domingo, 17 de fevereiro de 2019


Meu filho, meu pai, e eu que sou nenhum deles mas um pouco dos dois

Meu filho Rodrigo mora longe, no Paraná. Todo ano me visita por uns 15 dias. Esse ano decidi que iríamos caminhar por trilhas pelo mato, até a Reserva Indígena Federal do Campo Molhado em Maquiné. Exerci o poder que o papel de pai me autoriza. Não coloquei em votação ou o consultei, determinei. Claro que, se fosse perguntar, ele certamente preferiria ir a um shopping ou a praia tomar sorvete. Nas férias, meu filho conheceria uma aldeia real, não só por fotos em livros de história. Queria que ele vivenciasse a experiência de conviver com um povo nativo, obviamente em extinção, que testemunhasse aquela cultura viva, no seu habitat original. Quando o comuniquei, ele simplesmente disse: tá. Com mais um dos monossílabos que o caracteriza e me incomodam.
Combinei com mais dois amigos, Ricardo e Daniel, com experiência em longas caminhadas, aquelas de dias de duração, para irem conosco. Eles acharam melhor contratarmos um guia para o início da trilha, a parte mais difícil, a escalada das montanhas. Procurei um velho mateiro, Seu Adelino, de 72 anos de idade. Acertamos o preço para um dia inteiro e ele também nos levaria de jipe até a boca da trilha. Arrumamos a mochila e, no dia combinado, saímos caminhando até a casa do guia. Ele já nos esperava. Subimos no jerico e partimos em direção ao fundo do vale do Rio do Ouro.

Perto do fim da precária estradinha, aquele jipinho estragou. Nosso diligente guia ainda tentou fuçar um pouco, mas logo desistiu de consertar. A partir dali, seguimos a pé. Na primeira travessia de rio, meu filho escorregou e caiu de costas dentro d’água, molhando todas as coisas de sua mochila. Tudo bem, ele levava a menor mochila, eram mais comidas, latas e sacos plásticos. Na sequência, fui eu quem escorregou e enchi as botas de água. Tínhamos caminhado 500m de trilha e já estávamos ambos com os pés molhados! Temi que teríamos uma jornada de muito sofrimento, com bolhas e frieiras nos pés. Mas o sol brilhava por entre as árvores e estávamos animados. Passamos pelas últimas casinhas habitadas e começamos a subir a montanha sempre costeando o rio. Seu Adelino ia tranquilo, animado, nos mostrando locais curiosos, como estrebarias em ruínas, casas abandonadas, árvores centenárias e cachoeiras bonitas. O cheiro úmido da floresta nos envolvia completamente. Cruzamos mais umas cinco ou seis vezes o rio sobre pedras escorregadias e todos acabamos caindo na água, inclusive o velho mateiro!

O vale do Rio do Ouro chegou a ter mais de 600 moradores, era todo ocupado com roças e criações. Mas, com as leis ambientais, a forma ancestral de fazer agricultura nas encostas, com o uso das queimadas, ficou inviabilizada. Todos abandonaram o vale e hoje a aparência é de floresta virgem, de que nunca houve ocupação humana ali. Mas, o olhar atento de nossos dois companheiros, ambos biólogos, iam nos alertando para espécies exóticas de flores e frutas de antigos jardins e pomares, que sobreviveram. Íamos provando o gosto daquela floresta com frutinhas que nos indicavam para comer.

