sábado, 13 de novembro de 2021

 A máquina engolidora de mongas



Fiz o curso Técnico em Mecânica no segundo grau. Os quarto e quinto anos foram os mais divertidos para mim na época. As aulas eram à noite, nos pavilhões industriais da escola, nem víamos os adolescentes dos turnos da manhã e tarde. Quem estava ali eram pessoas interessadas em aprender, já adultos, maduros, pessoas que trabalhavam durante o dia. O ambiente era de muita camaradagem, não havia “bullying” entre os alunos, eu me sentia muito bem. Mais de noventa por cento dos colegas eram homens, a maioria do interior, estudavam com muito esforço. Eu era o oposto deles, era um almofadinha da capital, frequentava cinemas e peças de teatro, tinha muitos livros em casa, já tinha viajado bastante. Visivelmente, meus colegas tinham repertório cultural bem mais acanhado, eu cuidava para não falar nada que me denunciasse, pois não queria que me vissem como diferente. Eu gostava de ser tratado como igual, mas era um esforço quase inútil, pois eles logo percebiam que eu era um infiltrado, um espião de classe. Eram todos muito inteligentes e batalhadores, sonhavam em comprar carros e aparelhos de som “3 em 1” (coisas que eu já tinha acesso). Tinham um humor ingênuo, pueril, que só tinha graça naquele contexto, riam alto, troçavam uns com os outros aos gritos. Um dos colegas chamava Jair. Jair era bem discreto, não falava muito, mesmo diante das maiores piadas, sorria em vez de gargalhar como todos os outros. Seus movimentos eram lentos e cautelosos, seus olhos muito azuis e o cabelo preto bem liso penteado para o lado. Sua voz era baixa, assistia as aulas de braços cruzados como para se proteger do resto da turba e alguns o achavam afeminado. Jair usava sempre o mesmo casaquinho de lã, daqueles que abrem com botões, com um padrão de losangos na frente. Uma ocasião, estávamos numa aula prática de usinagem de metais. Alguns em volta do torno, outros lidando com a fresadora, eu e o Jair estávamos na plaina, o professor nos ensinava como operá-la. Eu observava tudo com paixão, ficava o mais próximo possível para olhar de perto. A plaina ia e vinha com calma e a cada passe arrancava do metal uma molinha incandescente fazendo um ruído característico: ffffffsssss. Aquilo me fascinava. Eu pensava em quando teria minha própria plaina no meu pavilhão industrial particular. Jair distraidamente se inclinou um pouco mais para melhor observar o passe da ferramenta da máquina no metal e, por azar, o botão da ponta de seu casaquinho de lã aberto na frente se enganchou numa polia da máquina que começou a puxá-lo velozmente para a morte certa. Aquela máquina, por seu tamanho e inércia, faria guisado do Jair em segundos. O professor, atento, deu um salto e apertou o botão de emergência a tempo para fazer a máquina parar. Jair não perdeu a vida, mas seu casaquinho de losangos azuis e vermelhos ficou todo mastigado e rasgado por um monstro mecânico. O professor chamou todos os alunos para assistir Jair se desenrolando da máquina, com um hematoma na lateral do tronco, passou um sermão sobre segurança, roupas adequadas no trabalho e procedimentos de emergência. Nos ensinou como uma máquina tão boa, poderosa e útil poderia se tornar vilã se mal utilizada. Ficamos todos pensativos e silenciosos, pois o momento era grave. No entanto, no outro dia, algum colega não perdeu a piada. Escreveu numa folha de caderno e adesivou na máquina o seguinte aviso: Cuidado, máquina engolidora de mongas.

Minha vida acadêmica não parou no curso técnico. Diletante, sai no meio da Engenharia Mecânica para fazer Educação Física, mas no mestrado voltei a Engenharia. Numa das aulas da pós-graduação, um daqueles doutores capazes de apertar botões de emergência nos ensinou os ativos que viriam a ser importantes no futuro, depois do colapso da modernidade: o conhecimento, o contato com a natureza, o acesso à água potável e o silêncio. Os ricos terão isso. Me senti rico instantaneamente, pois meus planos de vida miravam exatamente nesses valores. No curso de gestão ambiental, recomendaram a leitura do livro “Primavera Silenciosa”, da bióloga marinha e ecologista Rachel Carson. A obra é fundadora de um movimento ambientalista mundial. Carson previa que o uso em massa dos agrotóxicos nas lavouras industriais acarretaria uma extinção em massa dos insetos e em efeito dominó de muitas outras espécies que se alimentam deles, de peixes a aves. Segundo ela, depois de um certo ponto, quando chegasse a primavera, não teria mais o renascimento da vida, o silêncio seria total, nem cantos de passáros nem zumbido de abelhas, a natureza teria morrido e nós, a espécie causadora de tudo, também logo pereceríamos, pois os insetos são os polinizadores, a base da vida no planeta. A previsão da bióloga não está longe, no Rio Grande do Sul, estado que mais produz mel no país, os apicultores estão sendo obrigados a deixar o negócio, pois colmeias inteiras aparecem mortas ou simplesmente somem. Esse fenômeno é mundial. Basta visitar uma lavoura de soja para se perceber um deserto verde. Mesmo ao ar livre o ambiente é de laboratório, como se estivesse isolado do meio ambiente natural, não há insetos ou minhocas no solo e a terra é somente uma espécie de esponja onde se joga químicos para plantas transgênicas brotarem sob a luz do sol. O herbicida pulverizado mata tudo, exceto a planta cultivada. A empresa que fabrica o agrotóxico é a mesma que produz a semente da planta que resiste a ele, uma venda casada hiper produtiva. Porém, infelizmente, o veneno que é bom para a produção também é levado pelo vento pulverizando também as florestas do entorno e se infiltra no solo com a chuva contaminando mananciais que chegam até o mar através dos rios. Rachel Carson não usou o termo, mas o que previu foi o antropoceno, a sexta extinção em massa, essa causada não por alguma chuva de meteoros, mas pelos próprios seres humanos e sua sanha econômica.

O sucesso de nossa espécie em se DESenvolver da natureza, ou seja, não se envolver com ela é efetivo e em escala global: estamos acabando com tudo para ficarmos sós dentro de um shopping-center, sem um mosquito sequer, onde não chove nem venta e onde não se tem nem onde tropeçar. Não estamos extinguindo somente animais e plantas, mas também minerais e até mesmo rios, lagos, mares, solos agricultáveis, correntes marinhas e o regime de ventos. Estamos indo a toda velocidade em direção a própria extinção, não temos o cuidado nem de preservar o solo onde produzimos o que comemos que estão sendo erodidos para assorear rios e mares. A indústria chinesa, uma das locomotivas da economia mundial, está atualmente em marcha lenta por falta de microchips. Está difícil de encontrar os raros metais necessários para sua produção, estão em extinção. O aquecimento global causado pela atividade humana é tão rápido que está causando uma paralisação nas correntes marinhas. O desmatamento de florestas está causando uma mudança no regime de chuvas em locais muito distantes delas. Os sinais de nossa eficiência em transformar o planeta estão cada vez mais evidentes. Algumas pessoas são “whistleblowers”, apitam o mais alto que podem para nos alertar sobre os fatos e tentam instruir a humanidade para como utilizar bem a máquina do industrialismo, mas o fato é que construímos uma gigantesca e inerte máquina de engolir mongas distraídos de seus perigos e nossos casaquinhos estão sendo rapidamente enrolados por ela. 

Depois daquelas aulas do mestrado, decidi abandonar a Babilônia viciosa da cidade grande e me mudei para um sítio num lugar ermo, vizinho a uma reserva estadual de proteção ambiental, a Barra do Ouro em Maquiné, próximo à natureza, com água potável e muito silêncio, onde o conhecimento poderia chegar através das ondas de rádio da internet. Por sete anos, me envolvi na natureza o melhor que pude e me senti muito rico, apesar de parecer extremamente pobre aos olhos de alguém da cidade. Mas, minha simples presença na beirada da floresta causava um forte impacto ambiental. Não foram poucos os passarinhos que morreram ao bater na vidraça da minha janela. Não foram poucas as aranhas e cobras que me vi obrigado a matar para sobreviver. Adotei animais domésticos para me proteger, predar ou espantar possíveis ameaças. Trabalhei o solo e transformei o local para se adaptar a mim e não o contrário. Mas, assim mesmo, me sentia indo na direção certa, plantei flores e árvores frutíferas que atraiam muitos pássaros e abelhas. Ficou tudo cheiroso e saboroso, lindo e colorido, aos meus olhos um lugar bem agradável de se viver.  



Depois de sete anos tentando morar em harmonia com a natureza, fazendo o mínimo barulho possível e cultivando a vida na minha casinha do morro, bem quando a fibra ótica chegou na Barra do Ouro para bombar meu acesso a internet e ao conhecimento, algumas famílias vieram morar próximas a mim, também atraídas pelo baixo preço dos terrenos na região desassistida de tudo. A cultura deles era muito diferente da minha, queriam se desenvolver da natureza e não se envolver com ela como eu. A primeira coisa que fizeram foi pulverizar veneno no chão para que não nascesse mais nada e não precisassem cortar a grama. Além disso, tinham o hábito de ouvir música a todo volume e acelerar o motor do automóvel rebaixado, mesmo parado, a altos giros. Enquanto acordados, os alegres vizinhos falam alto, aos gritos, riem alto, seu humor é pueril, soam como um recreio de escola, até jogam bola e correm uns atrás dos outros as gargalhadas. O ruído intenso e a fumaça parece que elevam seu status social entre os vizinhos, é a vitória sobre o silêncio da natureza. Quanto mais barulhento, mais desenvolvido da natureza, uma alegria para eles. A presença desses vizinhos transformou minha vida em miserável, pois acabavam com muitos dos mais caros valores de minha vida. Seu gosto musical era também bem diferente do meu: muito funk, sertanejo, músicas gauchescas e pagode. As letras eram perfeitamente audíveis da minha casa e muito comezinhas: amores perdidos para uma competição desleal, ciúmes, desejo de consumo de carros e motos caras, entre outras. O tom das letras é sempre barraqueiro, violento, de sofrimento, de conflito, de vingança. Logo me vi obrigado a entrar em uma luta judicial contra eles, pois o educado diálogo sem alteração de voz era inútil. 

