domingo, 5 de abril de 2015

Morte, páscoa e ressurreição.
Namorei uma coroa que curtia os animais. Ela tinha vários, mas não esses normais que as pessoas tem, como gatos, cachorros e passarinhos. Ela tinha aqueles bichos comuns em fazendas porque morava num sítio e tinha muito espaço. Era uma verdadeira arca de Noé aquela casa. Tinha codornas, coelhos, perus, galinhas, galinhas de angola, cavalos, pôneis, burros, cabritos e ovelhas. Era uma coisa linda de se ver quando todos estavam soltos no potreiro a beira rio pastando e ciscando a vontade. Nenhum animal era criado para comer, eram só para contemplação e convivência. Como num filme da Disney, esse mundo perfeito foi sacudido por um abalo do mal e uma grande luta se fez necessária até se voltar a normalidade feliz. O dono do sítio, que era alugado, o queria de volta e deu 60 dias para que aquele zoológico saísse dali. Muitos outros sítios foram buscados, mas não se encontrava nada com as características necessárias. Com o prazo se esgotando, minha namorada apelou para uma casa provisória na cidade mesmo. Eu construí uma pequena estrebaria e todos os animais ficaram confinados num pequeno espaço de 15 por 40 m durante uns seis meses até que outro sítio fosse encontrado. Que confusão era aquele pequeno pátio. Logo toda a vegetação do lugar foi comida e todos os alimentos tinham que então ser trazidos de longe, de carro, rações industrializadas. Era uma trabalheira, eu estava num momento de vida que tinha tempo, então ajudava no que podia para "tratar" a bicharada. Logo os animais começaram a adoecer por estar naquele ambiente apertado e insalubre e alguns morreram. Era um barral desgraçado e tinha muito estrume por tudo. Por incrível que pareça a vida seguia seu rumo e alguns animais nasciam também! O pátio virou atração na cidade e as crianças vinham observar da cerca os bichinhos recém-nascidos pulando contentes apesar de tudo. Um enorme carneiro morreu do nada, nem deu sinais de sua doença, só amanheceu morto. Como todos os animais, esse também tinha nome, era o Alvinho, por ser todo branco. Como pesava uns 120kg não era qualquer buraquinho que caberia sua carcaça. Decidimos levá-lo dali para servir de alimento aos urubus nalgum ermo distante. Eu e um vizinho quase morremos para colocá-lo no porta malas do carro. Bom, ele morrendo, sua "esposa", a Manchinha, uma enorme ovelha negra com uma manchinha branca na cabeça, ficou viúva e sozinha com aqueles outros de espécies diferentes. Foi um momento bem triste, a gente sempre sente muito a morte de algum animal que convivemos. Para compensar, a Mel, uma cabrita marrom, pariu um par de gêmeos aquela semana: Tutti e Frutti. Cabritinhos são lindos e alegres, mal nascem e já sabem caminhar, em um dia correr e em uma semana saltar. Numa manhã fria de final de inverno fui tratar os burros na estrebaria e lá estavam a ovelha Manchinha, a cabrita Mel e seus três cabritinhos... opa... três? Não eram dois? Parei, com os sacos de ração na mão, sem entender a situação e contei com calma. Sim, tinha três agora!! E um todo preto e diferente. O bicho era esquisito, feio que dói, tinha uma orelha maior que a outra e caminhava com dificuldade, meio corcunda, não era esperto e rápido como os outros cabritinhos. Mas como, pensei, não tinha nenhuma cabrita prenhe! Será que algum vizinho da cidade tinha abandonado aquele quasimodo ali na esperança que nós cuidássemos? Reparei que o cabritinho negro não saia de baixo da Manchinha. Demorou um pouco, mas a ficha caiu. Não era cabrito nenhum, era uma ovelhinha, filha da Manchinha! O Alvinho tinha sido pai! E nós, tolos e ingênuos, achando que tinha morrido virgem há dois meses. O alvinho tinha deixado prole, ainda vivia. Uma grande emoção me tomou. Pedi licença para manchinha e peguei no colo aquele serzinho. Até que aquela coisinha horrorosa era simpática. A enorme lã que envolvia a ovelha não nos deixou perceber sua gravidez e aquele parto discreto nos deixou surpresos. O alvinho ressuscitou, bem menor e com a cor inversa, depois de dois meses de falecido, para que de novo eu o amasse.