Por volta de uma da tarde, chegamos ao alto da montanha. Nos despedimos de seu Adelino, que agora faria o caminho de volta. Aos 72 anos, ele era o menos cansado. Tirei a camiseta e as calças, as trilhas seriam mais abertas nos campos de cima da serra e não precisaria mais tanto delas para proteger o corpo de arranhões da mata. Mesmo ali na serra, sendo um clima mais ameno do que quando começamos a caminhada no vale, ainda estava quente, era janeiro! Torci a camiseta e foi como torcer um pano de chão: saiu um abundante caldo sujo, puro suor. Trouxemos muita bebida, mas agora tudo estava no fim. Para cozinharmos o almoço deveríamos primeiro encontrar água corrente e limpa. Descansamos um pouco, ninguém tinha se ferido ou ficado exausto na subida. Meus pés estavam bem, apesar do esforço da escalada com pesadas mochilas nas costas. Surpreendentemente, meu filho não reclamava da jornada, mantinha-se em silêncio. Troquei algumas peças de roupa, coloquei calções e meias secas e seguimos viagem preocupados em encontrar o que beber, mas agora de tronco nu.
Paramos para almoçar ao lado de um córrego de águas limpas. Cozinhamos, enchemos os cantis e tiramos fotos. Meu filho Rodrigo tem hábitos alimentares muito restritos, quase só come carne. Se negou a comer a massa com atum que fizemos. Insisti, irritado, então ele comeu umas quatro garfadas com cara de nojo, depois jogando fora quase tudo. Comeu barrinhas de cereal e bolachas me deixando profundamente incomodado e constrangido diante de meus dois amigos. Pensei que a fome do esforço da caminhada e a ausência de carne num raio de 15km, o transformaria em comedor de qualquer coisa, mas não. Ele não é como eu gostaria que fosse e esse veraneio foi bem educativo para esse pai que te escreve, caro leitor.

Arrumamos novamente as mochilas e partimos. Em duas horas, chegamos numa porteira com dizeres que ali começava a reserva indígena. A entrada era proibida para estranhos, o que me fez relutante em cruzar a fronteira. Porém, fui logo convencido por meus companheiros de viagem a atravessar a barreira. Perto das cinco da tarde, ao som de arapongas, chegamos à aldeia indígena com suas choupanas feitas de troncos de xaxim e telhados de taquara. Fomos recebidos por um intérprete sorridente, Lucas. Conversamos um momento e pedimos para acampar por ali. Ele, então, nos surpreendeu com uma generosa oferta: nós poderíamos dormir no galpão despensa, onde eles tem freezers que guardam a comida da comunidade. Além disso, pegou uma motosserra, serrou um tronco em pequenos tocos e rachou muita lenha para nós. Ele mesmo acendeu o fogo e sentou-se para conversar. Pegamos nossas coisas de higiene e roupas limpas e perguntamos por um local para banho. Lucas nos conduziu para um pequeno córrego e nos deixou à vontade. Eu e Ricardo nos pelamos e tomamos um banho rápido, Daniel e Rodrigo não se animaram com a precariedade do local. Queriam mergulhar e ali no máximo dava para molhar a bunda. De novo, me aborreci com as atitudes de meu filho, mas achei que ele logo estaria assado por caminhar suado e isso seria uma boa lição.

Cozinhamos uma deliciosa refeição no jantar, arroz com linguiça e lentilhas. Partilhamos com Lucas e um outro indígena jovem que ali permanecia totalmente em silêncio pois não falava português. Eles comeram satisfeitos, mas meu filho Rodrigo novamente preferiu bolachas. Constrangimento número três. Eu já não me aborreci tanto agora, sabia que mais uns dias de fome ele cederia. Ficamos conversando ao redor do fogo, limpos e satisfeitos até anoitecer, contando causos. Daniel, Ricardo e Lucas acenderam cigarros de palha e ferveram um chá. Bebemos e gargalhamos juntos, hidratando e descansando os corpos da dura caminhada do primeiro dia. Lá pelas tantas, perguntaram sobre um texto meu que haviam lido. Recontei tudo, animado, à luz da fogueira. Todos acharam muito engraçada e curiosa a história e, quando olhei para o lado, vi o rosto do meu filho iluminado. Ele estava alegre, rindo e surpreso com minha narrativa, nunca tinha me ouvido contar alguma história ou, as que por acaso escutara, não o havia interessado. Naquele lugar distante, sem sinal de wi-fi por perto ou uma tomada para carregar o celular, talvez inebriado pelo cheiro da fumaça e a fome que certamente o abatia, no completo escuro da noite, meu filho me viu e escutou pela primeira vez. Aquele momento, com os indígenas, talvez tenha sido muito educativo para esse filho que mora distante e não conhece o próprio pai.

