora. Começam os comerciais e já estou revoltado. Uma propaganda de automóveis diz: - Se você resistiu a tentação de comprar um SUV essa semana, aguarde até segunda que será lançado o novo... Fiquei pensando, para quem será direcionado esse reclame? Quantas pessoas no Brasil precisaram “resistir a tentação” de comprar um carro de mais de cem mil reais no meio de uma pandemia? Será uma mensagem, para alguém que está realmente pensando em comprar um veículo tão caro daqueles, que quem tem condições para realizar tal ato é de uma casta nobre, diferente do resto da plebe? Ou será somente mais um insulto para o resto da população como o teste do carro verde limão no programa? Fiquei pensando: quem é a mente perversa por trás desse anúncio lunático? Deveria ser preso. Numa outra propaganda, Luciano Huck nos convida a aproveitar a ocasião, pois a loja para qual ele trabalha pode entregar em casa, tem até aplicativo, você pode comprar tudo que precisa sem sair para rua. E ele insiste e enfatiza: compre TUDO que precise! O “sem noção” que quer presidir o país não percebe que está todo mundo enforcado de grana atualmente? Mas a próxima peça publicitária é de uma instituição bancária e eles tem a solução. A narradora diz que o banco pensa muito na gente e quer ajudar, sabem que a situação está crítica, então vão oferecer uma linha de crédito especial, dá para financiar a dívida em três anos, é uma barbada, aproveite. Essa também vendia ótimas oportunidades para se contrair dívidas. E eu ali, ainda deitado na cama, mas já estava totalmente desperto e nervoso na frente da televisão, até sentindo náuseas. São todas propagandas como as antigas campanhas de cigarros, tentando nos convencer que são bons para nós.
Mas eis que começa um programa de esportes. Ah, como eu aprecio os programas de esportes! Geralmente são repugnantes, asquerosos, a mais explicita e manipulativa propaganda capitalista: há que se competir, mas resigne-se, somente alguns ganham, a maioria vai perder, a vida “É” assim. Os esportes são parte de meu trabalho, eu sou o professor da escola que tem que ensinar as crianças a lidar com essa fossa mal cheirosa e infectada do que há de pior na sociedade, sem luvas ou máscara. Estou assistindo TV aberta, sei que meus alunos tem aquele “ensino a distância” nas suas casas. Agora estou totalmente focado no programa, até me sento para não perder nenhuma nuance do discurso. Dois jovens e bonitos apresentadores anunciam que o famoso jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho está comemorando quarenta anos. Ele está preso no Paraguai por falsificação de documentos, esse detalhezinho bobo estragou “um pouco” a festa, mas, como eles já tinham preparado várias reportagens para comemorar, apresentariam assim mesmo. A reportagem começa com uma crítica a severidade das leis paraguaias. Depois, a vida do atleta é mostrada desde o início: garoto negro, pobre e dentuço que pelo dom natural e esforço pessoal vence na vida. História clássica que faz tantos outros meninos negros, pobres e dentuços sonharem repetir tal façanha. “Basta querer”! Claro que omitem que para cada Ronaldinho tem dez mil operários do futebol que não ganham nem salário mínimo. O que mais a reportagem mostra são suas gloriosas vitórias, seu grande poder de consumo, com carros verde limão e grossas correntes de ouro adornando o pescoço e como ele humilhava os adversários com dribles fantásticos. Os apresentadores repetem seguidamente que “o brasileiro” encantava o mundo com sua criatividade e sua alegria, assim todo brasileiro se sente contemplado, vitorioso também. O espectador, por uma mágica televisiva, celebra como se ele mesmo também fosse rico, habilidoso e vitorioso como o craque. Por sua personalidade brincalhona e distraída, o jogador se envolveu em várias confusões com a lei ao longo da carreira, mas isso é tratado como normal, afinal, ele tem aquela malandragem brasileira e aquele sorriso maroto. Ali se vende uma grande glorificação dos vencedores, se cria um aura, uma celebração glamorosa em torno de atletas que conseguiram derrotar os outros. Quanto mais os atletas humilharem seus adversários, maior o júbilo, gozo e regozijo dos apresentadores do programa. E qualquer desrespeito a legislação é justificado e perdoado, afinal, o atleta vencedor é um cidadão diferenciado, deve estar acima da lei, pois todo mundo sabe que é um guri bom, nada que uma gorda indenização pecuniária não resolva. Por ironia, o Paraguai, que preconceituosamente sempre foi visto como país de trambiques diversos, foi o único país pelos quais o jogador passou que foi sério e não relevou a brincadeirinha de passaportes falsos do brasileiro. A mensagem aprendida por meus alunos ali é que, se tu és rico, a lei não é para ti, o Paraguai não é normal, e, se tu jogas bem futebol, tua envergadura moral é indiscutível. É bacana ser malandro, se o juiz não viu, tá valendo!
