domingo, 25 de dezembro de 2016

Através de cuidadosa pesquisa antropológica, assim como rigorosa investigação arqueológica e paleontológica, ajudada por peritos policiais, médicos legistas, historiadores, eruditos religiosos e biólogos especialistas em DNA, todos examinando registros históricos e diversas ossadas de homens da época de Jesus na região da palestina, chegaram a conclusão que Jesus teria uma aparência semelhante a imagem da esquerda através de reconstrução computadorizada. Mas, como quem conta um conto acrescenta um ponto, nas publicações atuais, Jesus aparece como o da direita. Tirando as paixões da fé um pouco de lado e analisando friamente através da razão a situação, fica difícil aceitar que num local onde só havia negros de nariz batata, queixo largo, olhos castanhos e curtos cabelos crespos, houvesse um homem branco, de olhos azuis, de longos e ondulados cabelos loiros, rosto e nariz fininhos. Não tinham inventado os aviões ainda. Assim como sua aparência foi se deformando ao longo do tempo, sua boa nova (evangelho) também. Os palestinos judeus eram oprimidos pelos invasores romanos que exigiam altos impostos para “proteger” o povo. Os judeus não tinham como lutar com armas, era como se o exército do Uruguai quisesse entrar em guerra com o dos Estados Unidos, ridículo. Jesus elaborou uma estratégia de luta, a vitória viria não através do ódio e das armas, mas sim através do amor, do pacifismo e da divisão dos bens e alimentos. Assim, todo mundo teria vida e vida em abundância. Jesus inventou o comunismo. A boa nova era essa: o amor venceria o ódio, a solidariedade venceria a mesquinhez, a colaboração e a compreensão venceriam a competição e o conflito. A justiça social seria mais importante que a liberdade individual. Que pena que ao longo da história, em vez de vender tudo, dar aos pobres e seguí-lo, orientação que Jesus deu a um jovem rico que pediu aconselhamento, a distorção foi tamanha que se entendeu algo como: construam templos grandes, com sinos em altas torres, cada um salve o seu e venha uma vez por semana, com suas melhores roupas, dar uns pilas para quem estiver pregando e saia achando que fez bem. Ser cristão, seguir o que Cristo falou é difícil e ele alertava, não exatamente com essas palavras, em Mateus 10: eu não vim para trazer a paz, vim para trazer a espada e quem fizer o que oriento vai arrumar encrenca até em casa e pouca gente vai conseguir! Jesus era um revolucionário radicalmente não violento, andava com os pobres, prostitutas e ladrões e os defendia, era contra o acúmulo de riquezas e a pena de morte, mas, ponha dois mil anos entre uma coisa e outra e negro vira branco e “amai o próximo como a ti mesmo” vira “bandido bom é bandido morto”.

domingo, 27 de novembro de 2016

Sol de Si
Meu finado tio Luiz tinha umas tiradas muito engraçadas. Fazia comparações esdrúxulas e imaginava situações caricatas. Algumas passavam ao meu repertório instantaneamente por ser um humor insólito que me agradava muito. Uma que passei a usar sempre que cabe é a do sachê de chá.  Quando ele queria deixar claro o quão atraente sexualmente alguma pessoa não era, comparava com um sachê usado: tão excitante quanto um saquinho de chá segunda mão. Eu imaginava aquele sachê de chá todo amassado, esquecido num canto do pires, com uma mancha seca do líquido que já tinha tingido denunciando o que um dia foi, os prazeres que proporcionou para as pessoas que já não estavam por perto. Meu tio era um manancial de conhecimento. Para ele era fácil fazer piadas, tinha muita leitura e era só sacudir os baús do cérebro para pipocar chistes engraçados. Ele e minha mãe, Bebel, eram de família muito erudita. Tinham um pai escritor e tradutor, ampla biblioteca em casa, na escola estudaram francês e latim. Então, tinham uma visão de mundo bem diferente da média de seu tempo de iletrados sem internet. Os dois eram de esquerda, o que praticamente é sinônimo de militante, pois a direita, por inércia, é conservadora. Se ninguém fizer nada, as coisas se perpetuam, já diziam Newton e Marx. Os de esquerda são ativos, querem que as coisa mudem, vão a luta onde for. Os de direita reativos, não querem que as coisas mudem, então só se mexem para impedir a mudança.