Fomos dormir no chão duro de tábuas que haviam nos cedido. Apesar de cansado, não adormeci rápido. Fiquei a sós com meus pensamentos no completo breu do galpão. Passei a lembrar da minha infância e adolescência. Naquele tempo, não havia computadores ou celulares e os melhores momentos eram semelhantes àqueles que meu filho havia recém experimentado: Conversas com meus pais à noite. Geralmente no verão, nas férias ou veraneios. Nas noites quentes, abríamos as cadeiras preguiçosas no meio do pátio e ficávamos a filosofar sob a luz das estrelas durante horas. Era encantador ouvir histórias de filmes que haviam assistido no cinema, de livros que tinham lido, de pessoas que conheceram ou lugares por onde haviam viajado. Como aqueles momentos me marcaram. Lembrei dos gostos de meu pai, tão diferentes dos meus. Quantas vezes eu o desapontei, como agora meu filho faz comigo. Talvez eu tenha feito cara de nojo para comidas que ele gostava, o constrangido na frente de amigos ou respondido com monossílabos e desinteresse propostas que ele considerava empolgantes. Ele era um grande futebolista e eu sou um radical militante anti esportes, especialmente o futebol. Com certeza deve ter tido algum momento que ele me passou a bola e eu nem olhei. Finalmente adormeci, amadurecido pelo remoer das mazelas familiares.

O segundo dia amanheceu frio e com uma espessa serração. A paisagem era cinzenta e ao mesmo tempo colorida, um ambiente onírico. Comemos pão com castanhas e linguiça em volta da fogueira, partilhando com nossos anfitriões indígenas. Cães e galinhas ciscavam ao nosso redor. Estávamos já bem integrados àquela comunidade. Nas conversas durante a refeição, fomos desaconselhados por Lucas a seguir com nosso plano de caminhar até a nascente do Rio dos Sinos em Caraá. Segundo ele, seriam umas oito horas de caminhada e muitas oportunidades de se perder pelas trilhas do caminho. Se errássemos uma única encruzilhada, ficaríamos perdidos por dias. Nos sugeriu caminhar para um grande lago que havia na reserva e lá acampar. Também nos convidou a ajudar na construção de uma Oga Tatu (uma oca, com g mesmo, em formato de casco de tatu, para receber visitantes como nós). Concordamos então com as duas sugestões. Não tínhamos provisões para ficar perdidos na floresta e também achamos justo, depois de tal generosidade na acolhida, que retribuíssemos de alguma forma.
Depois do café da manhã, subimos num Jerico semelhante àquele de Seu Adelino. Fomos por estradinhas da reserva até uma área que usavam para extrair madeira, com árvores relativamente jovens e troncos ainda finos. Lucas cortou algumas árvores e carregamos os troncos para a carreta agrícola. Antes de terminada a tarefa, estragou a motosserra. Lucas parou o trabalho, calmamente desmontou a parte avariada e, enquanto conversava conosco, fez o conserto eficazmente. Terminamos o trabalho brincando de dirigir o jerico. No almoço, cozinhamos juntos no fogo de chão do galpão e novamente meu filho comeu somente bolachas. Comecei a ficar preocupado, pois, havia dois dias que o guri se alimentava mal, dias de muito esforço físico e ainda tínhamos muito o que caminhar.

À tardinha, ainda sob neblina intensa, compramos algum artesanato dos indígenas para sermos simpáticos e termos lembranças em casa do passeio, nos despedimos e partimos da aldeia em direção ao lago da reserva. Lucas havia nos alertado que seria cerca de uma hora de caminhada fácil. Porém, a realidade para nós foi de duas horas de trilha dura. O que nos fez refletir sobre aquelas oito horas até a nascente do Rio dos Sinos: talvez fossem dezesseis. Não conseguiríamos fazer num dia só, fora os momentos perdidos. Passaríamos fome, pois só tínhamos mais duas refeições nas mochilas.

