terça-feira, 28 de abril de 2015

Em dia tão marcado por manobras da direita, receber uma corrêspondência destas é, ao mesmo tempo, doloroso, pelo perigo de voltar a viver situações como aquelas, e triste, porque agora não temos mais Bebel para nos iluminar. Como disse o frei no texto abaixo: eu vi, eu convivi. Ninguém me contou. Não foi uma nem duas vezes que fui obrigado a ir com a mãe nas vilas da Ilha Grande dos Marinheiros. Foram dezenas de vezes. Toda a semana, se não me engano eram às quintas à tarde. Dias frios, com enchente ou mesmo sol torrando, os ratos correndo sem medo na nossa frente, não interessava o clima, era sagrado, nós tínhamos aquele compromisso. No começo eu gostava, tinha uns dezoito anos e a mãe deixava eu ir dirigindo o fuquinha pelas estradas, até atravessávamos a ponte do Guaíba!!! Primeiro pássavamos nalguma "companheira", pegávamos alguma mulher fedida em uma vila pobre, depois seguíamos para o moinho, pegar farinha. Daí tocávamos para a ilha. Era miséria em cima de miséria. Eu odiava aquilo!!! Não tinha nada lá minimamente atraente para um guri bem alimentado e bem vestido de classe média alta como eu. Fora, claro, o fato de passar por atoleiros de fuca carregado de farinha!! Eu assisti aquelas cenas de crianças e mulheres sujas e descalças correndo para encontrar conosco. Primeiro largávamos as farinhas nalguma maloca miserável, depois uma escolinha que o grupo de mulheres tinha construído com as próprias mãos, depois a escolhinha ficava maior e assim ia ao longo dos anos. E isso era em várias favelas de Porto Alegre. A Bebel, abnegadamente, ia escutando, organizando, trabalhando junto delas. Agora me dou conta, mas aquilo era o início da organização do povo para conseguir no governo federal o bolsa família, as cotas nas universidades, o minha casa minha vida, uma presidente mulher no planalto. Para mim era insuportável aquelas visitas, eu queria sair correndo. Me doía, eu não queria ver nem saber nada daquilo. Um dia eu falei: Chega!!! Não vou mais na ilha!!! Não quero mais isso, isso nunca vai ser diferente!! Nós só estamos sujando os tênis aqui. Mas, passada uma semana, lá estava eu de novo, carregando sacos de farinha, pulando poças e sentindo o cheiro da miséria. A Bebel era muito convincente. Eu não me tornei uma Bebel, lutadora do front, das trincheiras fétidas. Loooonge disso. Mas, pelo seu exemplo de amor ágape, aquele amor que Jesus falava, Bebel me oferecia a outra face. Ela me armou para a luta, para ser justo e solidário pelo menos na hora do voto. Lutando só com o amor, a solidariedade, a união, elegemos primeiro Olívio Dutra para prefeito de Porto Alegre, aquilo foi uma revolução!! As prioridades mudaram totalmente! Como Bebel fazia, a nova administração passou a perguntar para todos o que precisavam mais e a ajudar no que pudessem. Rapidamente, as favelas começaram a mudar de cara. Casinhas de material e pátios, asfalto, água encanada e luz. Isso resultou em quatro administrações seguidas do PT em Porto Alegre. Bebel andava sempre fardada para aquela luta, nas eleições levantava bandeira!! As elites, para retomar o poder no voto, tiveram que assumir as mesmas bandeiras. Aquele trabalho formiguinha de amor fraterno, solidário e libertário, pregação de Jesus, líder espiritual de Bebel (e da revolução francesa), havia vencido! Agora, a elite usa novamente suas armas, o ódio, a desunião, a manipulação e, como na ágora grega, a maioria dita o que sera feito. Tomara, as bebéis e dilmas se unam de novo e resistam a este ataque covarde. Que elas consigam retomar os valores repúblicanos e cristãos de igualdade. Aí está o texto que me foi enviado hoje sobre minha mãe:
Belinha – Uma Flor em Espírito na Ilha
As crianças vinham ao encontro com semblante de tristeza. Sim, existem crianças tristes. Eu vi. Convivi. Presenciei grupos de meninos e meninas maltrapilhas acompanhando suas mães. Algumas das mulheres adultas eram avós, outras irmãs mais velhas. No outro lado da estrada empoeirada, a beira do rio, algumas flores de gramíneas rasteiras contrastavam com os entulhos e sobras de materiais sem nenhum valor para reciclagem. Na outra margem, mais adiante, a silhueta da cidade de Porto Alegre, que se focada a partir de um prisma e ângulo determinado, poderia ser uma paradisíaca paisagem. Uma foto para um cartão postal. Virando para o lado leste, de costas para a cidade, uma fileira de casebres costeando uma trilha para carroças que chegavam com materiais recolhidos para reciclagem. E mais adiante, além de outro canal do rio, a paisagem da Ilha das Flores, bem descrita e demonstrada pelo filme homônimo de Jorge furtado.