Bebel, uma militante ativa de esquerda, estava sempre na luta por um mundo mais justo e igualitário. Vivia em reuniões que organizavam os pobres e oprimidos. Muitas vezes viajou longe para cursos, seminários e palestras. Esteve em Cuba, Nicarágua, China, entre tantos outros países com administrações de esquerda, trocando experiências com outros lutadores, aprendendo e ensinando. Estava sempre cercada de gente com a mesma gana, muitas vezes eram mulheres estrangeiras, europeias. Eu ficava na expectativa da chegada da mulher, como seria uma francesa ou alemã? Para minha grande frustração, as gurias que apareciam lá em casa eram sempre estranhas, saquinhos de chá usados, não me entusiasmavam sexualmente. Mas todas eram admiráveis: tinham o mesmo brilho no olhar de Bebel, um élan vital impressionante, uma alegria que contagiava e uma disposição de trabalhar de graça para os outros, por amor, Como Jesus ensinou, elas amavam o próximo e não se conformavam com as injustiças, uma atitude extremamente cristã. Pagavam do próprio bolso, viajavam para outros países, para ajudar desconhecidos, como na parábola do bom samaritano. Eu que, na adolescência, estava sempre tentando obter mais bens e beleza, o desapego a essas coisa materiais me era chocante. Foi sempre uma marcante lição de vida encontrar com aquelas figuras estranhas.
Agora, com a morte de Fidel, renasce uma antiga discussão, qual seria melhor: esquerda ou direita. Para os meios de comunicação nacionais a discussão não tem nem sentido, é óbvio que Fidel era um tirano ditador. Por sorte, vivi numa casa em que algumas pessoas realmente iam para Cuba ver como são as coisas por lá e tenho outros pontos de vista. No meu entender, a mídia no Brasil há muito deixou de tentar fingir uma neutralidade e adotou um editorial totalmente conservador de direita, por isso as palavras fortes que usam contra “El Comandante”. Não vou entrar no mérito se o líder cubano era ou não um ditador. Mas vou me perguntar se sua liderança foi boa ou ruim para Cuba. Segundo a ONU, Cuba tem o melhor sistema de saúde das Américas e o segundo melhor sistema de educação do mundo. Além disso, Não há naquele pequeno país de uma ilha caribenha, com a economia basicamente agrícola e que sofre boicote há 55 anos do comércio mundial, nem uma criança ou idoso desassistido, o que prova uma forte segurança social. Recente pesquisa também revelou que Cuba é o melhor país da América Latina para ser menina, assim, o país se torna modelo para outros países em desenvolvimento em termos de igualdade e oportunidade para as mulheres. O país também é um grande exportador de médicos, onde quer que sejam necessários no mundo, Cuba os envia para tratar enfermos de qualquer raça, nacionalidade ou credo por amor ao próximo. Nesse sentido, a liderança socialista de Cuba deu muito certo. A empolgação e brilho nos olhos de Fidel, os aplausos que recebia nos discursos na ONU, procure na internet para ver, fica claro que está falando de uma esperança que une todo mundo. Para os cubanos ele é um verdadeiro sol que ilumina o país. Me recordo que, por duas vezes nas suas andanças militantes, minha mãe esteve em Cuba. Tinha até umas fotos, não sei onde foram parar, dela ao lado de Raul Castro, na época um ilustre desconhecido, capinando um terreno, preparando a terra para a plantação. Meu pai também esteve por lá. Os dois relataram que lá não tem BMW, mas também não tem favelas. Não existe a possibilidade de alguém enriquecer, o que irrita profundamente os que gostam de explorar os pobres para ter sua BMW, como a mídia nacional. Um bom filme para assistir e tirar suas dúvidas a respeito do socialismo cubano é “Sicko”, documentário do subversivo cineasta americano, Michael Moore.