Li uma reportagem da BBC News Brasil (O som mais ameaçado do mundo, 7/11/21) sobre a pesquisa de um ecologista acústico, Gordon Hempton, que me tocou fundo. Nela, o cientista diz que o silêncio está em extinção, assim como os insetos. Perceba que ele vai no sentido contrário a Rachel Carson. O problema não é que teremos primaveras silenciosas, o problema é teremos primaveras ruidosas demais. Mas o ecologista está afinado com minha professora do mestrado, Sandra Sulamita Nahas Baasch, que dizia que o silêncio é um dos ativos da pós-modernidade, será rico quem o usufruir. Segundo Hempton, o silêncio não é ausência de som, mas o silenciamento de toques de celular, dos motores, das britadeiras, enfim, da poluição sonora produzida pelos seres humanos que tomaram conta do planeta. Éramos um bilhão em meados do século XIX, mas agora em 2021 já somos oito bilhões, o volume de humanos no planeta está ficando insustentável. Nos alastramos sobre o planeta como mofo se alastra no pão, graças aquela máquina de engolir mongas, o industrialismo. 

No mesmo dia em que li a reportagem da BBC, ouvi uma live do apresentador de televisão americano, Bill Maher. Ele comentava a COP 26, uma das assembleias especiais da ONU para debater as mudanças climáticas que acontecem anualmente desde 1995. Ele chamava a atenção para alguns fatos. Há 26 anos, os países se reúnem cheios de boas intenções e promessas, mas ano após ano as promessas se repetem e nada realmente é feito. Greta Thunberg é a consciência da juventude mundial sobre o tema do aquecimento global e denuncia exatamente essa inação. Ela tem mais de 13 milhões de seguidores nas redes sociais. Porém, Greta não representa a juventude. Bill escolheu uma socialite qualquer, Kylie Jenner, com 280 milhões de seguidores para mostrar quem realmente representa a juventude mundial. A menina que avisa os perigos da industrialização tem muito menos interessados do que aquela que ostenta um consumo opulento e perdulário. Tem muito mais gente enrolando o casaquinho do que apertando o botão de emergência da máquina engolidora de mongas. A locomotiva da economia mundial é a indústria e ela é uma máquina gigantesca e inerte levando toda a humanidade à morte. O apito da locomotiva é uma pequena parte da máquina, serve para alertar os do entorno de sua aproximação e velocidade, no entanto tem um peso muito pequeno, como a Greta Thunberg e sua greve pelo clima, não faz a humanidade sair da frente.  



A trágica morte da compositora Marília Mendonça chocou o país semana passada. Em todos os jornais, longas reportagens relataram o acidente aéreo e a vida da cantora. Me enchi de compaixão ao saber que deixava um filhinho de dois anos. Depoimentos de vários outros artistas famosos enalteciam a importância dela na vida nacional. Caetano Veloso a chamava de Maravilha Mendonça, Gilberto Gil em lágrimas, Gal Costa e Adriana Calcanhoto relembrando o quanto ela fez pelas mulheres do país. Uma lista com números enormes foi enfileirada provando sua popularidade: Live com mais espectadores ao vivo da história da internet, músicas mais acessadas nas plataformas de streaming, artista brasileiro com mais seguidores nas redes sociais, etc. Me surpreendi muito com as reportagens, pois nunca havia ouvido falar em Marília Mendonça e, de repente, todos os noticiários que acompanho estavam debruçados em nos fazer entender detalhes da curta vida da cantora. Não estou arrotando arrogância elitista por desconhecer artista tão popular já que não foi diferente na ocasião da morte do pianista Nelson Freire: músico erudito e internacionalmente aclamado, que a repercussão de sua morte também soou para mim exagerada. Só estou deixando claro que sou bastante ignorante a respeito de música, qualquer que seja, nunca escuto. Nas raras vezes em que escuto, prefiro outro gênero musical, nem erudito, nem sertanejo. Mas, ao longo das reportagens dos telejornais sobre Marília, alguns trechos de músicas da compositora foram sendo exibidos e fui percebendo que seu estilo musical era semelhante ao escutado a todo volume por meus vizinhos barulhentos com carros rebaixados. Fiquei confuso, pois o que diziam dela nas reportagens (feminista que lutava pelo empoderamento das mulheres) não coincidia com o que eu escutava nas letras das canções. Pesquisei na internet sobre a cantora e logo achei uma reportagem dela e sua camionete rebaixada cheia de caixas de som. Procurei mais para ler as letras de suas músicas na íntegra e confirmei a confusão. Marília Mendonça e eu estaríamos em lados opostos do tribunal: eu lutando pelo direito ao silêncio e ela lutando para usufruir de suas canções sobre ciúmes a todo volume no seu carro rebaixado cheio de caixas de som potentes, como meus vizinhos barulhentos. Marília Mendonça é o produto de uma indústria de entretenimento engolidora de mongas como qualquer outra, onde o volume e a magnitude do desenvolvimento da natureza é o que conta. 



Como diria Bill Maher, Marília Mendonça é uma boa representante da juventude brasileira, tem 41 milhões de seguidores nas redes sociais, não é por acaso. Sua popularidade não quer dizer sabedoria. Nelson Rodrigues já nos alertava que a unanimidade é burra, porque quem pensa como ela não precisa pensar, é só seguir a massa. A maioria salvou Barrabás da morte e não Jesus. Hitler tinha o apoio da maioria brutal. A maioria é como meus vizinhos da Barra do Ouro e meus colegas de escola técnica: eles querem grandes carros rebaixados, cheios de caixas de som potentes, música alta, chãos sem uma formiga como num shopping-center e, por favor, que matem todas as abelhas antes de chegarem no local. Status social é sinônimo de barulho, alegria para eles é aos gritos. Para a maioria, uma pessoa desenvolvida é a que se encontra o mais longe possível do canto dos pássaros, dos zumbidos dos insetos enfim, do silêncio da natureza. 

A maior empresa que controla redes sociais mudou de nome, não se chama mais Facebook, mas sim Meta. A empresa de Mark Zuckerberg tem a óbvia meta de controlar as mentes da população mundial. Quer ser unanimidade. Para atingir esse objetivo ambicioso, estuda profundamente a mente das pessoas, deve ter muitos neurologistas e psiquiatras na sua folha de pagamento. A empresa está se saindo muito bem, pois o Facebook tem três bilhões de usuários que o utilizam diariamente, é construído propositalmente viciante. Se você, leitor, ainda não sabe, a tradução dos termos “mark” e “zuckerberg” do alemão para o português é “marco” e “montanha de açúcar”. Se fosse a criação de algum escritor de ficção, o nome do empresário seria extremamente simbólico, Impossível ser mais significativo e metafórico para o momento humano no planeta. Infelizmente, não estamos vivendo uma ficção, o próprio nome do fundador da empresa já denuncia que a tal da Meta será o marco de transição da humanidade para a terceira onda de DESenvolvimento da humanidade da natureza: um produto barato, acessado por todos voluntariamente, viciante, que passa despercebido, faz o volume dos indivíduos aumentar incontrolavelmente e controla tudo. Praticamente, quem tem algum aparelho para acessar internet no mundo tem Facebook. Os usuários se viciam nas drogas endógenas que o programa induz que o cérebro produza (dopamina, serotonina, endorfina, ocitocina) como quando comemos um bombom de chocolate bem açucarado ou tomamos um gole de Coca-cola. A máquina engolidora de mongas (eu inclusive) da indústria cibernética está puxando o mundo pelo botão do casaquinho. Algumas Gretas da vida já estão soprando os apitos de alerta sobre as redes sociais, mas a máquina é de tal magnitude, volume e inércia que arrasta qualquer um e ainda não tem botão de emergência. O que o Facebook prova é que os algoritmos podem ser usados tanto para o bem como para o mal, assim como qualquer máquina, e estão entrando nas nossas vidas para ficar. 



No seu livro “A terceira onda”, de 1980, Alvin Toffler já nos alertava da futura onipresença e onisciência dos computadores no controle de tudo. Quarenta anos após a publicação de Toffler, aparentemente chegou a terceira onda de desenvolvimento que previu. A primeira onda de desenvolvimento da humanidade foi o surgimento da agricultura, deixamos de ser uma espécie nômade caçadora e coletora, viramos sedentários e passamos a armazenar excedentes de produção para quando não há tanto sol e água. A segunda onda foi a indústria, deixamos de esperar o sol fornecer a energia para nossa subsistência e fomos buscar energia armazenada por milhões de anos no subsolo para superalimentar nossa espécie em detrimento de todas as outras. Finalmente, a terceira onda, a revolução da análise de dados que estamos vivendo. Computadores sabem que gostamos de sapatos de couro bico fino marrom no momento que olhamos alguns segundos para uma propaganda deles nas redes sociais e passam a insistir para que consumamos mais calçados desse estilo. Se pesquisarmos o nome de Marília Mendonça na internet, imenso material de reportagens, fotos e vídeos dela aparecerão como sugestão dos algoritmos para nosso desfrute. É bom que algum computador saiba a hora exata de injetar mais um miligrama de medicamento na veia do paciente da UTI para salvar sua vida. Mas não é bom que algum computador saiba seus vícios para ficar lhe tentando a comprar mais da droga que você nem pode pagar. Uma plaina pode ser usada tanto para o bem como para o mal, depende da consciência do usuário, com um algoritmo de programação é a mesma coisa. Se uma montanha de açúcar ficar acessível para uma criança, sua atitude vai ser pueril, de consumo ingênuo e aos gritos e gargalhadas, no entanto, levará a sua morte.