Eram os anos oitenta. Muita fome, desemprego, êxodo, andarilhos, pessoas andando e se mudando rapidamente. A Ilha Grande dos Marinheiros possuía suas vilas com características próprias. Mesmo que se quisesse cortar da fotografia as crianças tristes, seria impossível escapar do cenário sub-humano, pois se escapasse aos olhos, do ouvido era impossível. As crianças tristes choram. Semelhante a um lamento que ao sentimento humano é cortante. Vem do fundo de uma alma que sequer entende ou compreende porque está chorando. E o contraste está ali. Nu e cru, diante de um grupo que acaba de chegar para se encontrar com as mulheres e crianças da vila estabelecida no lado Norte da Ponte do Guaíba.
“É fome meu irmão”, dizia uma mãe para mim, como que se quisesse justificar o comportamento de uma criança em seu colo. Um bebê com aspecto subnutrido, aparentemente de 1 ano. Corria uma conversa na Ilha que as mães estavam fervendo papelão com água do rio para colocar na mamadeira dos bebês. Era a forma para não serem atormentadas pelo choro de fome durante a noite. Uma reportagem de um jornal, na ocasião, divulgou o tema como denúncia, e para variar, nada de denunciar os culpados pela suposta situação. E a mãe, como que num gesto de desespero, de sobrevivência de seu filho, compartilhava seu choro no grupo, que possivelmente era seu único recurso que restava para pedir ajuda.
As mulheres da Ilha chamavam de irmãos e irmãs a todas as pessoas que chegassem com algum tipo de socorro ou ajuda. Era uma forma carinhosa e de respeito. Também era um misto de confusão entre o reconhecimento do trabalho social com a inserção de diversas pessoas com trabalhos religiosos. Lembro-me de um dia em que estávamos eu, o Irmão Antônio Cechin , a Matilde Cechin, um cidadão voluntário de uma sociedade espírita, um professor do colégio, outras assistentes sociais de uma organização religiosa, enfim, havia uma tratativa de juntar esforços para que o trabalho social fosse melhor organizado. Todos no pátio da igrejinha a beira da estrada. Era a roda que se fazia antes de iniciar mais um encontro. O grupo de mulheres que costumavam participar dos encontros vinha chegando e cumprimentavam: “boa tarde irmão”, “boa tarde irmã”.
Enquanto as pessoas contavam os últimos acontecimentos da Ilha nestas rodas costumeiras antes dos encontros, via de regra, sempre acontecimentos catastróficos, um certo dia percebi que quando chegou mais uma pessoa da equipe, mal pisou no pátio e chegando no grupo, possivelmente sem ninguém perceber, as mulheres e crianças foram se aproximando, cercando, sem romper com a roda que estava formada. Estava lá a Belinha no centro do grupo. Estava lá ela, tocando as crianças no colo das mães. Abraçando aquelas mulheres de fisionomia e corpo sofrido. E apesar de todo o desespero que acabavam de contar para o grupo, acreditem, estas mulheres começavam a sorrir. E parecia que estavam a lhe dizer: “tu és nossa esperança.”
O sorriso de uma mulher pode sim contagiar outras pessoas. Mas não seria o suficiente para animar o grupo no estado desumano e de prolongado sofrimento que se encontravam. Mais que o sorriso, a presença irradiava uma luz que parecia atravessar os corpos. Sua presença física alterava o estado de espírito das pessoas, onde muitas vezes se demonstravam agressivas, estado psicossocial justificado pelo ambiente vil em que viviam. Vi mulheres alteradas e tomadas de ira chamando de “ Minha Irmã” para a Belinha numa ternura inexplicável. Acho que pessoas iluminadas não possuem somente corpo e espírito. São possuídas de poderes especiais que não os conhecemos.