Quando morei em Amsterdam, recebi a visita de uma das amigas estrangeiras “sachê usado” da Bebel. Ela me ofereceu sua casa na Alemanha para ficar uns tempos. Diante de tal oferta, resolvi me mudar para Hertzogenrath, um vilarejo perto de Aachen. Pedi as contas do meu emprego, comprei uma bicicleta de viagem, coloquei todas minhas coisas nas mochilas e parti da Holanda. Mas, mal cheguei e a guria já foi avisando: Ficaria um mês viajando e na volta eu já deveria ter desocupado o colchonete da sala. Me prendi a procurar emprego, fui a vários estabelecimentos mas era um lugar pequeno, a economia não sustentava ilegais como eu. Comecei a me deprimir sozinho naquele apartamento estranho. Mas não desisti, estive então em Colônia e Bonn, mas também não achei trabalho. A Alemanha Ocidental estava cheia de imigrantes da recém unificada antiga Alemanha Oriental, país que resistiu bem menos ao assédio do capital que Cuba, aptos legalmente para trabalhar, falantes da língua e aceitando qualquer salário. Eu não tinha como competir, apesar do meu desejo intenso de ficar mais tempo no país e aprender alemão, logo percebi que teria que sair. Durante os dias que fiquei sozinho no apartamento da sachê, triste e desempregado, me socorri da ajuda dos LPs que ela tinha do Brasil. Era uma forma de me acalmar, encher meu coração de esperança, ouvir português, me sentir seguro num país estrangeiro. Escutei muito Lulu Santos, Tim Maia e Chico Buarque. Me orgulhava de ser brasileiro ao encontrar no interior de uma casinha qualquer da Alemanha amantes da nossa cultura. Me emocionava com a letra das músicas, uma grande saudade me tornava melancólico, mas também me dava uma forte coragem par continuar a lutar pelo que eu queria. Quem me conhece sabe que nunca escuto música, nunca. Bem, quase nunca. Não sinto a menor falta. Mas quando escuto com atenção uma música boa, no escuro, sem ruídos externos, refletindo seu significado e o projetando sobre minha vida, sempre me emociono todo. Sei lá o que acontece, afrouxa minhas funções vitais, minha musculatura fica trêmula e fraca, minha garganta se aperta e choro como criança. Talvez por isso, tanta gente ouça, tanto, tantas músicas! Talvez eu me cague de medo de ouvir e perder o controle, então, inconscientemente, esqueço que existe música, nem aparelho de som eu tenho em casa. Arrumei minhas coisas de novo sobre a bicicleta e parti para Bélgica. Aprendi mais português do que alemão naquele mês na Alemanha.