Eu ia de bicicleta para a faculdade de engenharia. Era longe, quase em viamão, no campus do vale. Ninguém mais ia de bicicleta, só eu. Os pobres iam de ônibus e os ricos de carro, os estacionamentos eram enormes... devem ser ainda. Eu era uma aberração na época. No meio do semestre surgiu outro cara de bicicleta. Achei uma maravilha aquilo e fui falar com ele. Ficamos grandes amigos na mesma hora, seu nome era Felipe. Era mestre em bordões engraçados, todos os que uso até hoje são dele. Tinha uma bicicleta americana muito ruim, mas num formato inédito para as bicicletas brasileiras, era uma mountain bike. Naqueles tempos, recém o Collor tinha aberto as importações, para se ter uma BMW tinha que pagar cinco, então produtos importados eram raros. Felipão passou a pedalar com nosso grupo de ciclistas de montanha, todos os poucos porto-alegrenses que tinham uma mountain bike. Íamos para fora de Porto Alegre, para trilhas em Gravataí, subíamos e descíamos morros o dia todo e comíamos vergamotas e caquis no pé. No alto de algum morro fazíamos uma pausa para descansar e conversar. Era um grupo de uns cinco ou seis só, dependendo da disponibilidade de cada um, com bicicletas compradas no exterior ou feitas a mão olhando fotos de revistas americanas. Nós ríamos muito e contávamos causos e mais causos, fazíamos planos de viagem e arquitetávamos bicicletas inovadoras. Eram momentos muito alegres e alvissareiros. Aos poucos, cada um foi tomando seu rumo na vida e o grupo se desfez. Eu larguei a Engenharia e, um ano depois, Felipão também. Falávamos pouco, a internet era uma coisa nova e cara. As redes sociais eram só as reais, não havia ainda as virtuais. Fiquei sabendo que foi fazer um mestrado no Ceará, daí o Felipe sumiu. Ainda o revi uma última vez, no seu casamento, depois nunca mais. Anos depois lembrei do amigo e digitei no google seu nome. Achei sua dissertação e até seu email. Mandei uma correspondência eletrônica e passamos a conversar por meios cibernéticos, agora bem mais populares. Ele estava morando na Suiça, era programador de computadores. Tinha virado um incluido no primeiro mundo. Ganhava bem e planejava se aposentar aos cinquenta anos. Estava feliz, casado, com filho e bom emprego. Era ambicioso e queria ficar rico. No final do ano a firma para qual trabalhava fez uma festinha de comemoração num luxuoso resort em Liechtenstein. Felipão caminhava numa trilha da floresta quando caiu desmaiado de cara na neve. Os amigos que o acompanhavam acudiram e chamaram o resgate, mas ele já tinha feito a passagem. Aos 40 anos meu amigo morreu do coração. O primeiro sintoma de muitas patologias coronárias é a morte súbita. Depois de muita burocracia para liberação e translado do corpo, liberação do seguro de vida e tudo mais que essas situações exigem, Felipão foi velado e enterrado em Porto Alegre. Viajei de Floripa, onde eu naquele momento morava, para as cerimônias fúnebres. Nossa, eu chorava mais que a esposa. Coitadinho do Felipe, tinha tantos planos. A rede social virtual agora possibilitava encontros com quem conhecia bem meu finado amigo, então passei a me corresponder com sua esposa e irmãs. Passados mais uns anos voltei a me encontrar com sua irmã Thaís. Felipão está ali, de alguma forma, vivo, com todo seu humor, sua argúcia, seu sorriso, sua erudição e mesmo suas mazelas. Seus genes e memes tem vida eterna.