Montamos as barracas pela primeira vez para acampar na beira do lago. Enquanto eu mantinha aceso o fogo para cozinharmos e catava mais lenha para a refeição, meus três companheiros de viagem resolveram tomar um banho. Apesar da serração e da aparência de inverno, não estava frio. Os três entraram nus no lago, nadaram e se lavaram. E desta vez fui o único que não quis entrar na água. Preferi ficar de fora registrando o momento, fotografar a cena que finalmente meu filho me orgulhava. Ali estava ele: ao anoitecer, no meio do nada, distante de tudo, sem celular, internet ou sinal de wi-fi, nem mesmo luz elétrica, nu e em contato intenso com a natureza preservada. Coisa que ia além até do que eu havia planejado para ele naquele veraneio. Ele não reclamava de nada e aquilo me deixava bem contente. Conversava e ria com os amigos adultos, mergulhado até o pescoço nas águas escuras e profundas do lago, com naturalidade. Não estava com nojo nem medo do ambiente. Acredito que ali naquele momento, meu filho cresceu muito. Cozinhamos massa na fogueira embaixo de um enorme pinheiro, com lenha úmida da serração. Demorou e já era noite quando demos por pronta a comida. Meu filho se adiantou e pediu para separarmos um prato de massa antes de misturarmos o molho de tomates e atum. Depois de 72 horas de esforço físico intenso, meu filho fez sua primeira refeição quente: massa pura. Sim, cresceu e me deu um alívio. Estava deixando de ser aquele monossilábico rapazinho, calado e sem expressão no rosto, para lentamente começar a conversar e sorrir.  