Eu já estava em pé no quarto, andando de um lado para outro, angustiado, impotente diante daquelas manipulações repugnantes. Minha responsabilidade como professor diante daquela massiva sequência de mensagens é oceânica e me sinto numa boia à deriva. Depois dessa longa reportagem obscena sobre o aniversário do jogador aposentado, o programa continuava com reportagens especiais, pois todos os campeonatos estão paralisados e toda hora os apresentadores convidam os espectadores a lamentar a situação. A atração agora era que ex-atletas olímpicos foram convidados para eleger o melhor momento da história das olimpíadas. Os momentos foram todos pré selecionados pela produção do programa. Depois de votação apertada, dois momentos sairam empatados como o melhor: A vitória com nota dez, sem erro nenhum, de Nadia Comaneci nas barras assimétricas em 1976 aos 14 anos e a sofrida derrota da suíça Gabriela Andersen na primeira maratona feminina em 84. Fiquei até com asco dos atletas falando sobre sua decisão. Eles viram heroísmo onde eu via coisas bem diferentes. Ninguém lembrou que aos 14 anos uma menina ainda está se desenvolvendo, precisa brincar, namorar, estudar ou mesmo se entediar como uma adolescente saudável faz. No entanto, a rotina de treinamentos para se obter aquele desempenho perfeito, exige um esforço e um comprometimento que certamente afastou Nadia de uma vida sadia e a levou a sofrer muitas lesões musculares, ligamentares e articulares que provavelmente a prejudicaram no resto de sua vida. Fora os problemas psicológicos que uma vida assim, com privação de liberdade, trabalhos forçados e escrava de expectativas, acarreta. Essa situação começou a ficar tão repugnante e veementemente criticada por psicólogos e pediatras que a Federação Internacional de Ginástica se viu obrigada a rever a regra e proibir atletas menores de 16 anos nas olimpíadas. Esse momento de Nadia Comaneci não deveria nem ter sido lembrado para candidato a votação pelo programa. É como valorizar o trabalho infantil. O vencedor foi na verdade o asqueroso treinador explorando a juventude da menina. Antes da proibição, crianças de até onze anos competiam, por serem mais leves e flexíveis, qualidades necessárias para a prática da ginástica olímpica. Aqui meus alunos aprenderam que aos 14 já deveria estar no podium olímpico, então, se não estão, são fracassados. Conformem-se, somente alguns poucos privilegiados vencerão, a vida é assim, tu não vais ter carro verde limão.
Durante a votação, as cenas dos “melhores” momentos eram exibidas uma vez atrás da outra e os atletas eleitores verbalizavam toda sua emoção ao testemunhar as imagens. E realmente, as cenas são emocionantes. O segundo momento eleito como melhor foi a chegada cambaleante da suiça Gabriela Andersen na maratona de Los Angeles. Depois de 42 km sob sol escaldante, a corredora estava obviamente desidratada e sem nenhuma condição física de continuar. Já nem mais corria, claudicava em zig-zag pela pista. No entanto se negava a parar. Seu sistema nervoso já não conseguia coordenar o equilíbrio com a deambulação normal. A percepção espacial de seu corpo no espaço também já não funcionava bem e ela andava toda torta. Esse martírio durou duas voltas no estádio. Sua própria vida estava em risco. A regra da época não permita que ela se hidratasse depois de determinado ponto.  Assim como no caso de Nadia, algumas regras mudaram e o momento não deveria ter sido colocado em votação. Hoje em dia os árbitros já podem decidir pela desclassificação do atleta por seu estado de saúde, como no boxe. Também a hidratação é muito mais efetiva. A mensagem que se quer passar aqui é que o importante é continuar competindo, mesmo se sem a menor chance de vitória, mesmo se ao custo de sua saúde, você tem que se esforçar até o fim, respeitando as regras por mais idiotas que sejam. Tenho certeza que meus alunos entenderam esse recado também.
A ideologia capitalista é passada na televisão ininterruptamente. A diferença social é naturalizada, a competição é naturalizada, a derrota é naturalizada, o endividamento é naturalizado, o consumo é super estimulado. Não é por acaso, os donos do capital e dos meios de produção financiam as transmissões televisivas e as competições em especial. Eles tem um grande interesse em manter o “status quo”. E quando alguém argumenta alguma coisa contra isso tudo e sugere uma programação que ensine a cooperar é acusado de estar tentando colocar um viés ideológico de esquerda, comunista. A situação é tão hipnótica, que mesmo militantes de esquerda não percebem que são escravos de uma ideologia de direita, alegremente vão aos estágios torcer para seus times preferidos. Repare que há um mês e meio não tem competições no mundo e ninguém morreu por isso. Ao contrário, uma série de iniciativas solidárias tem brotado em todos os países. A sociedade ganha-perde deu lugar a uma sociedade ganha-ganha. Mesmo empresários ricos agora estão falando em renda mínima. O que ficou evidente com essa pandemia é que a cooperação é absolutamente indispensável para a saúde das populações e para a manutenção da vida, já a competição é totalmente dispensável.