Não se engane, os algoritmos dos computadores estão chegando para dirigir o planeta, literalmente. Já há carros, caminhões e trens dirigidos autonomamente. Mesmo em áreas mais sensíveis e caras, que exigem muito estudo de um ser humano, seremos substituídos com vantagens. Médicos, por exemplo, serão logo substituídos com eficiência por robôs, pois o trabalho de um médico é observar dados, analisá-los e tomar decisões a partir deles e isso um robô faz muito melhor que um ser humano. A democracia representativa é outra área que será logo substituída. Já elegemos “Trending topics” automaticamente, Marília Mendonça é um deles. A transição para a democracia direta é um fato que está aumentando de volume rapidamente. Por um lado pode ser bom, robôs não têm a menor tendência à corrupção se não forem programados para isso. Por outro, pode ser o catalisador de uma reação química explosiva no planeta: seres humanos se multiplicando descontroladamente num meio ambiente finito, sem água e com temperatura elevada. A maioria é ingênua, tem pensamento pueril, está mais preocupada com satisfazer seus desejos mais imediatos, como comer uma montanha de açúcar ouvindo música alta sabendo quem traiu quem nas redes sociais. A democracia direta pode se tornar rapidamente um democratismo tirânico onde a maioria de pensamento hegemônico esmaga a minoria que pensa diferente. 

Meu pai está encantado com o pensamento de um filósofo lituano de origem judaica, Emmanuel Levinas. Não tive acesso ainda aos escritos do pensador, a não ser por trechos que meu pai compartilha e comenta com os filhos. Pelo que entendi até agora, Levinas, que sofreu as barbáries do nazismo, argumenta que o centro da filosofia deve ser a ética, os valores que construímos no convívio social. Antes de pensar em si, devemos pensar nos outros. Por exemplo: Se vamos salvar o meio ambiente é para que outros seres humanos usufruam dos confortos de ter água potável e uma temperatura agradável no futuro. Veja que a filosofia de Levinas é humanista, coloca os seres humanos no centro da vida. Já é muito melhor que a filosofia que pensava só no eu. Repito, não conheço Levinas, não li seus livros, somente procurei alguma coisa superficial na internet para compreender o encanto de meu pai. No entanto, aparentemente, um programador que se oriente por Levinas para programar um algoritmo de democracia direta construirá um mundo eticamente mais sofisticado e melhor para todos os seres humanos do que outro que não o faça. No entanto, percebi que o pensador judeu se omite em relação a outras espécies de seres humanos além da humana, ele se omite em relação as abelhas, por exemplo.

Creio que o programador que escreverá o algoritmo de democracia direta que acabará legislando e governando o mundo, além de não pôr só os desejos pessoais do eleitor no comando das decisões, deve por as necessidades do planeta, como ser vivo e sujeito de direitos, a Pachamama dos indígenas sul americanos, e todas as outras espécies de seres vivos, desde lesmas até gramíneas e corais, em igualdade de direitos com o homo sapiens, para que tenhamos a possibilidade de alongar a experiência humana no planeta e não sejamos extintos pela nossa própria eficiência em acabar com outras espécies que nos aborrecem. A democracia cibernética, que está entrando num galope silencioso na vida de todos, pode ser uma máquina engolidora de mongas ou uma panaceia social, dependendo da consciência do programador. Qual botão que escolheremos interagir com essa máquina, o distraído da ponta do casaquinho como Jair ou o atento de emergência como o professor?

P.S.: Abaixo, reproduzo parte da letra da música de maior sucesso de Marília Mendonça. “Infiel”. Não consigo reconhecer a competição de duas mulheres por um homem como sendo feminismo. Feminismo, no meu entender, é a luta política por igualdade de direitos entre homens e mulheres. Uma feminista de verdade ajudaria a outra mulher a reconhecer no traidor um canalha. Acredito que Caetano estava distraído e seu casaquinho foi puxado pelo botão. 

O seu prêmio que não vale nada, estou te entregando

Pus as malas lá fora e ele ainda saiu chorando

Essa competição por amor só serviu pra me machucar

Tá na sua mão, você agora vai cuidar de um traidor

Me faça esse favor


quarta-feira, 11 de agosto de 2021

 Sobre as olimpíadas

"Se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor."

Paulo Freire

Exercer a profissão de professor é difícil. Temos que soprar do senso comum o pó da história para revelar ao estudante a origem, a raiz das coisas. Não é uma coisa fácil, algumas vezes, o conhecimento está tão encardido do uso que a população acredita serem aquelas as cores verdadeiras do quadro. A restauração da pintura original é traumática, alguns alunos inclusive se revoltam com o que é descoberto, pois o brilho intenso do que é revelado ofusca suas crenças atuais de tal forma que a verdade se torna ofensiva. Se formos estudar a etimologia da palavra “etimologia”, encontraremos que vem do grego “étumos”, que significa real ou verdadeiro, e “logos”, que pode ser traduzido como ciência, conhecimento, estudo ou razão. O docente está sempre atrás do que é verdadeiro, para não incorrer no erro de ensinar algo falso para os discentes. Assim é que o professor acaba se tornando um grande amante da etimologia das palavras. Como professor de Educação Física, aproveito os grandes eventos que preenchem o imaginário popular que envolvem a cultura de movimento para pesquisar com as turmas da escola o real significado histórico das palavras que são pertinentes para a compreensão do tema. Desde o carnaval, passando pelas festas juninas, campeonatos de futebol ou basquete, eventos de capoeira ou MMA, uma nova pista de skate no bairro, até festivais de pandorga, onde estiver gente se mexendo para jogar, dançar, lutar ou se divertir, lá estou eu a pesquisar com os alunos a etimologia das palavras. As olimpíadas não é diferente e, de quatro em quatro anos, temos esse banquete etimológico. Nenhuma criança sai da escola em que trabalho sem estudar radicalmente os Jogos Olímpicos. Pensei em colocar em texto para adultos o logos até aqui adquirido em todos esses anos de docência. 

A primeira palavra que sempre pesquisamos é atleta. Atleta, na Grécia antiga, era um lutador. Os alunos não se chocam ou se surpreendem com isso, pois a palavra lutador tem atualmente até um sentido dignificante, de pessoa que se esforça para atingir seus objetivos. Mas basta começarmos a contextualizar o significado para as crianças começarem a entender que atletas não são exatamente santos a serem glorificados. Atletas eram escravos e as lutas na antiguidade eram até à morte. Ganhava aquele que batia no outro até matar, ganhava o que conseguia causar tantas lesões em seus adversários que não saíam vivos da arena. O objetivo do atleta era matar. 

Arena é geralmente a segunda palavra que pesquisamos. Os alunos conhecem bem a palavra pois muitos estádios de futebol brasileiros tem o termo no nome, como Arena do Grêmio. Arena era um grande círculo de areia onde se realizavam as lutas. O chão era coberto de areia para absorver o sangue e pedaços de corpos, como dedos ou orelhas, que iam caindo dos lutadores e assim a área de luta não ficava escorregadia ou mal cheirosa. Quanto mais sangue, mais o público vibrava. Era uma grande honra vencer uma luta na arena e para isso o atleta se preparava muito. Se vencesse teria tratamento especial, seria admirado, ração dobrada, acesso a fêmeas. O esforço não era só para sobreviver, mas também para viver em honra, ou melhor, ser tratado não como um escravo, mas como um homem livre. 

A etimologia da palavra ginásio causa grande risada entre os estudantes. Era o local onde homens socializavam nus, com os pelos raspados e o corpo todo besuntado em azeite de oliva. Hoje em dia, a ideia de ginásio é bem diferente e inclui as mulheres também, mas na cultura da época era o normal para todos os homens, tanto homo como héterossexuais, frequentar o lugar. Ali, conversavam sobre amenidades, debatiam política e filosofia e praticavam exercícios físicos. Mulheres não tinham direito a se aproximar do ginásio, pois não eram considerados seres humanos. Até hoje, a palavra “homem” muitas vezes é empregada erradamente com o significado de ser humano, mesmo em meios científicos, pois nossa cultura ocidental bebe muito da fonte grega. Não havia debate de gênero na Grécia antiga, pois só havia um gênero humano: os homens. As mulheres eram consideradas homens que nasceram do avesso, com vaginas no lugar de pênis, com úteros para abrigar os fetos e mamas para alimentar os recém nascidos, tudo perfeitamente adequado para que a máquina cósmica funcionasse perfeitamente. Era uma verdade cósmica, óbvia, incontestável, os homens que nasceram do lado certo gentilmente deveriam depositar suas sementes nas mulheres que serviam somente como terra para desenvolver novos homens. Mulheres eram coisas. No centro do ginásio, geralmente havia uma arena, para que homens da elite pudessem se divertir olhando uma briga mortal entre os escravos mais fortes, lutadores treinados para matar. A elite se divertia olhando atletas sangrando, se esforçando para não morrer. 