Dormimos nas barracas e, enquanto meus companheiros roncavam, de novo fiquei a sós com meus pensamentos e lembranças. Não eram as três onças pardas que vivem na reserva que me inquietavam no escuro da noite. Estávamos, eu e meu filho, muito mais próximos agora, não só fisicamente, apertados numa barraquinha de dois, mas também afetivamente. No entanto, ainda enxergo um abismo entre nós e talvez seja só uma aproximação ilusória ou temporária. Logo ele retornará a sua rotina de vídeo games, isso é inevitável. Porém, nos dias em que está comigo, tento oferecer experiências alternativas. Talvez, num futuro distante, ele venha a reconhecer meu esforço. Assim como eu agora percebo o esforço de meu pai. Com quatro filhos, era bem mais difícil! No teto de uma Belina verde, Dr. Jacques acomodava um bagageiro para uma barraca de seis pessoas, mais todos os apetrechos para acampar. Partia em veraneios desconfortáveis de mês inteiro, no calor do verão, para viver alguns momentos junto com os filhos. Ele tentava valorizar meus conhecimentos de escoteiro, que se resumiam a como espetar os ferrinhos no chão para a barraca não voar. Ser pai não é nada fácil, mas reconheço que ser filho também não. O problema é que somos dois (três) seres humanos diferentes, apesar de termos uma grande semelhança de feições. Como aquele cara tão eu no espelho, não se parece nada comigo? Atormentado pela dúvida, pela culpa angustiante de viver, adormeci com o ruído das gotas de sereno acumulado nas flechilhas do pinheiro caindo sobre a barraca.
Acordamos às sete da manhã, comemos o que ainda havia de comida, desmontamos as barracas e arrumamos as mochilas pela última vez. Sem as comidas, estavam bem mais leves agora, mas para nós, já bem mais cansados, não fazia muita diferença. A descida da montanha em direção ao Rio Pinheiro foi a parte mais difícil da jornada. O peso da mochila e a aceleração da gravidade em cada passo para baixo que dávamos na trilha, exercia um grande impacto nas articulações, músculos e pés. Segundo Lucas, daria uma hora de caminhada do lago até a estrada para Barra do Ouro. Mas demoramos bem mais, saímos às nove da manhã e só paramos às duas da tarde. Ricardo ia nos mostrando os diversos tipos de florestas: cambriana, ombrófila, ombrófila mista... Em alguns momentos, onde havia um local livre de árvores para admirarmos a paisagem da descida, parávamos um pouco. Entre as brechas de nuvens dava para ver as casinhas lá embaixo no vale. Estávamos perto agora.
Lá pelas tantas, paramos para descansar e beber água de um córrego. Largamos as mochilas no chão ao lado da trilha e sentamos os corpos suados em pedras. Estávamos exaustos, sujos de lama, arranhados, descabelados, alguns com escoriações dos escorregões da descida. Nisso, passam por nós, caminhando sem pressa nenhuma, duas jovens indígenas. Elas estavam fazendo a mesma trilha que nós, vindo do mesmo lugar e indo também para o mesmo destino, no entanto estavam com roupas limpas e cabelo arrumado, nem suadas estavam. Nós, os quatro marmanjos brancos, demos um oi constrangido e ficamos nos sentindo os mais incompetentes e desajeitados caminhantes que por ali já haviam passado.
Por eu ser quinze anos mais velho que Daniel e Ricardo e por Rodrigo ser vinte mais jovem que eles, achei que seríamos, o mais novo e o mais velho, os que mais sofreriam na caminhada. Mas surpreendentemente, foi um deles quem começou a ficar para trás no último dia. Ricardo usou um blusão de lã no começo da manhã, apesar de eu avisar do risco de superaquecimento. Logo os efeitos do blusão se fizeram sentir, era ele quem sempre pedia para parar para um descanso. Quando chegamos ao fim da descida da montanha, já no vale habitado fora da reserva, entrou nu para um banho no rio enquanto nós três o esperávamos conversando sentados. Na estrada, invadia as propriedades para comer milho verde. Comeu quatro! Quando virávamos para olhar, ele sumia nas curvas da estrada de tão para trás que estava. Um pequeno erro assim, como usar a roupa inadequada, pode acabar com o humor de todos. Ele sofreu um superaquecimento que o prejudicou muito. Porém, claro que todos estávamos bem cansados. Eu mesmo sentia algumas bolhas nos pés. Meu filho não reclamou de nada em nenhum momento, mas percebi que seu pé estava um pouco ferido de tanto andar.
Chegamos à "civilização", finalmente. Paramos num bolicho de beira de estrada e compramos bolachas e água. Rodrigo tomou uma coca e Daniel e Ricardo cerveja. Esperamos o ônibus e voltamos para casa. Tomamos um bom banho e fomos jantar num restaurante próximo. Enchemos a pança de comida até estourar e fomos dormir em confortáveis camas. Tínhamos cumprido a tarefa com êxito. No outro dia, contei a um funcionário do supermercado que tinha nos visto sair de mochila nas costas naquela primeira manhã, como tudo tinha ocorrido. Ele ficou impressionado com a história e refletiu: Se fosse o contrário e os indígenas aparecessem na minha casa pedindo para acampar, eu não deixaria eles ocuparem meu galpão, ainda menos onde armazeno comida.
Aprendi muito nessa pequena viagem a pé. Estou com cinquenta anos, numa fase da vida que já começo a entender a finitude, a passagem, a transitoriedade. Percebi não cristãos agirem como cristãos, partilhando generosos o que tem, e cristãos não agirem como Jesus ensinou. Testemunhei idosos subindo trilhas íngremes guiando os mais jovens. Reconheci o processo de crescimento e aprendizagem acontecendo diante de meus olhos. Adivinhei que um companheiro iria superaquecer. Consegui evitar ferimentos e exaustão até os últimos instantes. Vi indígenas calmamente consertando máquinas e brancos desistindo de fazer isso. E principalmente, acredito que comecei a perdoar meu pai e meu filho por não serem como eu.
Caro Leitor, recomendo que caminhe por trilhas desconhecidas, sofra, sue muito, passe sede e fome, durma em chão duro, fique sem sinal de celular, wi-fi ou luz elétrica, e procure levar contigo teus amigos, pois é uma forma muito eficaz de crescimento e aprendizado.
 “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”
Joan Manuel Serrat


