terça-feira, 28 de abril de 2015

Em dia tão marcado por manobras da direita, receber uma corrêspondência destas é, ao mesmo tempo, doloroso, pelo perigo de voltar a viver situações como aquelas, e triste, porque agora não temos mais Bebel para nos iluminar. Como disse o frei no texto abaixo: eu vi, eu convivi. Ninguém me contou. Não foi uma nem duas vezes que fui obrigado a ir com a mãe nas vilas da Ilha Grande dos Marinheiros. Foram dezenas de vezes. Toda a semana, se não me engano eram às quintas à tarde. Dias frios, com enchente ou mesmo sol torrando, os ratos correndo sem medo na nossa frente, não interessava o clima, era sagrado, nós tínhamos aquele compromisso. No começo eu gostava, tinha uns dezoito anos e a mãe deixava eu ir dirigindo o fuquinha pelas estradas, até atravessávamos a ponte do Guaíba!!! Primeiro pássavamos nalguma "companheira", pegávamos alguma mulher fedida em uma vila pobre, depois seguíamos para o moinho, pegar farinha. Daí tocávamos para a ilha. Era miséria em cima de miséria. Eu odiava aquilo!!! Não tinha nada lá minimamente atraente para um guri bem alimentado e bem vestido de classe média alta como eu. Fora, claro, o fato de passar por atoleiros de fuca carregado de farinha!! Eu assisti aquelas cenas de crianças e mulheres sujas e descalças correndo para encontrar conosco. Primeiro largávamos as farinhas nalguma maloca miserável, depois uma escolinha que o grupo de mulheres tinha construído com as próprias mãos, depois a escolhinha ficava maior e assim ia ao longo dos anos. E isso era em várias favelas de Porto Alegre. A Bebel, abnegadamente, ia escutando, organizando, trabalhando junto delas. Agora me dou conta, mas aquilo era o início da organização do povo para conseguir no governo federal o bolsa família, as cotas nas universidades, o minha casa minha vida, uma presidente mulher no planalto. Para mim era insuportável aquelas visitas, eu queria sair correndo. Me doía, eu não queria ver nem saber nada daquilo. Um dia eu falei: Chega!!! Não vou mais na ilha!!! Não quero mais isso, isso nunca vai ser diferente!! Nós só estamos sujando os tênis aqui. Mas, passada uma semana, lá estava eu de novo, carregando sacos de farinha, pulando poças e sentindo o cheiro da miséria. A Bebel era muito convincente. Eu não me tornei uma Bebel, lutadora do front, das trincheiras fétidas. Loooonge disso. Mas, pelo seu exemplo de amor ágape, aquele amor que Jesus falava, Bebel me oferecia a outra face. Ela me armou para a luta, para ser justo e solidário pelo menos na hora do voto. Lutando só com o amor, a solidariedade, a união, elegemos primeiro Olívio Dutra para prefeito de Porto Alegre, aquilo foi uma revolução!! As prioridades mudaram totalmente! Como Bebel fazia, a nova administração passou a perguntar para todos o que precisavam mais e a ajudar no que pudessem. Rapidamente, as favelas começaram a mudar de cara. Casinhas de material e pátios, asfalto, água encanada e luz. Isso resultou em quatro administrações seguidas do PT em Porto Alegre. Bebel andava sempre fardada para aquela luta, nas eleições levantava bandeira!! As elites, para retomar o poder no voto, tiveram que assumir as mesmas bandeiras. Aquele trabalho formiguinha de amor fraterno, solidário e libertário, pregação de Jesus, líder espiritual de Bebel (e da revolução francesa), havia vencido! Agora, a elite usa novamente suas armas, o ódio, a desunião, a manipulação e, como na ágora grega, a maioria dita o que sera feito. Tomara, as bebéis e dilmas se unam de novo e resistam a este ataque covarde. Que elas consigam retomar os valores repúblicanos e cristãos de igualdade. Aí está o texto que me foi enviado hoje sobre minha mãe:
Belinha – Uma Flor em Espírito na Ilha
As crianças vinham ao encontro com semblante de tristeza. Sim, existem crianças tristes. Eu vi. Convivi. Presenciei grupos de meninos e meninas maltrapilhas acompanhando suas mães. Algumas das mulheres adultas eram avós, outras irmãs mais velhas. No outro lado da estrada empoeirada, a beira do rio, algumas flores de gramíneas rasteiras contrastavam com os entulhos e sobras de materiais sem nenhum valor para reciclagem. Na outra margem, mais adiante, a silhueta da cidade de Porto Alegre, que se focada a partir de um prisma e ângulo determinado, poderia ser uma paradisíaca paisagem. Uma foto para um cartão postal. Virando para o lado leste, de costas para a cidade, uma fileira de casebres costeando uma trilha para carroças que chegavam com materiais recolhidos para reciclagem. E mais adiante, além de outro canal do rio, a paisagem da Ilha das Flores, bem descrita e demonstrada pelo filme homônimo de Jorge furtado.