A minha opção pela militância social desde bem jovem me privilegiou em conhecer e ter trabalhado em diversos lugares com o Irmão Antônio Cechin e a Matilde Cechin. Foram eles também que viabilizaram um quarto em madeira crua para eu morar, nos fundos de uma igreja, na Ilha Grande dos Marinheiros. E foi lá que pude conviver, vivenciar e sentir o mundo da marginalização humana, do descaso público e da mais profunda hipocrisia que se mantêm até hoje na sociedade. Da surdez e da cegueira de quem só ouve o que quer e só enxerga o que lhe interessa. A dimensão humanitária de tratar com quem está em situação sub-humana exige envolvimento, desprendimento e dedicação. Trocar o conforto não só pelo desconforto, mas muitas vezes acrescido de sacrifício muito forte. É amar quem é mais difícil de amar. É doar-se e entregar-se a quem nem sempre retribui de forma correspondente. Mais que isso: é não esperar retribuição e nem recompensa.
Eram idos dos anos 80. As mulheres da Ilha, como nós carinhosamente as chamávamos, começaram a se organizar e se articular com outros grupos de outras vilas de Porto Alegre e de Canoas. O tema da reciclagem e do lixo não era pauta da sociedade burguesa. As carrocinhas que atravessavam a ponte do Guaíba eram um grande estorvo para a sociedade dominante. Foi dentro do escopo deste confronto que o tema contribuiu para o surgimento do emblemático movimento dos PROFETAS DA ECOLOGIA. Mas foi, sobretudo, a organização dos grupos de mulheres que garantiu a continuidade e a estruturação de longo prazo do movimento dos recicladores, hoje espalhados não só na Grande Porto Alegre, e sim em todo o Brasil.
Entre as características que me marcaram na atuação da Belinha nas atividades da Ilha e início da organização dos recicladores era a valorização dos coletivos. Dos grupos. Não individualizava as ações. Era o grupo de padaria, grupo de artesanato, grupo de costura e assim por diante. Outra característica era o respeito às diferenças e a capacidade de integrar e conseguir organizar trabalhos com pessoas tão diferentes. Um desafio para qualquer estudioso da psicologia social. Possivelmente sua luz especial contaminava estes grupos, possibilitando uma convivência mais humana. Mas nem sempre foi fácil. Muitos momentos de mística tiveram que ser preparados para manter grupos, que pela condição, o desânimo imperava em suas rotinas. E lá chegava ela com uma mística que fazia ressurgir a esperança daqueles grupos de mulheres.
Por fim, afirmo que nos dias atuais nunca precisamos tanto do espírito da Belinha. Num mundo onde a ação social virou uma mercadoria em que as empresas apresentam números; onde existe muita “profissionalização” de militantes sociais; e pouca opção e entrega de fato, nada mais oportuno do que invocar o espírito de quem nos inspira. Por outro lado, o da esperança, confesso que estou encontrando alguns jovens com este espírito. Eu não perdi a esperança. Apesar de tudo, vai haver quem não compactua com os valores postos pelos grupos dominantes. Estes jovens incorporarão valores distintos dos preconizados pela sociedade dominante e se tornarão exemplos vivos de pessoas que buscam a paz e o bem-estar dos outros.
Eu quero incentivar qualquer pessoa que queira ser militante social. Quero ajudar o possível, dentro de meus limites. E especialmente quando são mulheres. Gostaria de participar de uma mística coletiva de iniciação. E pronunciar em versos ou cantos:
“TE BATIZAMOS EM NOME DA BELINHA,
DE SEU ESPÍRITO E DE SUA LUZ.
TE ENVIAMOS, PARA QUE LEVES FLORES AOS TRISTES,
ÁGUA LÍMPIDA E POTÁVEL AOS SEDENTOS,
E NATUREZA VIVA ONDE ELA ESTÁ MORTA.
E ELA TE ACOMPANHARÁ POR TODOS OS CAMINHOS QUE ANDARES.
E QUE ASSIM SEJA”
Nilson Pilati
Verão meridional de 2015.