terça-feira, 12 de fevereiro de 2019


O ninho do urubu
A tragédia do incêndio nos alojamentos do centro de treinamento do Flamengo, o Ninho do Urubu, que vitimou dez rapazes jovens, me encheu de indignação por várias razões. Até assisti o Jornal Nacional e o programa Fantástico de novo no youtube para ver melhor como o assunto foi mostrado. As reportagens tratam como normal que adolescentes, aqueles com os corpos mais desejáveis para o esporte, sejam levados de casa ao redor dos doze anos para viver em outra cidade e alguns ficam mais de ano sem ver suas famílias. Surpreende que esse sequestro seja autorizado pelos pais na esperança de que as crianças tenham um futuro melhor e usufruam dos confortos de uma vida de luxo, quem sabe até tragam para casa alguma sobra. No meu entender, isso lembra muito os escravos de dentro da casa grande, que vestiam roupas, comiam melhor, dormiam em camas e faziam sexo com as elites, vida muito diferente daqueles que ficavam nas senzalas. Não há diferença, não deixaram de ser cruelmente explorados durante sua curta vida útil de jovens e belos corpos. Só ficamos sabendo da existência desses rapazes invisíveis devido ao seu espetacular trágico desfecho. Até na sua morte, os garotos viraram produto de venda para os meios de comunicação. As reportagens mostram como os adolescentes eram bem tratados, como os alojamentos eram confortáveis e como tinham equipamentos de lazer, educação e cuidados médicos e psicológicos. Todos esses atletas das categorias de base sofrem diversas lesões durante sua vida “útil”, alguns tendo inclusive que fazer várias intervenções cirúrgicas. Um caso clássico é do jogador Ronaldinho “fenômeno”, que virou profissional aos 16 anos e só faltava ter um zíper nos joelhos de tantas operações a que foi submetido. Ao mesmo tempo, a reportagem alerta para a possibilidade de muitos dos adolescentes não conseguirem sequer realizar o sonho de chegar ao estrelato desejado ou pelo menos à carreira profissional. Serão descartados como refugo aqueles que não obtiverem êxito e não renderem lucros aos empresários que ali investirem, a esmagadora maioria. As reportagens indignam-se com a negligência e imperícia na construção e manutenção dos alojamentos que resultaram no incêndio, mas em nenhum momento questiona que os meninos sejam objetos de negócios, ou no máximo, animais de rinha que são criados a pão de ló para vencer em competições. Me espanta também, a hegemonia da religiosidade dos atletas e dos parentes. Todos são unânimes em lembrar Deus ao se referir a tragédia. Ou por agradecimento por supostamente tê-los salvo, ou resignando-se diante dos desejos caprichosos de um deus perverso que leva para junto de si, queimando vivos, jovens de 14 ou 15 anos. A simplicidade da formação moral de todos os envolvidos (pais, adolescentes e repórteres) impressiona. Nenhum foi capaz de contextualizar a situação com a conjuntura social e econômica em que vivem, creditando ao sobrenatural todo o ocorrido. Tanto dels quanto os esportes foram inventados por uma elite esperta para manter a plebe sob controle. A dominação ideológica é de tal forma eficaz, que se torna absolutamente desnecessário erguer muralhas em torno dos castelos como era comum antigamente. Basta mostrar partidas de futebol na televisão aos finais de semana e em todos os jornais fazer longas reportagens sobre a perfeição dos esportes como panaceia dos males sociais, que todos acreditarão que a vida é assim mesmo: Se tu não venceres na vida é por tua culpa, não te esforçaste o suficiente ou algum deus perverso quer que tu pegues ônibus lotados, trabalhe todo mês para auferir um salário insuficiente para a subsistência e não te revoltes contra isso. Ensinam a resignação social até nas escolas, onde a maior sala de aula sempre é o ginásio de esportes. O sistema jamais será culpado da diferença social. Ao fim, o excluído é que é o culpado da sua própria exclusão. No meu entender, o ocorrido lembrou só a desumanidade do sistema atual. Não é um abrigo para seres humanos, é um ninho de urubu.