quinta-feira, 6 de maio de 2021

 



Tambora, Corona e O Grande Inquisidor.

A erupção do vulcão do Monte Tambora, numa remota ilha da Indonésia no Oceano Indico, em 1815, foi a maior já registrada até hoje. O dramático fenômeno natural, de proporções bíblicas, expeliu uma quantidade descomunal de partículas sólidas na atmosfera. Estima-se que algo em torno de cento e oitenta quilômetros cúbicos de rochas foram pulverizados, o que formou a mais terrível nuvem de cinzas já vista pela humanidade. A trágica ocorrência cobriu a atmosfera por dois anos, determinando uma brutal diminuição de incidência solar no planeta. O evento ficou conhecido na Europa como “o ano sem verão” porque um inverno emendou no outro e fez com que as plantações e mesmo o pasto morressem no mundo inteiro. A situação foi sinistra, a fome se espalhou pelo mundo. A população de cavalos, força motriz base da economia de então, foi dizimada por não ter o que comer e por ter virado alimento para os humanos famintos. Uma gigantesca onda de inovação tecnológica se ergueu durante aquele impiedoso inverno vulcânico. Alternativas ao cavalo foram logo pensadas. Um funcionário público alemão, Karl von Drais, da pequena cidade de Karlshure próxima a Heidelberg, colocou duas rodas de madeira num cavalinho de pau e saiu rápido pelas ruas pedalando o chão, como num patinete, sentado numa confortável sela. O que poderia ser interpretado somente como um retardado circulando num brinquedo de criança em qualquer outro momento histórico, aquele cavalinho de pau determinou uma avalanche criativa nas mentes mais inteligentes e inovadoras do mundo. A invenção causou sensação naquele momento de incrível imobilidade e foi imediatamente copiada e aperfeiçoada por todo continente europeu. A primeira modificação criada foi colocar uma alavanca para direcionar a roda dianteira, possibilitando a mudança de rumo daquela maquininha tão simples. Mas a coisa não ficou por aí, pois o mundo necessitava urgentemente de soluções e aquela, apesar de um tanto ridícula, era a única que funcionava. Passaram a construí-la com treliças de tubulações metálicas soldadas, sem a cabeça do cavalo entalhada na madeira, o que não só tirou a aparência de brinquedo, mas revolucionou a construção metal mecânica da época e tornou o objeto muito mais leve e resistente. As rodas sofreram uma revolução semelhante, passaram a também ser feitas de leves aros metálicos ligados ao eixo por uma trama de cabos de aço. Isso significou, literalmente, a reinvenção da roda. O veterinário escocês John Boyd Dunlop, inventou um pneu com ar dentro para dar mais conforto ao triciclo de sua pequena filha. Novas ligas metálicas foram desenvolvidas para tornar as agora chamadas bicicletas ainda mais leves e duráveis. A máquina bicicleta não só se tornou a locomotiva de inovação tecnológica industrial, mas também uma grande atratora de mudanças sociais. As mulheres puderam começar a se deslocar rapidamente com aqueles instrumentos leves e eficientes para se reunir longe de homens. Passaram a modificar suas vestimentas para se adequar as bicicletas e surgiram as primeiras calças femininas. O movimento feminista deu um salto em quantidade de adeptas e conquistas em tal magnitude, que uma de suas maiores lideranças, Susan Anthony, chegou a declarar que nada fez mais pelo movimento feminista que as bicicletas. A crise detonada pela erupção do Tambora reacomodou a humanidade em uma nova fase, muito mais sofisticada, tanto industrial como socialmente, que ninguém poderia imaginar durante o sofrimento daquele ano sem verão. Alguém que crê em Deus diria que Ele escreve certo por linhas tortas.

O espetacular desenvolvimento humano após a erupção do Tambora foi ao custo de uma enorme degradação ambiental devido ao grande crescimento econômico, populacional e industrial dos países sobre seus territórios. Novas fontes energéticas e até mesmo novos territórios tiveram que ser encontrados, alastrando pelo mundo a fogueira da prosperidade humana. As zoonoses, doenças infecciosas vindas dos animais, passaram a se multiplicar e ser muito mais comuns entre nós humanos conforme fomos devastando o meio ambiente original. Ebola, AIDS, dengue, zika, chicungunha, malária, são todas doenças trazidas para o ser humano das florestas derrubadas, surgem novas toda vez que avançamos sobre os ecossistemas naturais para criar um sistema antropogênico. A atual pandemia do novo vírus Corona não é diferente, resulta de nossa própria eficiência na proliferação de nossa espécie sobre as demais. Deus parece gostar de matar ao escrever suas linhas bastante tortas.