Há um mês, Bebel morreu. Hoje, na escola, lembrei dela e tentei falar numa reunião com a equipe técnica... Cai no choro como qualquer guri orfão. Ela era uma amiga muito legal. Animada tanto para falar de algum filósofo alemão como Marx, Heidegger ou Kant como para pegar na enxada e capinar uma horta. Parceira para qualquer viagem, de carro ou ônibus, o entusiasmo era o mesmo, ia conversando muito e admirando-se com a paisagem. Serrava, costurava, martelava, cozinhava, pintava e bordava com a mesma alegria e rapidez que terminava cursos superiores um atrás do outro. Erudita intelectual e trabalhadora braçal no mesmo corpo e com a mesma importância hierárquica. Política de esquerda, incansável na luta, no trabalho formiguinha de base e no planejamento estratégico de cúpula. Conversava com o governador do estado no luxo do gabinete do Palácio Piratini com a mesma humildade, as mesmas roupas e as mesmas palavras que usava para falar com as mulheres pobres da favela na Ilha Grande dos Marinheiros na mais absoluta miséria. Seu escritório, geralmente era embaixo de uma árvore, mas muitas vezes a encontrei estudando, lendo e escrevendo a caneta, de madrugada e vestindo um poncho. Adorava uma novidade culinária e se deliciava, com gosto, com o doce mais fino ou a prato típico mais estrambótico que ela trazia de suas viagens em países distantes. Me apoiava em qualquer decisão e me defendia sempre que necessário, uma verdadeira companheira de lutas. Admirava muito essa pequena senhora, mas "Mãe" é a palavra perfeita para descrever essa que era minha melhor amiga.

domingo, 5 de abril de 2015

Morte, páscoa e ressurreição.
Namorei uma coroa que curtia os animais. Ela tinha vários, mas não esses normais que as pessoas tem, como gatos, cachorros e passarinhos. Ela tinha aqueles bichos comuns em fazendas porque morava num sítio e tinha muito espaço. Era uma verdadeira arca de Noé aquela casa. Tinha codornas, coelhos, perus, galinhas, galinhas de angola, cavalos, pôneis, burros, cabritos e ovelhas. Era uma coisa linda de se ver quando todos estavam soltos no potreiro a beira rio pastando e ciscando a vontade. Nenhum animal era criado para comer, eram só para contemplação e convivência. Como num filme da Disney, esse mundo perfeito foi sacudido por um abalo do mal e uma grande luta se fez necessária até se voltar a normalidade feliz. O dono do sítio, que era alugado, o queria de volta e deu 60 dias para que aquele zoológico saísse dali. Muitos outros sítios foram buscados, mas não se encontrava nada com as características necessárias. Com o prazo se esgotando, minha namorada apelou para uma casa provisória na cidade mesmo. Eu construí uma pequena estrebaria e todos os animais ficaram confinados num pequeno espaço de 15 por 40 m durante uns seis meses até que outro sítio fosse encontrado. Que confusão era aquele pequeno pátio. Logo toda a vegetação do lugar foi comida e todos os alimentos tinham que então ser trazidos de longe, de carro, rações industrializadas. Era uma trabalheira, eu estava num momento de vida que tinha tempo, então ajudava no que podia para "tratar" a bicharada. Logo os animais começaram a adoecer por estar naquele ambiente apertado e insalubre e alguns morreram. Era um barral desgraçado e tinha muito estrume por tudo. Por incrível que pareça a vida seguia seu rumo e alguns animais nasciam também! O pátio virou atração na cidade e as crianças vinham observar da cerca os bichinhos recém-nascidos pulando contentes apesar de tudo. Um enorme carneiro morreu do nada, nem deu sinais de sua doença, só amanheceu morto. Como todos os animais, esse também tinha nome, era o Alvinho, por ser todo branco. Como pesava uns 120kg não era qualquer buraquinho que caberia sua carcaça. Decidimos levá-lo dali para servir de alimento aos urubus nalgum ermo distante. Eu e um vizinho quase morremos para colocá-lo no porta malas do carro. Bom, ele morrendo, sua "esposa", a Manchinha, uma enorme ovelha negra com uma manchinha branca na cabeça, ficou viúva e sozinha com aqueles outros de espécies diferentes. Foi um momento bem triste, a gente sempre sente muito a morte de algum animal que convivemos. Para compensar, a Mel, uma cabrita marrom, pariu um par de gêmeos aquela semana: Tutti e Frutti. Cabritinhos são lindos e alegres, mal nascem e já sabem caminhar, em um dia correr e em uma semana saltar. Numa manhã fria de final de inverno fui tratar os burros na estrebaria e lá estavam a ovelha Manchinha, a cabrita Mel e seus três cabritinhos... opa... três? Não eram dois? Parei, com os sacos de ração na mão, sem entender a situação e contei com calma. Sim, tinha três agora!! E um todo preto e diferente. O bicho era esquisito, feio que dói, tinha uma orelha maior que a outra e caminhava com dificuldade, meio corcunda, não era esperto e rápido como os outros cabritinhos. Mas como, pensei, não tinha nenhuma cabrita prenhe! Será que algum vizinho da cidade tinha abandonado aquele quasimodo ali na esperança que nós cuidássemos? Reparei que o cabritinho negro não saia de baixo da Manchinha. Demorou um pouco, mas a ficha caiu. Não era cabrito nenhum, era uma ovelhinha, filha da Manchinha! O Alvinho tinha sido pai! E nós, tolos e ingênuos, achando que tinha morrido virgem há dois meses. O alvinho tinha deixado prole, ainda vivia. Uma grande emoção me tomou. Pedi licença para manchinha e peguei no colo aquele serzinho. Até que aquela coisinha horrorosa era simpática. A enorme lã que envolvia a ovelha não nos deixou perceber sua gravidez e aquele parto discreto nos deixou surpresos. O alvinho ressuscitou, bem menor e com a cor inversa, depois de dois meses de falecido, para que de novo eu o amasse.