quinta-feira, 23 de abril de 2020

“Ame seu próximo como a ti mesmo”. (Mateus 22, 39).
“Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem. E quem tiver comida, faça a mesma coisa”. (Lucas 3,11).
Quem é cristão sabe: Jesus pregava a fraternidade. Queria que todos cuidassem de todos, numa sociedade de amor e solidariedade, é isso que fraternidade quer dizer. Não somos tartarugas, que largam seus ovos na praia e vão embora. Somos seres humanos, muitos de nós precisam de cuidados para sobreviver: Os muito jovens, os muito velhos, os doentes, os incapazes. Todos merecem ser tratados como irmãos. Jesus também falava em igualdade. Dizia que somos todos iguais perante Deus e que somos amados igualmente por ele. Ninguém deveria ter privilégios, todos deveríamos ter os mesmo direitos, independente da cor da pele, do lugar onde nasceu, da religião que tem. E, por fim, Jesus falava em liberdade. Ninguém deveria ser escravo de ninguém e deveríamos ser livres para professar nossa fé, expressar nossa opinião, trabalhar com o que quisesse.
 As ideias de Jesus eram tão revolucionárias na época que logo o mataram para que calasse. Os poderosos não queriam que os pobres ouvissem aquilo. Ainda hoje não querem. Aqui na República Federativa do Brasil essas palavras de Jesus estão até na constituição, mas porque então ainda temos pobres? É difícil de entender, assim como tem o povo de Deus, que quer dividir o pão, tem ainda alguns mesquinhos que acham que isso não seria justo.  Mas o amor é mais forte: liberdade, fraternidade e igualdade são os lemas das repúblicas mais desenvolvidas e estamos caminhando nessa direção, “a passos de formiguinha e sem vontade”, como diria Lulu Santos.
A doença Covid-19 causada pelo novo vírus corona, talvez seja uma ajudinha divina para a humanidade compreender, na marra, as lições do Cristo. A distribuição de renda para quem não pode trabalhar agora é uma vitória do amor. Ainda que pequena, vai ajudar. O Brasil não tem dinheiro, quem tem dinheiro é o povo brasileiro. O povo é riquíssimo, mas sempre tem uns mesquinhos na liderança que não querem dividir o pão. Quando o bolsa família foi criado pelo governo Lula, os ricos se enfureceram. Há até quem seja contra a gratuidade do SUS. Mas o amor vai vencer. Devemos ampliar a distribuição de riquezas, porque “é mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um rico entrar no reino dos céus”.