A etimologia da palavra olimpíadas é a que mais incredulidade causa nos alunos. Olimpíadas era o espaço de tempo entre cada festival religioso em homenagem a Zeus, quatro anos. O festival se realizava na cidade de Olímpia, na Grécia antiga, junto a uma das sete maravilhas do mundo antigo, a estátua de Zeus, com treze metros de altura, feita de madeira e coberta de ouro e marfim. Uma série de ritos ocorriam num mês de festividades: Procissões, banquetes, cantos, rezas e sacrifícios, além dos jogos olímpicos. Alguns ritos ainda hoje se perpetuam, como o símbolo da pira olímpica, que passeava pelo país chamando para o evento, mas no templo se mantinha sempre acessa. Centenas de carneiros eram mortos para oferecer ao deus dos deuses, Zeus. Além das lutas até à morte, outras competições ocorriam em louvor aquela entidade adorada pelos gregos, todas relacionadas à guerra. Os atletas/lutadores/escravos demonstravam suas habilidades nas arenas e ginásios ao redor do templo com as armas de guerra da época. Como as guerras se davam à pé em campos de batalha, corridas e saltos eram armas importantes dos exércitos para atravessar o terreno cheio de obstáculos. Durante aquela festa religiosa, organizava-se provas para ver quem corria mais rápido (citius) e saltava mais alto (altius), transpondo obstáculos como árvores caídas, pedras ou córregos, para ganhar mais terreno para seu exército. Além das corridas e saltos, o momento mais esperado do festival, era quando os escravos demonstravam sua capacidade de matar, exercendo o poder de vida e morte dos deuses. Competições de arremessos de armas mortais com mais força possível (fortius) como o dardo, o martelo, o disco e o peso, faziam a platéia vibrar imaginando o poder de destruição daqueles atletas. Aí está a origem do que hoje em dia chamamos de atletismo, a prática da guerra. Também daí saiu o lema das olimpíadas atuais: “citius, altius, fortius”, que significa mais rápido, mais alto, mais forte, qualidades desejadas para um guerreiro ou para todo um exército. 

Um professor e historiador francês, Charles Pierre de Frédy, ficou entusiasmado com o ensino do atletismo nas escolas francesas depois das descobertas arqueológicas na cidade de Olímpia, recentes no final do século XIX, época em que viveu. Os vestígios encontrados, confirmavam antigos escritos sobre os jogos olímpicos e Frédy lutou para recriá-los e promovê-los. A elite francesa gostou de seus esforços, o regalou com o título nobiliário de Barão de Coubertin, atualmente é considerado o pai dos Jogos Olímpicos da era moderna. Claro que, passados dois mil anos desde a última edição dos jogos da antiguidade, a cultura havia mudado bastante. “Ginásio” já não era lugar para homens ficarem nus com os amigos. A religião do Barão já era diferente da dos gregos da antiguidade, ele era cristão, pregava certos pudores. Frédy propôs então que os jogos fossem laicos e não mais em louvor a Zeus, mas que continuassem a respeitar uma olimpíada, o intervalo de quatro anos entre um festival e outro. Agora, já havia dois gêneros humanos admitidos, homem e mulher, mas ainda se referiam aos seres humanos falando somente do “homem” e o professor Charles Pierre, recém reconhecido como um homem nobre, achava que seria desaconselhável que mulheres participassem dos jogos. 

Quando começamos a estudar os personagens envolvidos na história das olimpíadas, as alunas começam a ficar muito desconfortáveis, pois já nasceram numa era em que a diferenciação por gênero é uma ofensa punida pela lei. A luta por igualdade nunca foi uma preocupação muito grande do Comitê Olímpico Internacional (COI), entidade criada por Frédy. Ao contrário, a desigualdade é uma constante na história olímpica, mas as alunas acreditam que era só na antiguidade. Algumas regras também foram mudadas por razões religiosas, as lutas não eram mais até a morte de algum dos atletas, pois um dos mandamentos cristãos é “não matarás”, o poder de decidir matar é somente do deus que Frédy cria a época. Pierre de Coubertin era presidente do COI em 1925 quando a diretoria decidiu que as mulheres também poderiam participar a partir da décima edição dos jogos da era moderna. Contrariado e revoltado com essa decisão, o Barão se retirou do Comitê organizador dos jogos para nunca mais voltar, pois, no entender dele, seria contra os “ideais olímpicos” que mulheres participassem. Não ter mais centenas de sacrifícios de animais, não ser mais um festival religioso em honra a Zeus, não ter mais homens nuns besuntados com azeite ou não ter mais lutas até a morte mantinham os ideiais olímpicos, mas mulheres jogando seria demasiada desvirtuação dos jogos para o Barão. Tokio 2021, dois mil e quinhentos anos depois dos primeiros jogos, é a primeira vez que há igualdade no número de participantes homens e mulheres e a primeira vez também que se organizaram provas mistas de atletismo, com homens e mulheres correndo juntos na mesma competição. 

Há uma perceptível esforço dos organizadores dos jogos olímpicos por atender as demandas das mudanças culturais. Em tempos de internet as mudanças são rápidas e gigantescas, no entanto, O COI anda à passos de tartaruga. Ou melhor, no ritmo olímpico, de quatro em quatro anos algumas regras são revistas. A inclusão dos deficientes físicos e mentais, por exemplo, ainda é uma luta que está sendo disputada nos bastidores. Foi somente na edição de Barcelona, em 1992, que os Jogos Paralímpicos aconteceram no mesmo local e quase que concomitantemente aos Olímpicos, mas até hoje são eventos separados por uma barreira intransponível de duas semanas no tempo, atletas deficientes não se encontram com atletas não deficientes nem nos corredores da vila olímpica. O Debate sobre a questão de gênero também está longe de acabar. O imaginário popular acredita que é uma coisa óbvia e simples de resolver, afinal, são só dois gêneros admitidos: homem e mulher. As regras do COI, por incrível que pareça, também tentam definir o que é um homem e o que é uma mulher, com diversos testes biológicos que envolvem inclusive exames laboratoriais de sangue e investigações sobre o DNA da pessoa, fora, claro, o constrangedor exame físico por médicos do comitê. Mas muitos atletas não se enquadram no ingênuo binário homem/mulher e são simplesmente proibidos de competir. 

Até mesmo a altura dos degraus do pódio, que serve para determinar uma hierarquia da virtude entre as pessoas desde a antiguidade, está diminuindo. A compreensão de que um ser humano não é melhor que outro pelo fato de ter tido um desempenho superior numa prova esportiva, constrange cada vez mais a existência do rito do pódio. Atualmente, não é raro que o atleta que triunfa sobre os outros convide seus colegas de pódio para subir no degrau mais alto com ele. Um ser humano ser exibido para as fotos num nível superior aos outros já não é mais admissível na atual conjuntura política e cultural. Nesse sentido, chamou a atenção um esporte estreante nesses jogos olímpicos com quase todos os atletas muito jovens, ou seja, de uma nova era, o skate. Os “competidores” vibravam com o sucesso do rival! Cada manobra completada com êxito por algum atleta era comemorada por todos com genuína alegria. Situação completamente diferente do “espírito olímpico” de matar o oponente ou, no linguajar esportivo mais polido ou politicamente correto de hoje em dia, eliminá-lo, que também não deixa de ser o desejo de um exército sobre o outro.  

Debates dessa natureza, como a inclusão de deficientes, o absurdo do pódio ou sobre gênero humano, tem que ser realizados na escola, pois em outros ambientes os preconceitos culturais se perpetuam sem a devida reflexão. Daí a importância de o professor de Educação Física se manifestar ardorosamente quando surge a oportunidade. A eterna discussão de qual seria mais importante para o desenvolvimento humano, cultura ou natureza, é falaciosa. Não há como dissociar o corpo da cultura em que está imerso. O próprio estudo dos Jogos Olímpicos demonstra isso. Em Tóquio uma nova questão se impôs nas rodas de conversas e tomou conta das notícias da imprensa: a saúde mental dos atletas. Até hoje, pouco se admitia sobre o tema, os atletas eram somente corpos sorridentes sem mente. As emoções eram praticamente excluídas das competições. Angústia, raiva, medo, tristeza, tudo deveria ser suprimido ou relevado em prol do espetáculo. Somente a alegria das vitórias eram expostas na mídia. O tal do espírito olímpico deveria encarar derrotas ou sofrimento físico como parte da glória do esporte, mas tudo se fazia para escondê-los. Somente quando o sofrimento era tão grande ou a derrota tão humilhante, eram mostrados como grandes vitórias a serem glorificadas também. Há casos clássicos de situações absurdas, como a chegada da maratonista suiça Gabriela Andersen, cambaleante por uma severa desidratação nas olimpíadas de Los Angeles que a mídia trata como superação. Ou o nadador Eric Moussambani, de Guiné Equatorial, nos Jogos Olímpicos de Sidney, que mal sabia nadar, e completa a prova com mais que o dobro do tempo do primeiro colocado, que a mídia vende como honra, “espírito olímpico” ou ainda o batido clichê que “o importante não é ganhar, mas sim, competir”.  Na edição desse ano, em Tóquio, sopraram ventos de muitos questionamentos. Simone Biles, uma atleta multicampeã de outros jogos, e só por isso o que tinha para dizer foi ouvido, desistiu de algumas competições em que tinha chances de medalha, alegando cansaço mental. Uma das coisas que a pressionava era o pedido de técnicos e juízes para sorrir mais. A partir dessas declarações da ginasta, uma série de outros atletas começaram a vocalizar descontentamento com as pressões psicológicas a que o atleta está exposto. A dor da derrota e do sacrifício físico passou a ser admitido como mazela da rotina de treinos necessários para se atingir o nível olímpico. 