Eu ia de bicicleta para a faculdade de engenharia. Era longe, quase em viamão, no campus do vale. Ninguém mais ia de bicicleta, só eu. Os pobres iam de ônibus e os ricos de carro, os estacionamentos eram enormes... devem ser ainda. Eu era uma aberração na época. No meio do semestre surgiu outro cara de bicicleta. Achei uma maravilha aquilo e fui falar com ele. Ficamos grandes amigos na mesma hora, seu nome era Felipe. Era mestre em bordões engraçados, todos os que uso até hoje são dele. Tinha uma bicicleta americana muito ruim, mas num formato inédito para as bicicletas brasileiras, era uma mountain bike. Naqueles tempos, recém o Collor tinha aberto as importações, para se ter uma BMW tinha que pagar cinco, então produtos importados eram raros. Felipão passou a pedalar com nosso grupo de ciclistas de montanha, todos os poucos porto-alegrenses que tinham uma mountain bike. Íamos para fora de Porto Alegre, para trilhas em Gravataí, subíamos e descíamos morros o dia todo e comíamos vergamotas e caquis no pé. No alto de algum morro fazíamos uma pausa para descansar e conversar. Era um grupo de uns cinco ou seis só, dependendo da disponibilidade de cada um, com bicicletas compradas no exterior ou feitas a mão olhando fotos de revistas americanas. Nós ríamos muito e contávamos causos e mais causos, fazíamos planos de viagem e arquitetávamos bicicletas inovadoras. Eram momentos muito alegres e alvissareiros. Aos poucos, cada um foi tomando seu rumo na vida e o grupo se desfez. Eu larguei a Engenharia e, um ano depois, Felipão também. Falávamos pouco, a internet era uma coisa nova e cara. As redes sociais eram só as reais, não havia ainda as virtuais. Fiquei sabendo que foi fazer um mestrado no Ceará, daí o Felipe sumiu. Ainda o revi uma última vez, no seu casamento, depois nunca mais. Anos depois lembrei do amigo e digitei no google seu nome. Achei sua dissertação e até seu email. Mandei uma correspondência eletrônica e passamos a conversar por meios cibernéticos, agora bem mais populares. Ele estava morando na Suiça, era programador de computadores. Tinha virado um incluido no primeiro mundo. Ganhava bem e planejava se aposentar aos cinquenta anos. Estava feliz, casado, com filho e bom emprego. Era ambicioso e queria ficar rico. No final do ano a firma para qual trabalhava fez uma festinha de comemoração num luxuoso resort em Liechtenstein. Felipão caminhava numa trilha da floresta quando caiu desmaiado de cara na neve. Os amigos que o acompanhavam acudiram e chamaram o resgate, mas ele já tinha feito a passagem. Aos 40 anos meu amigo morreu do coração. O primeiro sintoma de muitas patologias coronárias é a morte súbita. Depois de muita burocracia para liberação e translado do corpo, liberação do seguro de vida e tudo mais que essas situações exigem, Felipão foi velado e enterrado em Porto Alegre. Viajei de Floripa, onde eu naquele momento morava, para as cerimônias fúnebres. Nossa, eu chorava mais que a esposa. Coitadinho do Felipe, tinha tantos planos. A rede social virtual agora possibilitava encontros com quem conhecia bem meu finado amigo, então passei a me corresponder com sua esposa e irmãs. Passados mais uns anos voltei a me encontrar com sua irmã Thaís. Felipão está ali, de alguma forma, vivo, com todo seu humor, sua argúcia, seu sorriso, sua erudição e mesmo suas mazelas. Seus genes e memes tem vida eterna.
