domingo, 12 de abril de 2020


Bebel ressucitada

Há muitos anos, durante os primeiros Fóruns Sociais Mundiais em Porto Alegre, namorei uma bióloga. Filosofávamos juntos coisas que me inquietavam na época. Ela me apresentou um autor austríaco que nunca tinha ouvido falar, Fritjof Capra, fomos até numa palestra dele no auditório Araújo Vianna. Ele questionava o modo mecanicista de estudar as coisas, separado do todo, como uma engrenagem. Pregava uma visão sistêmica, só se deveria estudar um fenômeno natural integrado ao seu meio ambiente. Isso se aplicava a tudo, desde famílias, ecossistemas, sociedades ou economias. Fiquei fascinado e devorei o livro dele que ela me presenteou: “O ponto de mutação”. Aqueles fóruns eram mágicos, parecia mesmo que um ponto de mutação da consciência humana estava próximo de acontecer. A solidariedade e a cooperação venceriam para sempre a competição e o egoísmo. Vivíamos um momento de total euforia, vinham pessoas do mundo todo com aquelas mesmas ideias na cabeça. “Um outro mundo é possível”, slogan dos fóruns, culminou nos movimentos de ocupação que pipocaram pelo mundo, como o Occupy Wall Street de 2011, parecia que realmente tinha chegado a hora de acabar de vez com essa fase sombria da humanidade de grande diferença social. Jamais imaginaríamos que as diferenças sociais aumentariam muito depois daqueles encontros alucinógenos. Naquele tempo, Bolsonaro era só um ridículo deputado do baixíssimo clero, motivo de piada do CQC, e Trump só um empresário inescrupuloso.

Quando fiz mestrado em gestão ambiental em Florianópolis, um professor ousou criticar o papa Fritjof Capra dizendo que ele era um plagiador do livro O Fenômeno Humano do padre francês Teilhard Chardin. Fiquei indignado, procurei o livro nas livrarias da cidade para ler, mas não o encontrei. Conversei com minha erudita mãe, Bebel, que na época concluía seu terceiro curso superior, e ela tinha o livro. Quando voltei a Porto Alegre, peguei emprestado e li alguns trechos, com raiva, pois realmente tinha pontos convergentes: Chardin defendendo o todo holístico místico divino cristão e Capra o todo holístico místico do Tao chinês.  Infelizmente, não tive muitas oportunidades para debater com ela a obra, minha mãe logo veio a falecer.

Nessa semana santa, meu pai mandou por e-mail para mim e minhas irmãs um trecho de outro livro de Chardin. Nele, o padre debate a vida e a morte, assunto da páscoa cristã. Segundo Chardin, se tu contribuis em vida para alguma causa, mesmo quando tu morres teu trabalho e tuas ideias, permanecem. Se o corpo desaparece, a alma se eterniza através das ideias. Assim, não há motivo para temer a morte, pois se tu tens uma vida ética, uma vida que valha a pena no sentido grego, a morte nunca o atingirá, sua essência se perpetuará. No e-mail, meu pai lembrava de nossa mãe, como ela ainda está presente em nossas vidas e suas ideias, sua obra, se eternizou. Ela era uma cristã fervorosa, acreditava no amor e na divisão das riquezas da sociedade e lutava por isso, militava entusiasmada enquanto teve forças. Sua mensagem segue viva e nós todos seguimos seu evangelho, a boa nova da sociedade onde jorra o leite e o mel para todos.


Num desses dias de quarentena pela covid-19, para arejar a cabeça, fui nadar num rio próximo aqui de casa. Há muitos dias não chove aqui na Barra do Ouro, estamos vivendo o flagelo da seca além da pandemia do novo vírus. O bom disso é que a água fica transparente, sem folhas, terra e galhos que a chuva carrega para o rio e o tornam turvo. Me deixei ficar ali naquele paraíso por uns instantes, nadando mergulhado e divagando diletante no cipoal de minhas memórias. Me senti integrado ao todo, saudável e totalmente seguro em contato intenso com a natureza. Talvez o vírus seja fruto de uma sociedade mecanicista, como falavam Capra e Chardin. Lembrei de minha mãe e sua mensagem de solidariedade, como está atual. Mesmo Trump, o capitalista pregador do ódio, diante da peste do novo corona, percebeu que o amor e a comunhão com o próximo é o que salva. Jesus foi o primeiro comunista, falava em dividir o pão fraternalmente e que os ricos deveriam vender tudo que tem e dar aos pobres. Mesmo o mesquinho Bolsonaro e seus discípulos do deus mercado se vergaram e admitiram dividir a riqueza da sociedade com quem precisa.