Minha irmã mais velha, Verônica, depois de velha voltou a cantar num coral, coisa que fazia nos tempos de escola. Quando o grupo se apresenta somos todos convocados a comparecer, quer queiramos ou não. Então, fomos todos sábado passado assitir mais uma das apresentações do Grupo de Canto Sol de Si. Sempre encontro pessoas que não vejo há quinze, vinte anos nesses eventos. Me flagro julgando a aparência das pessoas depois de tanto tempo: Nossa, que velha e encarquilhada está a fulana, parece um saquinho de chá segunda mão. Claro, a recíproca deve ser verdadeira, elas olham para mim e vêem uma mancha seca e amassada no cantinho do pires daquilo que um dia já fui. Alguém me pergunta: E aí?!!! Não tenho nada para contar, nenhuma façanha extraordinária, só vivendo com os olhos opacos. Respondo sem jeito: tudo bem, tô aí, vivo. Depois da desconfortável espera na porta e conversinhas formais com antigos conhecidos, finalmente entramos, sentamos e começa o espetáculo. Eram 34 mulheres cantando juntas. Me surpreendi várias vezes emocionado, chorando no escuro, durante o show. Meu coração se encheu de uma alegre melancolia, me senti pleno de amor que aquelas gurias gentilmente me ofereciam. As músicas começam, geralmente de mansinho, vão crescendo, se encorpam, atingem um ápice de potência vocal e significado, um auge que espreme lágrimas, depois vão minguando até pararem, tem uma vida bem breve. Com o espetáculo, a mesma coisa: Depois de uma espera inicial e educadas trocas de sorrisos e cumprimentos, as músicas vão se sucedendo, uma a uma, o evento tem um auge, até a canja final e as palmas consagradoras. Na saída do teatro, as pessoas se cumprimentam alegres, mas se despedem num melancólico adeus e aos poucos vão saindo, em pouco tempo o saguão está vazio e triste de novo.
Me impressiono com as cantoras, todas já curtidas e marcadas pelas colisões com o mundo, saquinhos de chá usados, mas com brilho nos olhos. Transmitem a mesma esperança e alegria de um adolescente. Eufóricas ao final da apresentação. Nem todo mundo pode ser Fidel ou Chico Buarque e mobilizar milhões, marcar gerações e deixar legados ao morrer. Mas pode, da mesmíssima forma que eles, ter uma alegria, um sol em si, um brilho que emana de sua atitude, que seja cantar ou outra qualquer e ilumina com amor as vidas dos próximos. Mesmo ao final do espetáculo da vida, quando todos teus amigos estão se despedindo e saindo, ainda dá para ser um Sol de Si. A aparência das pessoas pouco importa, BMW também não adianta nada no final, mas ninguém deve ficar desassistido de carinho, cuidado e amor. Ninguém vive para sempre ou fica suculento até o fim. O que realmente interessa é se teu olho ainda brilha e tu faz a alegria dos outros por amor, porque a vida é breve. Tio Luiz, mesmo ao fim da vida, se negava a ter carro, era uma músico de olhos brilhantes, que espalhava amor para desconhecidos empunhando seu saxofone. Ainda tem muito caldinho num saquinho segunda mão, depende do jeito que tu olhas.

domingo, 20 de novembro de 2016

Nós, professores, temos a obrigação de esclarecer os alunos a respeito de sua cultura, de sua história, o porquê das coisas, dos mitos e manifestações folclóricas. Numa escola pública o fazemos de forma laica, sempre a luz da ciência e não de alguma religião ou crendice popular. Agora, no final do ano, somos massacrados pela mídia a lembrar de uma história muito conhecida:
Ele nasceu no dia 25 de dezembro de uma virgem chamada Maria. Seu nascimento foi acompanhado por uma estrela muito brilhante no leste. Naquele dia recebeu a visita de três reis que vieram adorá-lo. Aos doze anos de idade já era um prodígio ensinando as escrituras. Aos trinta foi batizado e começou seu ministério. Tinha doze discípulos que viajavam com ele e realizava milagres como curar doentes e andar sobre as águas. Era conhecido por muitos nomes, tais como: O salvador da humanidade, a verdade e a vida, luz do mundo, cordeiro de deus, o bom pastor, alfa e ômega, além de vários outros. Foi traído, crucificado, morto e sepultado, mas ressuscitou depois de três dias.
Estou falando, claro, da história de Hórus, o deus sol egípcio de 3000 A.C. Mas, essa mesma história foi contada com diferentes personagens em diferentes localidades do hemisfério norte. Deus Attis, da Grécia, 1200 A.C., tem a mesmíssima trajetória: nasceu dia 25 de dezembro, de uma virgem, estrela do oriente, reis, milagres, traído, morto na cruz, ressurreição no terceiro dia... Krishna, deus na Índia, 900 A.C.; Mithra, da Pérsia, 1200 A.C.; Odin, da Escandinávia; Thamus da Síria; o fenício deus Baal; Indra, do Tibet; Jesus, da Palestina e muitos outros messias da antiguidade repetem essa história. Sendo ocidental, você certamente está familiarizado com ela, pois o Império Romano a tornou onipresente por decreto, literalmente.