Tinha outro amigo, que também cursou engenharia, que era diferente. O Schaan foi colega da Verô no Colégio, eu fui seu amigo por uns 20 anos. Ele fez engenharia civil na UFRGS, terminou quando eu estava entrando. Depois que se formou, saiu a viajar. Foi a lugares que nós só ouvimos falar em lendas. São lugares tão esquisitos que nem sequer em fotos um brasileiro comum já teve a oportunidade vê-los. Viajou de bicicleta e trem pela China, andou de barco na Tailândia, tomou banho de praia e alugou um scooter em Bali, teve uma namorada japonesa no Japão, atravessou os Estados Unidos de costa a costa numa bicicleta, pegou aquele famoso trem transiberiano até Leningrado (na época, São Petersburgo se chamava assim), morou na Inglaterra dois anos, morou na Suíça por seis meses (ele tem passaporte italiano), viajou por toda Europa de trem, foi duas vezes a Cuba, subiu os Andes no Chile e na Argentina, gostava de passar os feriados numa praia escondida do Uruguai, o mundo era pequeno para ele. Depois de visitar o mundo todo ele voltou para casa. Voltou porque aqui era o lar, the green, green grass of home. Ele pertencia a Porto Alegre e sentia que tinha uma dívida de amor com a cidade. Então, ele voltou e fez um mestrado em engenharia. Fez porque não sabia o que iria fazer, não se sentia muito bem encaixado no “sistema”. Fez porque tinha uma bolsa legal, dava para viver enquanto estudava. Fez porque achava que seu conhecimento, adquirido ao redor do mundo, valia a pena partilhar com a comunidade. E fez também por que era capaz. A dissertação dele foi sobre a viabilidade das ciclovias aqui em Porto Alegre. Ele acreditava, e lutava, para que seu trabalho fizesse diferença na qualidade de vida da comunidade. Ele, talvez ingenuamente, preferia o bem da comunidade do que o luxo individual. Este cara não tinha nada. Morava num pequeno apartamento que os quatro filhos da mãe dele, que morreu, herdaram. Ele pagava um aluguel simbólico aos irmãos. Lá dentro tinha muitas fotos, discos e livros em vários idiomas, mas nenhum “ar-condicionado”, e era até bem bagunçado. Teve uma vez, acho que era 2003, que vendeu um fusca 82 para comprar um gol 88. Mesmo com todas suas qualificações em engenharia e podendo ter qualquer carro do ano, vivia de dar aulas de Inglês para alunos particulares, lá mesmo, no seu apartamento. O cabeludo Schaan tinha um cabelo e uma barba preta desgrenhados e enormes, que o deixavam com uma aparência de urso. O cara tinha uma namorada bem bonita, mas muito simples, que ele adorava. Este outro amigo se dizia satisfeito com a vida e não fazia planos. E estava mesmo, era só olhar seus olhos brilhantes. Ambicionava nada, mas sua gargalhada era constante, e ele chegava a parar o que estava fazendo para olhar o céu e poder rir melhor. O seu sorriso era entalhado na cara magra. Suas piadas são as mais engraçadas que eu já ouvi. Eu ficava feliz só de estar com ele. Era rico este meu amigo pobre. Uns anos depois que fui morar em Floripa, ele desenvolveu câncer. Quando pude visitá-lo no hospital ele já estava um esqueletinho. Aquele baita homem de 1,92m de altura, morreu aos 37 anos com 39kg e um monte de escritos que desejava publicar inéditos. Como chorei naquele velório. Não deu dois anos de seu enterro e inauguraram uma ciclovia na Av. Diário de Notícias em Porto Alegre como o nome de “Ciclovia Engenheiro Eduardo D’Agord Schaan”. O Schaan não morreu, vive não só por decreto da câmara municipal numa placa da cidade, mas ressuscita toda vez que alguém que teve o privilégio de sua convivência ri de suas piadas e almeja viver uma vida tão intensa e prazerosa como a dele.