Outra polêmica que surgiu foi a participação de crianças. Uma atleta brasileira de apenas 13 anos, Rayssa Leal, ganhou a medalha de prata na competição do skate. Questões de ordem ética surgiram: se crianças devem estar expostas às responsabilidades e sacrifícios físicos impostos aos competidores da elite esportiva. A própria pequena skatista, em entrevista, revelou, numa declaração de surpreendente maturidade, que mesmo com seu corpo de criança tem que ser adulta quanto a responsabilidades. Brincar, interagir com o grupo de amigos, namorar, ou simplesmente sentir tédio, necessários ao bom desenvolvimento mental de qualquer pessoa, não estão na agenda dos atletas mirins. Na ginástica, já há um consenso que menores de 16 anos devem ser proibidos de competir em nível olímpico, mas essa importante regra ainda não avançou sobre os outros esportes ou mesmo sobre o COI que anda a passos de tartaruga ou de olimpíadas, de quatro em quatro anos. 

O senso comum imagina que esporte faz bem para saúde, pois os corpos bem torneados dos atletas impressionam o leigo. No entanto, o esporte arrasta o praticante para uma sucessão de lesões graves, que, assim como as mazelas mentais, também são insistentemente omitidas da mídia. Felizmente isso parece estar mudando, o debate em torno das lesões inerentes a prática esportiva ganhou visibilidade em Tóquio. A judoca Mayra Aguiar, que conquistou o bronze e a ginasta Rebeca Andrade que conquistou duas medalhas, de ouro e prata, já sofreram muitas cirurgias de joelho, mesmo sendo as duas bastante jovens, com menos de trinta anos. Alguns outros grandes ídolos brasileiros dos esportes olímpicos, como Oscar Schmidt, no basquete, ou o tenista Guga Kuerten, conviveram durante toda suas carreiras com fisioterapeutas e medicações para tentar sanar as lesões recorrentes e afastar as dores decorrentes da prática esportiva. Guga chegou a abandonar a carreira depois que a terceira cirurgia na virilha não conseguiu amenizar as dores que sentia. Oscar tinha todos os aparelhos de fisioterapia em casa e, depois dos treinos, já jantava atrelado a eles. O atual discreto caso de Mayra Aguiar, nos leva a refletir sobre o fenômeno antropológico dos esportes. Mesmo depois de sua sétima intervenção cirúrgica no joelho, poucos meses antes das olimpíadas, Mayra não cogitou abandonar os treinos, a carreira ou sequer as competições em Tóquio. Treinando e competindo, ela sabe que terá que fazer cirurgias, é como dar murros em ponta de faca, vai machucar. O que seria essa obsessão? Um vício, uma tara, uma necessidade financeira, uma busca por reconhecimento, uma fuga da realidade social em que vive? Se formos à raiz do debate em torno das olimpíadas, se formos buscar a "etimologia", ou seja, se formos em busca do que é real e verdadeiro desse fenômeno, encontraremos a resposta no paralelismo dos casos atuais com os da antiguidade.   

É comum, ao entrevistar atletas que obtêm êxito no esporte nacional, que repórteres investiguem o passado dos vencedores. A história geralmente é semelhante: criado só por sua mãe, fome que ronda a família numerosa, projeto social que estimula o esporte, destaque por habilidade em alguma coisa, adoção por algum clube esportivo de elite, treinamento extenuante, consagração na excelência esportiva. Não vejo diferença nenhuma com a história dos atletas/lutadores/escravos da Grécia antiga, que se preparavam e se esforçavam muito para não morrer sangrando na arena, porque somente obteriam reconhecimento social e seriam tratados como homens livres se vencessem a luta até à morte. Não é de se admirar o discurso emocionado de Daiane dos Santos, mulher, negra, excelente ex-atleta olímpica derrotada, ao ver sua compatriota Rebeca Andrade triunfar. Daiane lembra que Rebeca é uma mulher, negra, favelada, criada só pela mãe, que sofreu todo tipo de privação até ser adotada por um clube de elite, que enfrentou muitas lesões e que agora vencendo, tem o direito de brilhar na TV, ser entrevistada e tratada como um homem livre, ser finalmente reconhecida como um cidadão de plenos direitos. Pena que milhões de rebecas, a esmagadora e brutal maioria, ficou pelo caminho em algum momento e não obteve o sucesso almejado, são eliminados da competição social muitas vezes a tiros e ainda vivem como escravizados em favelas. 

Essa história vitoriosa de Rebeca Andrade, assim como a derrotada maratonista suiça que chega cambaleante, é vendida na mídia como linda, exemplo a ser seguido por todos. Omite-se, convenientemente, os milhares que seguiram essa exata mesma história, mas não tiveram a sorte de nascerem com alguma habilidade especial ou aberração física que determine o sucesso, ou que morreram por exaustão tentando. Observe-se que, numa prova mundial como são as olímpicas, que tem somente uma pessoa que ganha a medalha de ouro, quantos atletas, de quantos países, ficaram de fora? Em cada país, quantos atletas foram eliminados, por mais que se esforçassem para trilhar essa senda brilhante de vitórias pintada como possível para qualquer um? Quantas crianças, de quantas escolas, viram na TV esses vencedores cobertos de glória e almejaram um dia se tornar um deles? Acredito que estamos falando de todos os oito bilhões de habitantes do planeta, mas só temos um medalhista de ouro a cada quatro anos em algumas poucas modalidades esportivas. Essa seita dos Jogos Olímpicos celebra, ao fim e ao cabo, a exclusão. Ensinamos a população que é bom, justo, lindo e até altruísta, perder e se sacrificar para manter o espírito olímpico intacto. Os jogos olímpicos ainda são, apesar de muito diferentes dos originais, um festival religioso. A diferença principal é que o deus a ser louvado não é mais Zeus, mas sim a diferença social. Os Jogos são para louvar a exclusão.

O tal do “espírito olímpico” é o seguinte: a elite vai fazer tudo que puder para permanecer elite. Para isso inventou uns joguinhos para distrair os escravizados, promove competições sangrentas para se deliciar assistindo escravos se digladiarem até à morte para, só aí, dar uma medalhinha ou título nobiliário para aquele que fizer direitinho tudo que eles quiserem o chamando de vencedor. Assim, todos os outros escravos se sentem estimulados a permanecer lutando sob as mesmas regras para que nada mude nunca e todo mundo fique tão hipnotizado com esse jogo que não perceba que é feito para que o “status quo’ permaneça inalterado. A elite será sempre elite e os escravos serão sempre escravos. Essa hipnótica cortina de fumaça tem funcionado há milênios. O patrono da educação nacional, Paulo Freire, nunca falou especificamente dos esportes, mas suas palavras servem como uma luva, pois ele observava uma injustiça social gritante. Ele dizia que “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de forma crítica.”

 O longo caminho dos Jogos Olímpicos para uma maior inclusão, não acabou. Ao contrário, está longe do fim. Porque a existência dos Jogos é o símbolo máximo da própria existência da exclusão social. Se quisermos acabar com uma, teremos que acabar com o outro. Acabar com a exclusão e a diferença social, o pódio social, não é do interesse das elites dominantes pois estão no degrau mais alto do pódio e não querem sair de lá. Por isso os avanços são minúsculos e muito afastados no tempo. Dois mil e quinhentos anos para as mulheres conseguirem igualdade no número de participantes, Dois mil e quinhentos anos e os deficientes ainda não tem direito a participar junto com os não deficientes. A elite sempre promove, patrocina e celebra com entusiasmo os Jogos para manter o Status Quo. A etimologia da expressão Status Quo, que vem do Latim, significa a busca pelo estado das coisas antes da guerra. Antes da guerra a elite desejava a guerra. 

Como professor de escola pública, trabalho para que o que é real e verdadeiro seja esclarecido. Estudo a etimologia das palavras e expressões da língua para que meus alunos percebam sua posição social desfavorecida e lutem para que tudo mude. Enquanto tiver um único injustiçado na sociedade, um único excluído, os quero atletas, ressignificando as palavras, lutando na arena da justiça. Quero vê-los lutando por amor, vida e inclusão e repudiando o ódio, a morte, a guerra e a exclusão. Por isso os mantenho o mais longe possível das competições. Bom o dia em que os Jogos Olímpicos e sua seita da diferença social fiquem de novo em escombros e soterrados pelos avanços sociais e sofisticação moral da população. E de novo citando Paulo Freire: “Enquanto eu luto, sou movido pela esperança; e se eu lutar com esperança, posso esperar."


quinta-feira, 6 de maio de 2021

 



Tambora, Corona e O Grande Inquisidor.