Então você se pergunta, porque todos tem a mesma história? Simples, porque é uma história astronômica/astrológica, sobre a trajetória do sol no céu. Era contada de pai para filho para se prever quando as coisas iriam acontecer. No hemisfério norte, o sol vai descendo no horizonte depois do solstício de verão, cada dia se pondo num lugar diferente, cada vez mais ao sul, apontando para constelações diferentes ao longo do ano, até apontar para o Cruzeiro do Sul no dia 22 de dezembro. Os dias são cada vez menores, mais frios e escuros, impossibilitando plantações, até o solstício de inverno, dia 22 de dezembro, quando aparentemente o sol para de descer, morre na cruz, por três dias e recomeça a subir, ressuscita, no dia 25. Havia uma grande festa nessa data, o pior do inverno já havia passado e agora o sol caminhava para o norte de novo, os dias aumentavam de tamanho, ficavam mais claros e quentes possibilitando a vida. Assim como Hórus e todos os outros messias astronômicos, Jesus é o sol. A cruz, é o Cruzeiro do Sul, constelação que o sol aponta ao se pôr no solstício de inverno. A cruz do zodíaco lembra tudo, mostra os solstícios e equinócios, divide o ano em quatro, quatro estações, e aponta para doze constelações diferentes ao pôr do sol, doze meses, doze discípulos. A estrela do oriente é Sírius, a estrela mais brilhante do céu no hemisfério norte, que se alinha com as três estrelas conhecidas aqui no Brasil como as Três Marias e lá conhecidas como os Três Reis, no dia 25 de dezembro. Os três reis seguem a estrela do oriente no dia que nasce a esperança, a luz do mundo. Mas, só se comemora a ressurreição do sol, o salvador da humanidade, aquele que perdoa todos os pecados e permite a vida, na pascoa. Assim como o natal tem toda uma simbologia astronômica/astrológica, a pascoa simboliza o recomeço, o tempo da colheita, o renascimento da vida e acontece no equinócio de primavera do hemisfério norte, quando finalmente vai se começar a usufruir a bondade do sol. A coroa de espinhos são raios de sol. E, podem ficar tranquilos, o sol vai voltar, flutuando nas nuvens, todos os dias!!
A Bíblia é cheia de referências astronômicas/astrológicas, porque astronomia e astrologia não tinham diferença nenhuma na época e era a forma de se prever o futuro num tempo de iletrados, histórias contadas verbalmente. Quando a Bíblia fala do “fim dos tempos” ou “Era”, se refere ao fim de uma era da precessão dos equinócios, movimento natural do eixo de rotação da terra. A cada 2150 anos em média, a posição do sol no céu vai ter como fundo outra constelação, formando assim as chamadas eras astrológicas. Ao fim da Era da constelação de touro (de 4300 A.C. a 2150 A.C.), Moisés se irrita com os caras adorando um bezerro de ouro, porque agora já era a Era da constelação de áries (2150 A.C. a 0). Jesus simboliza a Era da constelação de peixes (0 a 2150 D.C.), por isso seu símbolo é um peixe e ele multiplicava peixes e buscava seus discípulos entre os pescadores. A partir do ano de 2150, entraremos na era de aquário, sempre simbolizada por um homem derramando um jarro d’água. Em Lucas 22:10, o próprio personagem sol, Jesus, orienta que sigam o homem com o cântaro de água na mão e entre na sua casa, a casa da era de aquário.  