Morei na Europa e aprendi o inglês, voltei fluente depois de dois anos por lá. Mas, para a sociedade, aquele conhecimento não valia nada, não tinha algum papel que legalmente o legitimasse. Então procurei a melhor escola de inglês da cidade para me dar um diploma. Fiz uns testes e me colocaram no fim do curso, queriam me fazer pagar caro pelo diploma, eu teria que fazer quatro semestres. Tudo bem, topei. Tinha uns cursos intensivos de férias e, para ir mais rápido, me meti lá, um semestre em um mês. Era longe de casa e à noite, mas azar. Dia cinco de janeiro, no primeiro dia de aula, lá estava eu.  Porto Alegre todo, àquelas horas, estava na praia tomando picolé na fresquinha da noite e, portanto, minha turma era pequena. Eu e mais duas mulheres, sendo que uma freira. A freira logo saiu, foi transferida para Itália. Ficamos eu e uma loura alta e bonita. Carolina tinha uma aparência típica de dondoca porto-alegrense, mas, conforme o curso avançava janeiro adentro, percebi que a guria tinha estofo. Era bem mais jovem que eu, mas falava inglês muito bem e articulava frases que me surpreendiam por sair daquela boca tão desejável. Ela não era uma loura burra, apesar da aparência clichê. Em um mês eu já estava com os quatro pneus arriados por ela, inebriado por uma paixão avassaladora. Me declarei e mandei flores, escrevi cartas de amor, dei presentes mis, levei para jantar fora e assistir teatro, caminhar no bric e conversar horas. Nos dávamos super bem, para mim era uma obviedade, mas a guria não achava. Me esnobava valentemente, apesar de sadicamente me manter ao alcance das mãos. Fizemos os quatro semestres juntos. Eu sofria demais com aquela convivência só no mundo das idéias. Queria abraçá-la, beijá-la, amá-la. Me atirei ainda mais, me humilhei, apostei todas as fichas, era tudo ou nada. Foi nada mesmo, ela me explicou: “não vejo nada em ti.” Que dor terrível ouvir aquilo. O amor mais intenso que vivi morreu ali. Ou assim eu pensava. Nunca a esqueci. A procurei no Orkut, depois no Facebook. Voltamos a conversar, mas, na maioria das vezes ela me ignorava. Finalmente me bloqueou. Eu era um chatonildo. Nem sei se ela está viva ou morta, mas garanto que era uma chata, de perto ninguém é normal. Mas aquele amor idealizado está vivo, ressuscita seguidamente de madrugada quando estou sozinho. A relação morreu, igual a tantas outras, mas aquele intangível imaterial e inacessível, o amor, não.
Dia 16 de abril vai fazer um ano que minha mãe morreu. Esse texto foi escrito pensando nela, queria partilhar com vocês o que sinto agora. Ela morreu numa quarta-feira santa. Páscoa significa passagem. Já teve tantos amores que perdi. Amigos, mulheres, animais, parentes, até objetos. Tantos que percebi que a vida é uma passagem, uma eterna páscoa, eu ainda estou aqui, mas por pouco tempo, ainda que viva muito. Percebi que só o que ressuscita é o amor. Me acho um grande amante, amo francamente quem se dispor a me amar. Minha mãe me ensinou aquilo de amar o próximo, eu aprendi e sou grato a ela. Me ensinou a partilhar o pão também e eu aprendi. Não preciso nem sair de casa para baterem na porta para me oferecer pão e amor gratuitamente. A morte não é ruim, faz parte da vida. Acho que a vida sendo passagem, sendo também morte, vale a pena ser vivida. Obrigado a todos que estão ainda passando comigo pela amável convivência. Espero que tenham tido uma boa páscoa, eu tive.
                                               Agradecimento

         Entrei nesta Universidade há 12 anos, no hoje longínquo 1987. Passei no disputado vestibular de Engenharia Mecânica, logo na minha primeira tentativa, surpreendendo meus pais, meus amigos e ainda mais a mim próprio. Fiquei felicíssimo. Adorava mecânica, admirava as máquinas e mecanismos, amava principalmente a máquina bicicleta, sua perfeição e beleza. Estudava aquela máquina com fervor. Minha disposição, no começo do curso, era a de uma locomotiva, nada podia me parar. No entanto, aos poucos meu ânimo foi se desfazendo. O curso estava bem distante de meus anseios. Era impessoal e virtual, estudava profundamente questões microscópicas, invisíveis e abstratas. Tudo que eu queria era estudar coisas palpáveis e com aplicações práticas positivas na vida das pessoas. As aulas começaram a se tornar extremamente aborrecidas e os dias pareciam ser todos nublados e frios. Meus colegas eram todos deprimidos e tinham os olhos toldados. Os professores eram igualmente sombrios e ameaçadores. Não, aquele não era o curso onde eu iria aprender o que queria saber.