Uma nova terrível praga de proporções bíblicas assola a humanidade. A pandemia do novo vírus Corona imobilizou as pessoas em casa, derrubou a economia dos países, matou muita gente e causou fome como o Tambora há duzentos anos. No entanto, enquanto alguns sofrem com o flagelo, outros privilegiados que podem se distanciar da possibilidade de contágio, trabalham intensamente para tornar o mundo mais agradável para nós humanos. Enquanto não somos extintos por nossa ganância e estupidez, as pessoas mais inteligentes e criativas vão tratando de sofisticar nossa breve existência no planeta em crise. A arte, particularmente o teatro, ficou muito debilitada com o confinamento exigido pela quarentena sanitária. No entanto, algumas cabeças brilhantes e resistentes tentam por rodas em cavalinhos de pau inovando na adversidade. Assisti à peça de teatro “O Grande Inquisidor”, com o ator Celso Frateschi, texto extraído do livro Os Irmãos Karamazov, do engenheiro militar e escritor russo Fiodór Dostoiévski, numa montagem on line. A encenação lembra um teatro normal, temos que chegar um pouco antes, lemos o programa conversando com os conhecidos que estão na “sala” virtual, podemos inclusive ver o ator se vestindo e maquiando para a entrada em cena, toca uma campainha para mantermos o silêncio fechando os microfones e a peça começa. O figurino e o cenário são perfeitos, melhores até, acredito, do que seriam num teatro de verdade, o calabouço parece mesmo um calabouço e podemos ver pequenos detalhes da roupa do personagem. Assistimos tudo de uma só câmera, como se tivéssemos sentados no teatro, ou realmente presentes na cena, no entanto, o texto nos leva a perceber que temos o ponto de vista de um dos personagens, que nunca se pronuncia ou aparece, vemos através dos olhos dele. O monólogo é de um inquisidor espanhol do século XVI que acaba de condenar Jesus que retornou, conforme havia prometido. Nós vemos através dos olhos do silencioso Jesus que serenamente aceita seu destino e somente escuta o inquisidor justificando porque foi obrigado, novamente, a condenar o Cristo à morte. O debate teológico e social é oceânico, mas meus modestos conhecimentos são de um pequeno bote, não consigo atravessar sem fazer água. Atenho-me a detalhes da montagem. Não é cinema, pois a câmera é fixa por horas, como se fosse mesmo um espectador sentado na plateia de um teatro, mas é, de certa forma, melhor que teatro, pois posso chegar tão perto do ator que vejo os pelos de suas narinas e os poros de sua pele. A experiência de assistir essa peça de teatro on line é inquietante, temos a certeza de estar assistindo um momento histórico, as primeiras voltinhas de um cavalinho de pau, mas que nos faz vislumbrar toda uma nova indústria, como Guttenberg e sua Bíblia ou os irmãos Lumière com seu cinematógrafo.

A montagem de O Grande Inquisidor on line nos põe na posição de Deus, somos Ele, vemos o que ele vê e ouvimos calados as justificativas dos poderosos para manter as diferenças sociais. Obviamente, Dostoiévski não imaginou essa montagem que assisti com recursos eletrônicos bastante atuais quando escreveu o texto, mas é interessante reparar que ele nasceu em São Petersburgo, no nordeste europeu, apenas cinco anos após o ano sem verão. Certamente sua família e ele mesmo sofreram com a fome que se abateu nos anos seguintes, não tinham cavalos ainda que fossem bem abastados e se questionavam sobre os designíos de Deus. Sua forma engenhosa de construir soluções para uma nova sociedade, como bom engenheiro militar, foi através da escrita. Fez uma obra de tal envergadura que me alcançou duzentos anos depois e me fez refletir com muita intensidade sobre as questões da atualidade. O Grande Inquisidor alerta para o fato de que a humanidade, ou melhor, os seres humanos poderosos, sempre repetirão seus erros, como condenar o Cristo novamente. No nosso caso atual, nessa terrível nuvem de vírus corona que cobre o planeta, teremos de novo pessoas que sofisticam moralmente a sociedade, como quem cria teatro on line, mas também teremos pessoas que aproveitam a crise para expandir seus negócios, passar a boiada por cima dos ecossistemas naturais, trazendo um grande aumento de destruição ambiental e provocando ainda mais zoonoses. Dizem que as crises geram grandes oportunidades, mas tanto para o bem como para o mal. Precisamos ler mais Dostoiévski ou, tão bom quanto, assistir com atenção as montagens online de seus textos para poder melhor compreender que Deus somos nós que criamos, assim como muitos de seus desígnios.