Voltando caminhando para casa, lembrei de outro pensador que refletia sobre uma nova ética social. Eckhart Tolle, alemão que mora no Canadá, no seu livro “O despertar de uma nova consciência”, interpreta as palavras de Jesus sem a mística divina. Jesus era um homem prático. Queria alimentar o povo, livrar as pessoas da opressão da escravidão e do mercado. Fazia atos públicos, verdadeiras palestras, dividia peixe e pães aos famintos, derrubava e quebrava os tabuleiros quando via espertinhos vendendo sabonetes e vassouras ungidas no templo. Jesus jamais orientou a construir novos templos ou criar novas religiões, ao contrário, ele saiu da sua religião judaica, ele dava exemplos de pessoas com outras religiões, como o bom samaritano ou o centurião de cafarnaum. Jamais pediu que o adorassem, mas sempre pediu que lembrassem, em todas as refeições, daquelas suas ideias: amar o próximo e dividir o alimento. Tolle interpreta que quando Jesus falava em vida eterna, ele queria dizer exatamente o que Chardin disse: as ideias se eternizam, a alma da pessoa é o que ela acreditava. Quando Jesus falava que era para fazer a vontade de Deus “assim na terra como no céu”. Ele queria dizer que a terra era o corpo, a vida cotidiana, e o céu era a alma, as ideias que umas pessoas passam para as outras. Por isso quando se morre, o corpo fica na terra e a alma sobe aos céus, só sobram as ideias. Uns três dias depois da tua morte, depois de chorar muito, as pessoas te ressuscitarão, começarão a lembrar de ti e das coisas que tu dizias.  “No princípio era a palavra, e a palavra estava com Deus, e a palavra era Deus”, essa outra passagem bíblica que inicia o evangelho de João, também indica que antes de criar a terra e o ser humano, Deus seria somente pensamento, somente ideias. Portanto, a vida eterna se dá se as ideias que a pessoa espalha enquanto ainda tem corpo se perpetuarem. A vida terá valido a pena. Lembrei de minha mãe e me emocionei, certamente sua vida valeu a pena, suas ideias e sua memória seguem vivas dentro de nossos corações e ainda a lembramos com carinho procurando dar continuidade a sua obra, ela ressuscitou em mim. Por sorte ela não viveu para ver o total retrocesso ao ódio, a xenofobia, a exclusão e a segregação que estamos vivendo.

Tolle e Chardin talvez não tenham lido Richard Dawkins. Dawkins, nascido na então colônia inglesa do Quênia, no seu livro “O gene egoísta”, cunhou a palavra “meme”. De uma certa forma, resgatando o dualismo do grego Platão que Jesus também acreditava: há uma alma eterna que sobreviverá à morte do corpo. Na obra de Dawkins, ele explica que “Memes” seriam os pedacinhos de informações culturais que se perpetuam através das gerações, assim como os genes são pedacinhos de informações biológicas que são transmitidas hereditariamente. Os memes constroem as ideias e os genes o corpo. Se tens filhos, eternizas teu corpo, se tens uma causa, uma obra, eternizas tuas ideias.

Então perceba: as ideias de Platão, Jesus, Tolle, Capra, Dawkins e minha mãe, seguem vivas em mim. Não creio na alma de Jesus e Platão, mas as ideias de Tolle e os memes de Dawkins eu passarei adiante, assim como as ideias de Jesus e minha mãe sobre a divisão igualitária e fraterna das riquezas da sociedade. Como é bom que os memes circulem e sofram mutações, assim como o vírus Corona, isso é a própria evolução acontecendo em frente aos nossos olhos, mas tem gente que ainda não acredita no inglês Charles Darwin e prefere o criacionismo divino. Cada meme que circula por aí é como um vírus, se espalha e pode causar estrago mundial, como a ideia de que bandido bom é bandido morto. Por sorte, ideias boas como as do austríaco Capra, do francês Chardin, do alemão Tolle, do palestino Jesus, do queniano Dawkins, do grego Platão, do inglês Darwin ou da brasileira Bebel circulam também pelo mundo e formam a minha cultura e a do meu meio ambiente. Tudo é tão holístico, me sinto tão integrado no todo, Bebel está tão viva. Agora, até me deu saudades daquela namorada bióloga. Ela me deu O ponto de mutação de Capra e eu a presentei com um exemplar de O gene Egoista de Dawkins. Espero estar contribuindo para uma cultura de paz, como minha mãe ainda faz.

5 comentários:

  1. Queria que esse texto continuasse.
    Não canso de le-lo.

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  2. Entro dentro dos teus textos e consigo ver as cenas...
    A brasileira Bebel como a brasileira Margarida deixaram suas marcas...
    Margarida,minha mãe,era analfabeta mas tinha uma sabedoria enorme sobre tudo: história, ciências,matemática...era mestre na arte de ensinar a amar e dividir.
    Parabéns! Amo tuas escritas!!!

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  3. Muito bem escrito. Clareza objetividade e simplicidade. Assim como nossa vida tem que ser...

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  4. Belo texto Tiago, parabéns.
    Dona Belinha foi e sempre será um exemplos de ser humano, pois pessoas como ela são inesquecíveis perante as outras.

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  5. Aqui a bióloga que causou impacto! Que a energia que a Bebel brindou a esse mundo, siga prosperando. Tua mãe está bem viva, em todos que ela “tocou”, a energia nunca se perde, se transforma! Abraço a todos da família. Com carinho, a bióloga

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