         Passei a me perguntar onde conseguiria o conhecimento necessário para satisfazer meus desejos de adolescente. Encontrei a resposta na Educação Física, curso que, me falaram, era extremamente prático, ligado a realidade e poderia me ensinar muito sobre o motor da bicicleta: a biomáquina corpo humano. Esta foi a minha desculpa para entrar nesta faculdade. Sim, eu precisei de uma boa desculpa para trocar de curso. Para minha família, para a sociedade e até para mim mesmo sair da engenharia e entrar na Educação Física era um retrocesso vergonhoso.
Comecei meio de lado, cabisbaixo, fazia duas cadeiras por semestre, meio sem querer. Ao entrar, já no primeiro dia, senti uma diferença brutal. Era oito e meia de uma manhã fresca de um dia de outono ensolarado. A aula era ao ar livre, a claridade nos inundava os olhos e o sol nos enchia de energia. O cheiro de grama molhada pelo sereno e o canto dos quero-queros preenchiam a atmosfera. O professor Rangel falava com toda a calma e transmitia muita paz. Eu ignorava por completo o conteúdo da cadeira: Atletismo. Os colegas eram sorridentes, simpáticos e comunicativos. E tchê... Mulheres... Metade dos colegas eram gurias, e lindas! Estávamos todos felizes, as faces resplandeciam, que sonho. O clima destes primeiros dias, ou melhor, destes primeiros semestres era de um êxtase eufórico, onde tudo parecia ser possível e a alegria era quase materialmente palpável em enormes faíscas que saiam dos olhos de todos. De todas as comunidades de que participei, a ESEF foi, sem dúvida, a mais vivamente feliz.
            Onde está a competição entre os alunos? Onde está o massacre psicológico dos professores? Onde está a depressão e a preocupação? Onde estão as salas de aulas com cheiro de mofo, bibliotecas escuras, banheiros depredados e sujos, funcionários irritados e professores frustrados? Não, na Educação Física estas coisas eram saídas de um livro de ficção que ninguém tinha lido. Fui ficando, por prazer. Aos poucos fui me apaixonando pelo objeto de estudo e reconhecendo sua importância na sociedade. Meus preconceitos de outrora me pareciam cada vez mais absurdos e infundados. Hoje em dia acho o nosso curso o mais importante que há na universidade para a sociedade. Minha vergonha, por ter um dia pré-julgado mal os professores de Educação Física, aumentava na mesma proporção que meu orgulho por ser estudante de assunto tão atual e indispensável. Passei a ser um aluno entusiasmado e satisfeito, fazia dez cadeiras por semestre sorrindo. Entrei para um grupo de pesquisa com a professora Flávia e para a monitoria com o professor Pelé. A ESEF me introduziu a ciência junto com a gargalhada. O professor Mário sempre dizia, mas eu na época não compreendia: “Aproveitem ao máximo o tempo que vocês passam aqui, é o tempo mais feliz de suas vidas, não tenham pressa de sair.” Eu reforço o que ele diz, a ESEF é surrealmente feliz e eu sinto muitas saudades!
Venho então, por meio desta, agradecer. Agradeço a todos: colegas, professores e funcionários. Gostaria de o fazer individualmente, abraçar cada um, mas é difícil, ficaria muito emocionado, então escrevo. Agradeço pela amizade, pelos sorrisos, pelos abraços e beijos, por todo afeto, pela acolhida tremendamente carinhosa, calorosa e festiva que recebi de vocês. Agradeço também a consciência crítica, o saber e a curiosidade científica. E por fim, agradeço as gurias da ESEF, sua sensibilidade, competência, perfume, sorriso e alegria, sem falar nas alcinhas, rendinhas, rabinhos e todo aquele arsenal de coisas que só a mística feminina tem.
Muito obrigado pessoal!


         Tiago de Moraes Alfonsin