Tinha outro amigo, que também cursou engenharia, que era diferente. O Schaan foi colega da Verô no Colégio, eu fui seu amigo por uns 20 anos. Ele fez engenharia civil na UFRGS, terminou quando eu estava entrando. Depois que se formou, saiu a viajar. Foi a lugares que nós só ouvimos falar em lendas. São lugares tão esquisitos que nem sequer em fotos um brasileiro comum já teve a oportunidade vê-los. Viajou de bicicleta e trem pela China, andou de barco na Tailândia, tomou banho de praia e alugou um scooter em Bali, teve uma namorada japonesa no Japão, atravessou os Estados Unidos de costa a costa numa bicicleta, pegou aquele famoso trem transiberiano até Leningrado (na época, São Petersburgo se chamava assim), morou na Inglaterra dois anos, morou na Suíça por seis meses (ele tem passaporte italiano), viajou por toda Europa de trem, foi duas vezes a Cuba, subiu os Andes no Chile e na Argentina, gostava de passar os feriados numa praia escondida do Uruguai, o mundo era pequeno para ele. Depois de visitar o mundo todo ele voltou para casa. Voltou porque aqui era o lar, the green, green grass of home. Ele pertencia a Porto Alegre e sentia que tinha uma dívida de amor com a cidade. Então, ele voltou e fez um mestrado em engenharia. Fez porque não sabia o que iria fazer, não se sentia muito bem encaixado no “sistema”. Fez porque tinha uma bolsa legal, dava para viver enquanto estudava. Fez porque achava que seu conhecimento, adquirido ao redor do mundo, valia a pena partilhar com a comunidade. E fez também por que era capaz. A dissertação dele foi sobre a viabilidade das ciclovias aqui em Porto Alegre. Ele acreditava, e lutava, para que seu trabalho fizesse diferença na qualidade de vida da comunidade. Ele, talvez ingenuamente, preferia o bem da comunidade do que o luxo individual. Este cara não tinha nada. Morava num pequeno apartamento que os quatro filhos da mãe dele, que morreu, herdaram. Ele pagava um aluguel simbólico aos irmãos. Lá dentro tinha muitas fotos, discos e livros em vários idiomas, mas nenhum “ar-condicionado”, e era até bem bagunçado. Teve uma vez, acho que era 2003, que vendeu um fusca 82 para comprar um gol 88. Mesmo com todas suas qualificações em engenharia e podendo ter qualquer carro do ano, vivia de dar aulas de Inglês para alunos particulares, lá mesmo, no seu apartamento. O cabeludo Schaan tinha um cabelo e uma barba preta desgrenhados e enormes, que o deixavam com uma aparência de urso. O cara tinha uma namorada bem bonita, mas muito simples, que ele adorava. Este outro amigo se dizia satisfeito com a vida e não fazia planos. E estava mesmo, era só olhar seus olhos brilhantes. Ambicionava nada, mas sua gargalhada era constante, e ele chegava a parar o que estava fazendo para olhar o céu e poder rir melhor. O seu sorriso era entalhado na cara magra. Suas piadas são as mais engraçadas que eu já ouvi. Eu ficava feliz só de estar com ele. Era rico este meu amigo pobre. Uns anos depois que fui morar em Floripa, ele desenvolveu câncer. Quando pude visitá-lo no hospital ele já estava um esqueletinho. Aquele baita homem de 1,92m de altura, morreu aos 37 anos com 39kg e um monte de escritos que desejava publicar inéditos. Como chorei naquele velório. Não deu dois anos de seu enterro e inauguraram uma ciclovia na Av. Diário de Notícias em Porto Alegre como o nome de “Ciclovia Engenheiro Eduardo D’Agord Schaan”. O Schaan não morreu, vive não só por decreto da câmara municipal numa placa da cidade, mas ressuscita toda vez que alguém que teve o privilégio de sua convivência ri de suas piadas e almeja viver uma vida tão intensa e prazerosa como a dele.