domingo, 12 de abril de 2020


Bebel ressucitada

Há muitos anos, durante os primeiros Fóruns Sociais Mundiais em Porto Alegre, namorei uma bióloga. Filosofávamos juntos coisas que me inquietavam na época. Ela me apresentou um autor austríaco que nunca tinha ouvido falar, Fritjof Capra, fomos até numa palestra dele no auditório Araújo Vianna. Ele questionava o modo mecanicista de estudar as coisas, separado do todo, como uma engrenagem. Pregava uma visão sistêmica, só se deveria estudar um fenômeno natural integrado ao seu meio ambiente. Isso se aplicava a tudo, desde famílias, ecossistemas, sociedades ou economias. Fiquei fascinado e devorei o livro dele que ela me presenteou: “O ponto de mutação”. Aqueles fóruns eram mágicos, parecia mesmo que um ponto de mutação da consciência humana estava próximo de acontecer. A solidariedade e a cooperação venceriam para sempre a competição e o egoísmo. Vivíamos um momento de total euforia, vinham pessoas do mundo todo com aquelas mesmas ideias na cabeça. “Um outro mundo é possível”, slogan dos fóruns, culminou nos movimentos de ocupação que pipocaram pelo mundo, como o Occupy Wall Street de 2011, parecia que realmente tinha chegado a hora de acabar de vez com essa fase sombria da humanidade de grande diferença social. Jamais imaginaríamos que as diferenças sociais aumentariam muito depois daqueles encontros alucinógenos. Naquele tempo, Bolsonaro era só um ridículo deputado do baixíssimo clero, motivo de piada do CQC, e Trump só um empresário inescrupuloso.

Quando fiz mestrado em gestão ambiental em Florianópolis, um professor ousou criticar o papa Fritjof Capra dizendo que ele era um plagiador do livro O Fenômeno Humano do padre francês Teilhard Chardin. Fiquei indignado, procurei o livro nas livrarias da cidade para ler, mas não o encontrei. Conversei com minha erudita mãe, Bebel, que na época concluía seu terceiro curso superior, e ela tinha o livro. Quando voltei a Porto Alegre, peguei emprestado e li alguns trechos, com raiva, pois realmente tinha pontos convergentes: Chardin defendendo o todo holístico místico divino cristão e Capra o todo holístico místico do Tao chinês.  Infelizmente, não tive muitas oportunidades para debater com ela a obra, minha mãe logo veio a falecer.

Nessa semana santa, meu pai mandou por e-mail para mim e minhas irmãs um trecho de outro livro de Chardin. Nele, o padre debate a vida e a morte, assunto da páscoa cristã. Segundo Chardin, se tu contribuis em vida para alguma causa, mesmo quando tu morres teu trabalho e tuas ideias, permanecem. Se o corpo desaparece, a alma se eterniza através das ideias. Assim, não há motivo para temer a morte, pois se tu tens uma vida ética, uma vida que valha a pena no sentido grego, a morte nunca o atingirá, sua essência se perpetuará. No e-mail, meu pai lembrava de nossa mãe, como ela ainda está presente em nossas vidas e suas ideias, sua obra, se eternizou. Ela era uma cristã fervorosa, acreditava no amor e na divisão das riquezas da sociedade e lutava por isso, militava entusiasmada enquanto teve forças. Sua mensagem segue viva e nós todos seguimos seu evangelho, a boa nova da sociedade onde jorra o leite e o mel para todos.


Num desses dias de quarentena pela covid-19, para arejar a cabeça, fui nadar num rio próximo aqui de casa. Há muitos dias não chove aqui na Barra do Ouro, estamos vivendo o flagelo da seca além da pandemia do novo vírus. O bom disso é que a água fica transparente, sem folhas, terra e galhos que a chuva carrega para o rio e o tornam turvo. Me deixei ficar ali naquele paraíso por uns instantes, nadando mergulhado e divagando diletante no cipoal de minhas memórias. Me senti integrado ao todo, saudável e totalmente seguro em contato intenso com a natureza. Talvez o vírus seja fruto de uma sociedade mecanicista, como falavam Capra e Chardin. Lembrei de minha mãe e sua mensagem de solidariedade, como está atual. Mesmo Trump, o capitalista pregador do ódio, diante da peste do novo corona, percebeu que o amor e a comunhão com o próximo é o que salva. Jesus foi o primeiro comunista, falava em dividir o pão fraternalmente e que os ricos deveriam vender tudo que tem e dar aos pobres. Mesmo o mesquinho Bolsonaro e seus discípulos do deus mercado se vergaram e admitiram dividir a riqueza da sociedade com quem precisa.