Eram os anos oitenta. Muita fome, desemprego, êxodo, andarilhos, pessoas andando e se mudando rapidamente. A Ilha Grande dos Marinheiros possuía suas vilas com características próprias. Mesmo que se quisesse cortar da fotografia as crianças tristes, seria impossível escapar do cenário sub-humano, pois se escapasse aos olhos, do ouvido era impossível. As crianças tristes choram. Semelhante a um lamento que ao sentimento humano é cortante. Vem do fundo de uma alma que sequer entende ou compreende porque está chorando. E o contraste está ali. Nu e cru, diante de um grupo que acaba de chegar para se encontrar com as mulheres e crianças da vila estabelecida no lado Norte da Ponte do Guaíba.
“É fome meu irmão”, dizia uma mãe para mim, como que se quisesse justificar o comportamento de uma criança em seu colo. Um bebê com aspecto subnutrido, aparentemente de 1 ano. Corria uma conversa na Ilha que as mães estavam fervendo papelão com água do rio para colocar na mamadeira dos bebês. Era a forma para não serem atormentadas pelo choro de fome durante a noite. Uma reportagem de um jornal, na ocasião, divulgou o tema como denúncia, e para variar, nada de denunciar os culpados pela suposta situação. E a mãe, como que num gesto de desespero, de sobrevivência de seu filho, compartilhava seu choro no grupo, que possivelmente era seu único recurso que restava para pedir ajuda.
As mulheres da Ilha chamavam de irmãos e irmãs a todas as pessoas que chegassem com algum tipo de socorro ou ajuda. Era uma forma carinhosa e de respeito. Também era um misto de confusão entre o reconhecimento do trabalho social com a inserção de diversas pessoas com trabalhos religiosos. Lembro-me de um dia em que estávamos eu, o Irmão Antônio Cechin , a Matilde Cechin, um cidadão voluntário de uma sociedade espírita, um professor do colégio, outras assistentes sociais de uma organização religiosa, enfim, havia uma tratativa de juntar esforços para que o trabalho social fosse melhor organizado. Todos no pátio da igrejinha a beira da estrada. Era a roda que se fazia antes de iniciar mais um encontro. O grupo de mulheres que costumavam participar dos encontros vinha chegando e cumprimentavam: “boa tarde irmão”, “boa tarde irmã”.
Enquanto as pessoas contavam os últimos acontecimentos da Ilha nestas rodas costumeiras antes dos encontros, via de regra, sempre acontecimentos catastróficos, um certo dia percebi que quando chegou mais uma pessoa da equipe, mal pisou no pátio e chegando no grupo, possivelmente sem ninguém perceber, as mulheres e crianças foram se aproximando, cercando, sem romper com a roda que estava formada. Estava lá a Belinha no centro do grupo. Estava lá ela, tocando as crianças no colo das mães. Abraçando aquelas mulheres de fisionomia e corpo sofrido. E apesar de todo o desespero que acabavam de contar para o grupo, acreditem, estas mulheres começavam a sorrir. E parecia que estavam a lhe dizer: “tu és nossa esperança.”
O sorriso de uma mulher pode sim contagiar outras pessoas. Mas não seria o suficiente para animar o grupo no estado desumano e de prolongado sofrimento que se encontravam. Mais que o sorriso, a presença irradiava uma luz que parecia atravessar os corpos. Sua presença física alterava o estado de espírito das pessoas, onde muitas vezes se demonstravam agressivas, estado psicossocial justificado pelo ambiente vil em que viviam. Vi mulheres alteradas e tomadas de ira chamando de “ Minha Irmã” para a Belinha numa ternura inexplicável. Acho que pessoas iluminadas não possuem somente corpo e espírito. São possuídas de poderes especiais que não os conhecemos.