A erupção do vulcão do Monte Tambora, numa remota ilha da Indonésia no Oceano Indico, em 1815, foi a maior já registrada até hoje. O dramático fenômeno natural, de proporções bíblicas, expeliu uma quantidade descomunal de partículas sólidas na atmosfera. Estima-se que algo em torno de cento e oitenta quilômetros cúbicos de rochas foram pulverizados, o que formou a mais terrível nuvem de cinzas já vista pela humanidade. A trágica ocorrência cobriu a atmosfera por dois anos, determinando uma brutal diminuição de incidência solar no planeta. O evento ficou conhecido na Europa como “o ano sem verão” porque um inverno emendou no outro e fez com que as plantações e mesmo o pasto morressem no mundo inteiro. A situação foi sinistra, a fome se espalhou pelo mundo. A população de cavalos, força motriz base da economia de então, foi dizimada por não ter o que comer e por ter virado alimento para os humanos famintos. Uma gigantesca onda de inovação tecnológica se ergueu durante aquele impiedoso inverno vulcânico. Alternativas ao cavalo foram logo pensadas. Um funcionário público alemão, Karl von Drais, da pequena cidade de Karlshure próxima a Heidelberg, colocou duas rodas de madeira num cavalinho de pau e saiu rápido pelas ruas pedalando o chão, como num patinete, sentado numa confortável sela. O que poderia ser interpretado somente como um retardado circulando num brinquedo de criança em qualquer outro momento histórico, aquele cavalinho de pau determinou uma avalanche criativa nas mentes mais inteligentes e inovadoras do mundo. A invenção causou sensação naquele momento de incrível imobilidade e foi imediatamente copiada e aperfeiçoada por todo continente europeu. A primeira modificação criada foi colocar uma alavanca para direcionar a roda dianteira, possibilitando a mudança de rumo daquela maquininha tão simples. Mas a coisa não ficou por aí, pois o mundo necessitava urgentemente de soluções e aquela, apesar de um tanto ridícula, era a única que funcionava. Passaram a construí-la com treliças de tubulações metálicas soldadas, sem a cabeça do cavalo entalhada na madeira, o que não só tirou a aparência de brinquedo, mas revolucionou a construção metal mecânica da época e tornou o objeto muito mais leve e resistente. As rodas sofreram uma revolução semelhante, passaram a também ser feitas de leves aros metálicos ligados ao eixo por uma trama de cabos de aço. Isso significou, literalmente, a reinvenção da roda. O veterinário escocês John Boyd Dunlop, inventou um pneu com ar dentro para dar mais conforto ao triciclo de sua pequena filha. Novas ligas metálicas foram desenvolvidas para tornar as agora chamadas bicicletas ainda mais leves e duráveis. A máquina bicicleta não só se tornou a locomotiva de inovação tecnológica industrial, mas também uma grande atratora de mudanças sociais. As mulheres puderam começar a se deslocar rapidamente com aqueles instrumentos leves e eficientes para se reunir longe de homens. Passaram a modificar suas vestimentas para se adequar as bicicletas e surgiram as primeiras calças femininas. O movimento feminista deu um salto em quantidade de adeptas e conquistas em tal magnitude, que uma de suas maiores lideranças, Susan Anthony, chegou a declarar que nada fez mais pelo movimento feminista que as bicicletas. A crise detonada pela erupção do Tambora reacomodou a humanidade em uma nova fase, muito mais sofisticada, tanto industrial como socialmente, que ninguém poderia imaginar durante o sofrimento daquele ano sem verão. Alguém que crê em Deus diria que Ele escreve certo por linhas tortas.

O espetacular desenvolvimento humano após a erupção do Tambora foi ao custo de uma enorme degradação ambiental devido ao grande crescimento econômico, populacional e industrial dos países sobre seus territórios. Novas fontes energéticas e até mesmo novos territórios tiveram que ser encontrados, alastrando pelo mundo a fogueira da prosperidade humana. As zoonoses, doenças infecciosas vindas dos animais, passaram a se multiplicar e ser muito mais comuns entre nós humanos conforme fomos devastando o meio ambiente original. Ebola, AIDS, dengue, zika, chicungunha, malária, são todas doenças trazidas para o ser humano das florestas derrubadas, surgem novas toda vez que avançamos sobre os ecossistemas naturais para criar um sistema antropogênico. A atual pandemia do novo vírus Corona não é diferente, resulta de nossa própria eficiência na proliferação de nossa espécie sobre as demais. Deus parece gostar de matar ao escrever suas linhas bastante tortas.

Uma nova terrível praga de proporções bíblicas assola a humanidade. A pandemia do novo vírus Corona imobilizou as pessoas em casa, derrubou a economia dos países, matou muita gente e causou fome como o Tambora há duzentos anos. No entanto, enquanto alguns sofrem com o flagelo, outros privilegiados que podem se distanciar da possibilidade de contágio, trabalham intensamente para tornar o mundo mais agradável para nós humanos. Enquanto não somos extintos por nossa ganância e estupidez, as pessoas mais inteligentes e criativas vão tratando de sofisticar nossa breve existência no planeta em crise. A arte, particularmente o teatro, ficou muito debilitada com o confinamento exigido pela quarentena sanitária. No entanto, algumas cabeças brilhantes e resistentes tentam por rodas em cavalinhos de pau inovando na adversidade. Assisti à peça de teatro “O Grande Inquisidor”, com o ator Celso Frateschi, texto extraído do livro Os Irmãos Karamazov, do engenheiro militar e escritor russo Fiodór Dostoiévski, numa montagem on line. A encenação lembra um teatro normal, temos que chegar um pouco antes, lemos o programa conversando com os conhecidos que estão na “sala” virtual, podemos inclusive ver o ator se vestindo e maquiando para a entrada em cena, toca uma campainha para mantermos o silêncio fechando os microfones e a peça começa. O figurino e o cenário são perfeitos, melhores até, acredito, do que seriam num teatro de verdade, o calabouço parece mesmo um calabouço e podemos ver pequenos detalhes da roupa do personagem. Assistimos tudo de uma só câmera, como se tivéssemos sentados no teatro, ou realmente presentes na cena, no entanto, o texto nos leva a perceber que temos o ponto de vista de um dos personagens, que nunca se pronuncia ou aparece, vemos através dos olhos dele. O monólogo é de um inquisidor espanhol do século XVI que acaba de condenar Jesus que retornou, conforme havia prometido. Nós vemos através dos olhos do silencioso Jesus que serenamente aceita seu destino e somente escuta o inquisidor justificando porque foi obrigado, novamente, a condenar o Cristo à morte. O debate teológico e social é oceânico, mas meus modestos conhecimentos são de um pequeno bote, não consigo atravessar sem fazer água. Atenho-me a detalhes da montagem. Não é cinema, pois a câmera é fixa por horas, como se fosse mesmo um espectador sentado na plateia de um teatro, mas é, de certa forma, melhor que teatro, pois posso chegar tão perto do ator que vejo os pelos de suas narinas e os poros de sua pele. A experiência de assistir essa peça de teatro on line é inquietante, temos a certeza de estar assistindo um momento histórico, as primeiras voltinhas de um cavalinho de pau, mas que nos faz vislumbrar toda uma nova indústria, como Guttenberg e sua Bíblia ou os irmãos Lumière com seu cinematógrafo.

A montagem de O Grande Inquisidor on line nos põe na posição de Deus, somos Ele, vemos o que ele vê e ouvimos calados as justificativas dos poderosos para manter as diferenças sociais. Obviamente, Dostoiévski não imaginou essa montagem que assisti com recursos eletrônicos bastante atuais quando escreveu o texto, mas é interessante reparar que ele nasceu em São Petersburgo, no nordeste europeu, apenas cinco anos após o ano sem verão. Certamente sua família e ele mesmo sofreram com a fome que se abateu nos anos seguintes, não tinham cavalos ainda que fossem bem abastados e se questionavam sobre os designíos de Deus. Sua forma engenhosa de construir soluções para uma nova sociedade, como bom engenheiro militar, foi através da escrita. Fez uma obra de tal envergadura que me alcançou duzentos anos depois e me fez refletir com muita intensidade sobre as questões da atualidade. O Grande Inquisidor alerta para o fato de que a humanidade, ou melhor, os seres humanos poderosos, sempre repetirão seus erros, como condenar o Cristo novamente. No nosso caso atual, nessa terrível nuvem de vírus corona que cobre o planeta, teremos de novo pessoas que sofisticam moralmente a sociedade, como quem cria teatro on line, mas também teremos pessoas que aproveitam a crise para expandir seus negócios, passar a boiada por cima dos ecossistemas naturais, trazendo um grande aumento de destruição ambiental e provocando ainda mais zoonoses. Dizem que as crises geram grandes oportunidades, mas tanto para o bem como para o mal. Precisamos ler mais Dostoiévski ou, tão bom quanto, assistir com atenção as montagens online de seus textos para poder melhor compreender que Deus somos nós que criamos, assim como muitos de seus desígnios.



quarta-feira, 21 de abril de 2021

 

Memória

O psicólogo canadense Steven Pinker, no seu livro Tábula Rasa, supõe a razão do porque não termos muitas memórias antes dos dois anos de idade. Ninguém lembra, por exemplo, do momento do nascimento, o cheiro do seio da mãe ou do gosto da papinha. No entanto, os testes em laboratório provam que os bebês têm uma memória perfeita, tão boa quanto crianças, adolescentes ou adultos. Pinker lança uma hipótese, apesar de não ter ainda como prová-la, que depois que aprendemos a falar, passamos a organizar os pensamentos de forma verbalizada. Passamos a contar histórias do que já nos aconteceu para nós mesmos com palavras. No entanto, as memórias anteriores ao aprendizado ficam difíceis de acessar, já que agora temos instrumento muito mais eficaz de pesquisa no cérebro, a fala. A fala potencializa a memória. As palavras são uma espécie de senha para revivermos todo um contexto de sensações trazidas para o cérebro pelos sentidos. Cheiros, sons, cores, tatos, gostos de alguma cena de nossa história prévia voltam para uma reavaliação do momento passado.

Já o filósofo australiano Peter Singer, no seu livro Ética Prática, de divulgação filosófica, defende o bestialismo desde que prazeroso para ambos os animais envolvidos, ser humano e alguma outra espécie. No mesmo livro, defende o direito das mulheres de escolher se querem ou não prosseguir com a gestação, o direito ao aborto. Os maledicentes pinçam do texto essas duas posições descontextualizadas de sua argumentação e espalham o ódio ao autor: Singer prega a morte de fetos e sexo com animais. Ler um livro é bem mais demorado e difícil que ler uma frase no Whatsapp. E as frases podem resumir tudo que basta para gatilhar o ódio a alguém. Apesar do cuidadoso trabalho de argumentação filosófica detalhado no livro para chegar a tais conclusões, quem não o lê encontra atalhos que acabam com o debate de acordo com os conceitos aprendidos anteriormente.