Morei na Europa e aprendi o inglês, voltei fluente depois de dois anos por lá. Mas, para a sociedade, aquele conhecimento não valia nada, não tinha algum papel que legalmente o legitimasse. Então procurei a melhor escola de inglês da cidade para me dar um diploma. Fiz uns testes e me colocaram no fim do curso, queriam me fazer pagar caro pelo diploma, eu teria que fazer quatro semestres. Tudo bem, topei. Tinha uns cursos intensivos de férias e, para ir mais rápido, me meti lá, um semestre em um mês. Era longe de casa e à noite, mas azar. Dia cinco de janeiro, no primeiro dia de aula, lá estava eu.  Porto Alegre todo, àquelas horas, estava na praia tomando picolé na fresquinha da noite e, portanto, minha turma era pequena. Eu e mais duas mulheres, sendo que uma freira. A freira logo saiu, foi transferida para Itália. Ficamos eu e uma loura alta e bonita. Carolina tinha uma aparência típica de dondoca porto-alegrense, mas, conforme o curso avançava janeiro adentro, percebi que a guria tinha estofo. Era bem mais jovem que eu, mas falava inglês muito bem e articulava frases que me surpreendiam por sair daquela boca tão desejável. Ela não era uma loura burra, apesar da aparência clichê. Em um mês eu já estava com os quatro pneus arriados por ela, inebriado por uma paixão avassaladora. Me declarei e mandei flores, escrevi cartas de amor, dei presentes mis, levei para jantar fora e assistir teatro, caminhar no bric e conversar horas. Nos dávamos super bem, para mim era uma obviedade, mas a guria não achava. Me esnobava valentemente, apesar de sadicamente me manter ao alcance das mãos. Fizemos os quatro semestres juntos. Eu sofria demais com aquela convivência só no mundo das idéias. Queria abraçá-la, beijá-la, amá-la. Me atirei ainda mais, me humilhei, apostei todas as fichas, era tudo ou nada. Foi nada mesmo, ela me explicou: “não vejo nada em ti.” Que dor terrível ouvir aquilo. O amor mais intenso que vivi morreu ali. Ou assim eu pensava. Nunca a esqueci. A procurei no Orkut, depois no Facebook. Voltamos a conversar, mas, na maioria das vezes ela me ignorava. Finalmente me bloqueou. Eu era um chatonildo. Nem sei se ela está viva ou morta, mas garanto que era uma chata, de perto ninguém é normal. Mas aquele amor idealizado está vivo, ressuscita seguidamente de madrugada quando estou sozinho. A relação morreu, igual a tantas outras, mas aquele intangível imaterial e inacessível, o amor, não.
Dia 16 de abril vai fazer um ano que minha mãe morreu. Esse texto foi escrito pensando nela, queria partilhar com vocês o que sinto agora. Ela morreu numa quarta-feira santa. Páscoa significa passagem. Já teve tantos amores que perdi. Amigos, mulheres, animais, parentes, até objetos. Tantos que percebi que a vida é uma passagem, uma eterna páscoa, eu ainda estou aqui, mas por pouco tempo, ainda que viva muito. Percebi que só o que ressuscita é o amor. Me acho um grande amante, amo francamente quem se dispor a me amar. Minha mãe me ensinou aquilo de amar o próximo, eu aprendi e sou grato a ela. Me ensinou a partilhar o pão também e eu aprendi. Não preciso nem sair de casa para baterem na porta para me oferecer pão e amor gratuitamente. A morte não é ruim, faz parte da vida. Acho que a vida sendo passagem, sendo também morte, vale a pena ser vivida. Obrigado a todos que estão ainda passando comigo pela amável convivência. Espero que tenham tido uma boa páscoa, eu tive.

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