A minha opção pela militância social desde bem jovem me privilegiou em conhecer e ter trabalhado em diversos lugares com o Irmão Antônio Cechin e a Matilde Cechin. Foram eles também que viabilizaram um quarto em madeira crua para eu morar, nos fundos de uma igreja, na Ilha Grande dos Marinheiros. E foi lá que pude conviver, vivenciar e sentir o mundo da marginalização humana, do descaso público e da mais profunda hipocrisia que se mantêm até hoje na sociedade. Da surdez e da cegueira de quem só ouve o que quer e só enxerga o que lhe interessa. A dimensão humanitária de tratar com quem está em situação sub-humana exige envolvimento, desprendimento e dedicação. Trocar o conforto não só pelo desconforto, mas muitas vezes acrescido de sacrifício muito forte. É amar quem é mais difícil de amar. É doar-se e entregar-se a quem nem sempre retribui de forma correspondente. Mais que isso: é não esperar retribuição e nem recompensa.
Eram idos dos anos 80. As mulheres da Ilha, como nós carinhosamente as chamávamos, começaram a se organizar e se articular com outros grupos de outras vilas de Porto Alegre e de Canoas. O tema da reciclagem e do lixo não era pauta da sociedade burguesa. As carrocinhas que atravessavam a ponte do Guaíba eram um grande estorvo para a sociedade dominante. Foi dentro do escopo deste confronto que o tema contribuiu para o surgimento do emblemático movimento dos PROFETAS DA ECOLOGIA. Mas foi, sobretudo, a organização dos grupos de mulheres que garantiu a continuidade e a estruturação de longo prazo do movimento dos recicladores, hoje espalhados não só na Grande Porto Alegre, e sim em todo o Brasil.
Entre as características que me marcaram na atuação da Belinha nas atividades da Ilha e início da organização dos recicladores era a valorização dos coletivos. Dos grupos. Não individualizava as ações. Era o grupo de padaria, grupo de artesanato, grupo de costura e assim por diante. Outra característica era o respeito às diferenças e a capacidade de integrar e conseguir organizar trabalhos com pessoas tão diferentes. Um desafio para qualquer estudioso da psicologia social. Possivelmente sua luz especial contaminava estes grupos, possibilitando uma convivência mais humana. Mas nem sempre foi fácil. Muitos momentos de mística tiveram que ser preparados para manter grupos, que pela condição, o desânimo imperava em suas rotinas. E lá chegava ela com uma mística que fazia ressurgir a esperança daqueles grupos de mulheres.
Por fim, afirmo que nos dias atuais nunca precisamos tanto do espírito da Belinha. Num mundo onde a ação social virou uma mercadoria em que as empresas apresentam números; onde existe muita “profissionalização” de militantes sociais; e pouca opção e entrega de fato, nada mais oportuno do que invocar o espírito de quem nos inspira. Por outro lado, o da esperança, confesso que estou encontrando alguns jovens com este espírito. Eu não perdi a esperança. Apesar de tudo, vai haver quem não compactua com os valores postos pelos grupos dominantes. Estes jovens incorporarão valores distintos dos preconizados pela sociedade dominante e se tornarão exemplos vivos de pessoas que buscam a paz e o bem-estar dos outros.
Eu quero incentivar qualquer pessoa que queira ser militante social. Quero ajudar o possível, dentro de meus limites. E especialmente quando são mulheres. Gostaria de participar de uma mística coletiva de iniciação. E pronunciar em versos ou cantos:
“TE BATIZAMOS EM NOME DA BELINHA,
DE SEU ESPÍRITO E DE SUA LUZ.
TE ENVIAMOS, PARA QUE LEVES FLORES AOS TRISTES,
ÁGUA LÍMPIDA E POTÁVEL AOS SEDENTOS,
E NATUREZA VIVA ONDE ELA ESTÁ MORTA.
E ELA TE ACOMPANHARÁ POR TODOS OS CAMINHOS QUE ANDARES.
E QUE ASSIM SEJA”
Nilson Pilati
Verão meridional de 2015.

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