Um livro é uma forma de transportar o conhecimento de alguém, através do tempo e espaço, para outra pessoa que não tenha possibilidade de sentar ao redor da fogueira com o sábio que detém aquele conhecimento para ouvir de sua própria boca o que sabe. O código escrito foi uma grande evolução na ampliação da memória, tanto quanto na divulgação dos conhecimentos humanos, assim como o domínio da fala é para a evolução do indivíduo. A escrita organiza e perpetua a memória e possibilita que as recordações sejam partilhadas com outras pessoas. As memórias que não são escritas são bem mais difíceis de recordar com precisão e são facilmente esquecidas, assim como as memórias visuais ou olfativas antes do aprendizado da fala são logo esquecidas pelas crianças, as falas vão se apagando com o tempo. A escrita potencializa a memória. No entanto, decodificar uma longa história é trabalhoso além de obrigar a carregar um volume. Alguém que sabe contar muitas histórias as carrega na cabeça para onde vai sem esforço. Porém, uma biblioteca pode conter muito mais histórias que qualquer cabeça, mas é muito volumosa e não dá para carregar por aí toneladas de livros. Um livro é útil e preciso para guardar informações, mas um trambolho enorme.

As culturas orais desdenham das culturas que confiam na escrita. Como pode alguém abdicar dos anciãos da aldeia para perpetuar a cultura? A transmissão cultural vai depender da boa vontade do indivíduo em sentar num canto concentrado para decodificar aquele amontoado de folhas de papel na ordem certa? Parece ser muito mais seguro o ritual de sentar em roda, ao som e à luz da fogueira, com os cheiros e gostos que a reunião implica para ouvir as histórias dos idosos sistematicamente, assim o conhecimento se perpetua entre todos.

Já culturas que se acreditam mais evoluídas, confiam na escrita. Tanto que aprender a decodificar o código escrito é uma obrigação das crianças. Desde pequenos, os indivíduos tem que passar horas diárias durante anos de sua juventude em escolas para aprender a decifrar e codificar a língua adequadamente. Saber ler e escrever determina o sucesso social ou o fracasso do cidadão. Até mesmo as regras sociais, leis da comunidade ou os códigos de ética são colocados na forma escrita em papel para que a memória precisa delas seja transmitida para toda população. Uma das leis escritas diz inclusive que o cidadão não pode alegar desconhecimento das leis escritas para não cumpri-las. É um círculo: alguns acreditam que seja virtuoso, outros vicioso. As culturas alfabetizadas chegaram a tal ponto que desmerecem as culturas orais, as tratam como inferiores e as chamam de subdesenvolvidas.

O mundo da voltas e mesmo a pessoa mais erudita da cultura escrita está atualmente sendo constrangida pelo veloz surgimento de uma outra cultura, talvez ainda mais arrogante e de poder avassalador, a cultura digital. O império do código escrito está começando a declinar, pois mesmo alguém já morto há muito tempo ou distante milhares de quilômetros pode ser escutado e visto como se estivesse sentado do nosso lado ao redor da fogueira. A erudição pode vir sem a necessidade de decifrar nenhum volume impresso em papel. Todos tem acesso a tudo a qualquer momento num pequeno aparelho eletrônico que cabe no bolso e falta pouco para que possa ser implantado no cérebro. Isso inclui os livros e jornais impressos, mas vai muito além. A digitalização entrou na também academia, qualquer pessoa que deseja saber o que Steven Pinker ou Peter Singer sabem não mais precisa decifrar as seiscentas páginas de papel de cada um de seus livros, mas sim pode ouvi-los falar no YouTube as mesmas palavras. O conhecimento se democratizou. Alguém que vivenciou uma cena pode mostrar para seus interlocutores o que viu e ouviu, há minutos ou há anos e essa memória partilhada é mais fiel a realidade que qualquer fala ou escrita. A digitalização do conhecimento potencializou a memória de forma exponencial. Pela primeira vez na história, os indivíduos mais jovens podem ter o que ensinar para os mais velhos, tal a velocidade de transmissão das informações. De novo, os detentores da cultura ancestral desdenham dos mais novos: como assim o conhecimento pode ser transmitido sem leitura??? Absurdo!!! Mas o mundo não para e é impiedoso com aqueles que se recusam a ficar parados no tempo.

O neurologista português, Antônio Damasio, nos ensinou, no seu livro O Erro de Descartes, que para tomar qualquer decisão, desde se queremos ou não um cafezinho até se aceitamos casar com a Marília, consultamos rapidamente a memória de toda nossa história prévia para melhor decidir o que fazer. Atualmente, com essas próteses de memória portáteis, podemos consultar a memória do mundo inteiro. Assim, algo que poderia ajudar, pois acelera a obtenção de dados a respeito do que fazer, pode também dificultar a decisão numa magnitude oceânica. Se antes era relativamente fácil, pois só tínhamos que analisar a Marília, a Valdete, a Maria das Dores, a Lavínia e a Nilce, nossas vizinhas de aldeia na idade de acasalar, agora temos milhares de possibilidades no Tinder, num raio de 50km, para avaliar. Os sofrimentos psíquicos de ansiedade e depressão, que antigamente eram raros, são agora epidêmicos. Temos a memória do mundo visível na palma da mão e veranear em Cidreira parece muito pior que veranear em Creta. A memória das paisagens gaúchas e gregas estão ali na nossa memória protética para compararmos.

O conhecimento se democratizou e a memória se tornou global, divina e onipresente. Porém, paradoxalmente, as decisões não tem sido mais sabias. Selecionar o que é joio do que é trigo no manancial de informações que recebemos diariamente se tornou uma tarefa difícil. Ainda não há um aplicativo do bom senso. A erudição na atualidade está justamente aí, a pessoa que consegue sabiamente acompanhar o avanço desembestado da cultura digital sobre todas as outras sabendo diferenciar o que é o conhecimento pertinente do que é festim. E aqui chegamos ao filósofo francês Edgar Morin no seu livro Os Sete Saberes Necessários a Educação do Futuro. As escolas não mais precisam ensinar a decifrar o código escrito ou a tabuada, esses saberes serão facilmente acessíveis on line para quem quiser se divertir, mas sim precisamos ensinar os alunos a diferenciar o que é relevante na floresta do conhecimento. O bom pesquisador, treinado, saberá perceber o que interessa para a construção de novos conhecimentos pertinentes. No atual ritmo de devastação ambiental que a enorme exposição ao conhecimento e a memória proporcionou, que ameaça nossa própria espécie, não vou me admirar se aos poucos cheguemos a conclusão que bom mesmo era aquela conversa com os anciãos ao redor da fogueira, ou quem sabe até aquela memória visual, tátil, olfativa, sonora e gustativa dos bebês, gatinhos e cachorros. Eles é que sabiam mais o que é realmente necessário para ser feliz, desde o início.  

segunda-feira, 5 de abril de 2021

 Cada um por si e Deus por todos. 

Com a crescente polarização política no Brasil, aos poucos vamos descobrindo preferências de amigos que gostaríamos de nem saber. Aquele sorridente ex-colega de escola ou vizinho de infância se revela de tal forma que sua alegria aparece para nós agora como a encarnação do mal. O fenômeno não é só de nosso país, mas internacional. Uma confusão de mocinhos e bandidos caricatos que se alternam e nos horrorizam. 

Meme, para quem ficou numa caverna nos últimos quarenta e cinco anos e ainda não sabe, é o termo inventado pelo biólogo inglês Richard Dawkins, no seu livro basilar “O Gene Egoísta” de 1976. Meme, mimetiza gene: os genes são pedacinhos de informações genéticas que determinam a constituição dos seres vivos, já os memes são pedacinhos de informações culturais que determinam a cultura do indivíduo. Assim como os genes, os memes também são passados de geração para geração e sofrem mutações como adaptações ao meio em que estão inseridos. No entanto, a evolução memética dos seres humanos foi acelerada  fantasticamente nos últimos anos, potencializada pelo espetacular poder de amplificação de vozes proporcionado pelas tecnologias que unem opiniões semelhantes e afastam as destoantes em maquininhas portáteis como celulares. A seleção natural dos memes diante do meio ambiente em rápida transformação que se apresenta para cada indivíduo vai determinando o surgimento de diferentes nichos e espécies culturais tão díspares que já não se misturam. Um indivíduo causa até asco e repulsa a outro com memes muito diferentes. As mutações meméticas cresceram em proporção geométrica a tal ponto que cada grupo percebe o outro como asqueroso e grotesco como humanos veem uma lesma apesar de termos muitos genes em comum. 

Ao longo da vida fui me tornando uma espécie de guru, seguido por muitos, por ter vivido uma vida um tanto distante de ordinária. Um de meus pupilos, daqueles que me consultava para tomar decisões importantes, foi trilhando uma trajetória que no início me orgulhava por eu ser parcialmente responsável, formou-se mestre em biologia. Porém, ao longo do tempo, fomos nos afastando física e intelectualmente, atualmente ele vive num nicho cultural tão distante do meu que já não o reconheço e nego se me imputarem responsabilidade por sua formação. Ele se transformou num monstro fascista e totalitário que me causa nojo. Leu um livro com o título de “Como ficar milionário” e aquela obra, segundo ele mesmo, mudou sua vida. O simples título já me causa horror, mas suas atitudes seguiam as dicas do livro à risca. Agia para enriquecer em pequenas coisas, como cobrar caronas ou aparecer na casa dos amigos na hora do almoço. Mas era sovina e avarento nas grandes decisões também, como casar-se com alguém igualmente ambicioso, ser contra o isolamento social durante a pandemia que atrapalhava seus negócios e até mesmo não vacinar os filhos contra nada. Como alguém que viveu na mesma rua que eu na infância, que estudou em boas escolas, se alimentou bem e cresceu sadio graças a vacinas e solidariedade de outras pessoas se torna assim? Uma pessoa sem empatia nenhuma, repugnante… Como direi… Um verdadeiro Bolsonaro!  