Voltando caminhando para casa, lembrei de outro pensador que refletia sobre uma nova ética social. Eckhart Tolle, alemão que mora no Canadá, no seu livro “O despertar de uma nova consciência”, interpreta as palavras de Jesus sem a mística divina. Jesus era um homem prático. Queria alimentar o povo, livrar as pessoas da opressão da escravidão e do mercado. Fazia atos públicos, verdadeiras palestras, dividia peixe e pães aos famintos, derrubava e quebrava os tabuleiros quando via espertinhos vendendo sabonetes e vassouras ungidas no templo. Jesus jamais orientou a construir novos templos ou criar novas religiões, ao contrário, ele saiu da sua religião judaica, ele dava exemplos de pessoas com outras religiões, como o bom samaritano ou o centurião de cafarnaum. Jamais pediu que o adorassem, mas sempre pediu que lembrassem, em todas as refeições, daquelas suas ideias: amar o próximo e dividir o alimento. Tolle interpreta que quando Jesus falava em vida eterna, ele queria dizer exatamente o que Chardin disse: as ideias se eternizam, a alma da pessoa é o que ela acreditava. Quando Jesus falava que era para fazer a vontade de Deus “assim na terra como no céu”. Ele queria dizer que a terra era o corpo, a vida cotidiana, e o céu era a alma, as ideias que umas pessoas passam para as outras. Por isso quando se morre, o corpo fica na terra e a alma sobe aos céus, só sobram as ideias. Uns três dias depois da tua morte, depois de chorar muito, as pessoas te ressuscitarão, começarão a lembrar de ti e das coisas que tu dizias.  “No princípio era a palavra, e a palavra estava com Deus, e a palavra era Deus”, essa outra passagem bíblica que inicia o evangelho de João, também indica que antes de criar a terra e o ser humano, Deus seria somente pensamento, somente ideias. Portanto, a vida eterna se dá se as ideias que a pessoa espalha enquanto ainda tem corpo se perpetuarem. A vida terá valido a pena. Lembrei de minha mãe e me emocionei, certamente sua vida valeu a pena, suas ideias e sua memória seguem vivas dentro de nossos corações e ainda a lembramos com carinho procurando dar continuidade a sua obra, ela ressuscitou em mim. Por sorte ela não viveu para ver o total retrocesso ao ódio, a xenofobia, a exclusão e a segregação que estamos vivendo.

Tolle e Chardin talvez não tenham lido Richard Dawkins. Dawkins, nascido na então colônia inglesa do Quênia, no seu livro “O gene egoísta”, cunhou a palavra “meme”. De uma certa forma, resgatando o dualismo do grego Platão que Jesus também acreditava: há uma alma eterna que sobreviverá à morte do corpo. Na obra de Dawkins, ele explica que “Memes” seriam os pedacinhos de informações culturais que se perpetuam através das gerações, assim como os genes são pedacinhos de informações biológicas que são transmitidas hereditariamente. Os memes constroem as ideias e os genes o corpo. Se tens filhos, eternizas teu corpo, se tens uma causa, uma obra, eternizas tuas ideias.

Então perceba: as ideias de Platão, Jesus, Tolle, Capra, Dawkins e minha mãe, seguem vivas em mim. Não creio na alma de Jesus e Platão, mas as ideias de Tolle e os memes de Dawkins eu passarei adiante, assim como as ideias de Jesus e minha mãe sobre a divisão igualitária e fraterna das riquezas da sociedade. Como é bom que os memes circulem e sofram mutações, assim como o vírus Corona, isso é a própria evolução acontecendo em frente aos nossos olhos, mas tem gente que ainda não acredita no inglês Charles Darwin e prefere o criacionismo divino. Cada meme que circula por aí é como um vírus, se espalha e pode causar estrago mundial, como a ideia de que bandido bom é bandido morto. Por sorte, ideias boas como as do austríaco Capra, do francês Chardin, do alemão Tolle, do palestino Jesus, do queniano Dawkins, do grego Platão, do inglês Darwin ou da brasileira Bebel circulam também pelo mundo e formam a minha cultura e a do meu meio ambiente. Tudo é tão holístico, me sinto tão integrado no todo, Bebel está tão viva. Agora, até me deu saudades daquela namorada bióloga. Ela me deu O ponto de mutação de Capra e eu a presentei com um exemplar de O gene Egoista de Dawkins. Espero estar contribuindo para uma cultura de paz, como minha mãe ainda faz.