A resposta não é tão simples. Precisamos compreender e até nos reconhecer nas atitudes desses estranhos fariseus, precisamos ser empáticos a eles e, como Jesus ensinou, perdoar e amá-los como a nós mesmos.  Fui viajar de moto no final de semana seguindo as orientações do Google Maps. Lá pelas tantas, o aplicativo me conduziu a uma estrada de chão. Tudo bem, estou acostumado, moro num lugarejo que também não se chega por vias asfaltadas. Porém, estava num ritmo de viagem de estradas pavimentadas e com garupa. Ao final do trecho de terra, paramos para comprar água numa pequena cidade que nunca tinha ouvido falar, Charrua. Percebi o pneu vazio e gelei, talvez tenha abusado da velocidade na estrada precária. Procurei um borracheiro, receoso, minha moto não é comum, muito menos seus pneus. Fiquei calculando todo o transtorno para conseguir voltar a rodar normalmente. Uma oficina que pudesse reparar aquilo é rara. Se ele me cobrasse mil reais para que eu pudesse seguir viagem, atiraria o dinheiro na sua cara e acharia barato! Onde eu conseguiria outro pneu daquela medida em cidade tão pequena? Eu mesmo não conseguiria arrumar o estrago, me faltam conhecimentos e o ferramental necessário. O rapaz foi solícito e nos atendeu rapidamente com suas mãos sujas e feridas da labuta, encontrou o vazamento usando sua própria saliva. Vedou o furo na roda traseira sem as ferramentas adequadas, mas com muito esforço corporal. Me cobrou o serviço num valor menor ao cobrado na minha já pequena cidade e muito inferior ao valor cobrado numa cidade grande. Pensei em oferecer um tanto a mais, pois aquele preço obviamente não cobria seus custos, não tinha nem uma garrafinha com detergente para achar o vazamento, mas paguei só o que me pediu. Estava saindo da oficina quando percebi mais um vazamento, o rapaz foi ainda mais rápido no conserto e me pediu desculpas por não ter percebido aquele segundo furo antes, não quis me cobrar esse novo serviço como se a culpa fosse dele. Agradeci e sai refletindo sobre a cena. Se o primeiro reparo eu já achei que ele estava sendo generoso comigo, no segundo entendi que estava patrocinando o sucesso da minha viagem. Me percebi explorando explicitamente o serviço do moço. Minha omissão e conivência com a diferença social me lembraram três personagens: meu amigo fascista, Jesus  e Hanna Arendt. 

Meu amigo inescrupuloso e explorador até pechincharia o valor do reparo, já que diz, com todas as letras, que se cada um com quem cruzar contribuir com um pouquinho para seu enriquecimento, a pessoa não se sentirá explorada e ele gastará menos. Já testemunhei várias vezes em que ele tentou pagar menos que os outros, inclusive regateando comigo. Sua fama o precede e suas histórias de avareza são contadas como piada por onde passa. Seu apelido é “Chupa-cabra”, pois suga o que pode dos outros. Ao mesmo tempo que seus planos de enriquecimento estão funcionando, seus amigos estão se afastando.

Jesus pregava que tínhamos que dividir o pão e amar ao próximo como a nós mesmos. Bueno, me coloquei no lugar daquele jovem borracheiro de mãos sofridas. Eu valorizei muito seu trabalho, estava precisando muito daquela expertise naquele lugar ermo, podia pagar justamente, porque não o fiz? Porque não dividi minha riqueza com aquele despossuído? Agi exatamente como meu amigo sovina, enriqueci me aproveitando de sua ignorância. Sou igual a ele. Não amo os próximos a mim e não tenho empatia por suas dores. Quando surge a necessidade, ajo como um Bolsonaro, só penso nas minhas conveniências. 

Já, Hanna Arendt, filósofa judia, ao acompanhar, estudar, refletir e escrever sobre o julgamento de Adolf Eichmann, oficial da SS nazista acusado de chefiar a logistica de transporte dos judeus para os campos de concentração nazista, percebeu que ele era uma pessoa comum. Eichmann não era um psicopata, mas sim um cidadão de bem, seguidor de leis e que ambicionava melhorar na carreira, ser promovido e ganhar mais. Todas suas ações foram sempre para melhor cumprir suas ordens. Quando interrogado, ele nunca admitiu que matou nenhum judeu, somente assinava papéis para que viajassem, ainda que amontoados em vagões de carga. Hanna então cunhou a expressão da “banalidade do mal”. Qualquer pessoa pode se transformar num monstro fascista se viver irrefletidamente. Eu, obviamente, sou um grande candidato a Eichmann, pois nos gestos mais singelos, como ao consertar um pneu furado, posso abdicar da razão por prazeres comezinhos de ocasião, como pagar barato para um trabalhador interiorano. Hanna foi mal interpretada em sua época e massacrada pela comunidade judaica, acreditavam que ela tinha sido cooptada por nazistas. Aos poucos, suas opiniões foram esclarecidas. Em nenhum momento ela perdoava o genocida Eichmann, mas, ao contrário, o acusava de só pensar em si, agir de forma egoísta, de não refletir sobre suas ações no mundo e de ser indiferente à sorte dos outros. 

A polarização política atual está dividida basicamente aí: há aqueles egoístas que acham que o estado deve ser de natureza, cada um por si e Deus por todos, os Eichmann da vida, e aqueles solidários que acham que o estado deve ser de direito, precisamos ter empatia por quem nem se conhece e pensar em suas necessidades como se fossem nossas, os seguidores de Jesus. O lema de Jesus era liberdade, igualdade, fraternidade, lema adotado depois por muitas repúblicas, já o lema da campanha eleitoral do atual presidente brasileiro, “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, aliás, plagiando o hino nacional alemão dos tempos de Hitler, reflete muito de que lado da equação está meu amigo fascista, Bolsonaro e seus eleitores. Apesar de falar em Deus e se apresentarem como cristãos, agem de forma inversa, como o próprio lema sugere: o Brasil deve estar acima de tudo e o resto que se lasque, não temos nada a ver com o resto, e esse deus acima de todos que salve quem merecer sua misericórdia, mas ninguém mais tem nada com isso. Para Bolsonaro, a responsabilidade de cuidado para com os cidadãos do país é transcendente ao estado. O próprio lema delata seus redatores, o que vale é a lei da selva: cada um por si e salve-se quem puder. As atitudes do presidente denunciam que é isso mesmo, ele crê que um deus salva quem merece e tem histórico de atleta, “vamos salvar a economia, todo mundo um dia vai morrer mesmo”. Hanna talvez observasse Bolsonaro e sua turma e não identificasse monstros, mas sim pessoas comuns, de bem, colegas sorridentes e alegres vizinhos de infância, como Eichmann, que pensam em seguir leis e obedecer a ordem, que pensam em melhorar de vida, que não querem refletir muito sobre a vida e pensam que se omitir diante da injustiça, como eu no borracheiro, está bem. O mal se torna banal desde as pequenas coisas, mas pequenas gotas formam o oceano e precisamos refletir sobre nossas ações no mundo, desde as menores até as mais significativas.

A própria palavra “meme” evoluiu muito também nesse pouco tempo de vida, a evolução memética é muito mais rápida que a genética. Atualmente, meme significa uma figurinha na internet, um GIF engraçado, uma piadinha em vídeo de Whatsapp. O meio ambiente cultural se transformou dramaticamente em 45 anos e novas palavras tiveram que ser criadas ou modificaram seu sentido, adaptando-se às mudanças. Celular, por exemplo, significava somente algo relativo a uma célula biológica e agora poucos lembram desse significado. Os nichos ecológicos culturais estão se radicalizando nas diferenças, se distanciando cada vez mais profundamente. Estou convencido que a atual conjuntura tem sua gênese e está intimamente relacionada com a democracia e suas eleições, tanto quanto com o fenômeno esportivo. Acredito que isso é resultado de um século de endeusamento das competições. Gremistas e colorados fazem o inverso do que Jesus ensinou, odiai-vos uns aos outros. O mesmo acontece com capitalistas e socialistas, coxinhas e mortadelas, petistas e bolsonaristas. Quero deixar claro que sou favorável à democracia como método de resolução de conflitos, mas ressaltando que mesmo o melhor remédio tem na dose a diferença para o veneno. Hitler era extremamente democrático, fazia muitos plebiscitos. A Alemanha deve estar acima de todos no mundo (Deutschland über alles, über alles in der Welt)? Siiiiiim, respondiam os alemães sem muito refletir o que aquilo significava. Como Hanna Arendt falando de Eichmann, acredito que o cidadão em posição de decisão tem que refletir muito sobre suas ações no mundo e ser empático com as outras pessoas. Eleições podem se tornar venenosas para a sociedade principalmente diante da facilidade de manipulação de seus eleitores. As possibilidades para distorcer a realidade na atual conjuntura com redes sociais eletrônicas que misturam seres humanos e robôs distribuindo mutações meméticas de toda sorte estão elevadas na enésima potência, é impossível haver eleições sem manipulações de toda sorte. Eleições são uma competição de ideias e elas estão se polarizando, se radicalizando nas diferenças, o ódio está crescendo muito na sociedade. Platão, há 2500 anos, já nos alertava para o perigo da democracia: pessoas que não refletem também votam.