Assim que, caros colegas professores, não podemos perder de vista que a bíblia inteira é uma coleção de histórias plagiadas de outras mais antigas e não muito mais que uma alegoria para ensinar eventos astronômicos e astrológicos. Cada um tem sua crença, ou não, mas a escola tem um compromisso com o conhecimento científico e é ele que deve pautar o que vamos falar nas comemorações de final de ano. Claro, isso se a escola sem partido não vingar e voltarmos a constituição de 1824 que instituía a religião católica como a oficial do Brasil e proibia todas as outras.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Textinho descontextualizado: 
 
Logo que vim morar aqui em Floripa, em 2002, fui morar na casa do Tio Luiz. Lá era até bom, casa e comida de graça, mas a privacidade era zero. Obviamente, em um mês ele me expulsou de lá. Aluguei uma quitinete, então, lá na Lagoa. Era minúscula, só eu morava lá, mas dava para ouvir perfeitamente tudo que o vizinho falava e, claro, a recíproca era verdadeira, privacidade um. Depois de um ano consegui uma vaga numa república de estudantes do mestrado que eu cursava na época, era uma apartamento enorme com três quartos grandes. Além de ficar mais barato a privacidade aumentou, não se ouvia as coisas faladas nos quartos vizinhos, salvo, claro, gozadas mais explosivas. No começo, além de mim, morava na república um arquiteto, que tinha uma namorada com uma casa bem grande a algumas quadras dali, e uma matemática lésbica, que não sabia que era lésbica, então era assexuada e virgem. O arquiteto nunca transava lá e a assexuada virgem não fazia barulho. Eu era o único, portanto, que desejava uma privacidade maior, não dava para eu gritar de tesão e logo depois sair pelado pelo corredor até a cozinha pegar uma coca gelada na geladeira. Ali era privacidade dois.
Naquela casa, a rotatividade dos moradores era grande. Logo a assexuada saiu e entrou outra lésbica, esta assumida e praticante da sua sexualidade. Era uma chata que não trabalhava, não estudava, só tocava violão o dia inteiro se dizendo musicista profissional. Parecia a Raquel. Logo em seguida, um amigo do arquiteto veio passar uma semana, dormia na sala. Era comum, todos nós recebíamos visitas temporárias. Mas passou a semana e ele foi ficando, se apaixonou pela lésbica chata e sua “arte” profissional. Era uma situação esquisita porque, para nós, ele era gay. Mas os dois se deram bem, ele também era vagabundo e magérrimo, como ela (mulheres, bichas e lésbicas são os que gostam de corpos magros). Seu nome era Alexandre, nós o chamávamos de Alex. Ele era engraçadíssimo, alegre, teatral, imitava vozes e gestos, tinha vários personagens próprios, mas era ótimo mesmo em fazer paródias das diversas pessoas que freqüentavam a casa. O Alex inventou que seria o produtor da artista lá de casa. Ela achou o máximo ter tal empresário e logo deixou que o Alex também dormisse no seu quarto. O arquiteto e eu ficávamos imaginando o que acontecia, porque não ouvíamos nada. Chegamos a conclusão que era ela que comia ele! Mas, se chegaram a ter algum orgasmo, não foi nada explosivo. Depois de três meses, o Alex tinha conseguido agendar e “produzir” dois “shows” para a guria. Era um banquinho e um microfone duma caixa amplificada num quiosque de cachorro quente na esquina. Assim mesmo, fomos todos prestigiar o evento! O Alex irritado e nervoso, como todo bom produtor, porque nem tudo estava saindo conforme o planejado. As pessoas insistiam em passar pela esquina, na frente da grande musicista lésbica, conversando normalmente, às vezes sem nem perceber que estavam no meio de um recital de uma instrumentista virtuose. Metade do gordo cachê foi gasto com o caríssimo carreto para levar a caixa amplificada duas noites seguidas até o quiosque. Os negócios não iam exatamente bem, digamos. Passou mais uns dias e a lésbica chata arranjou uma namorada. O Alex teve que voltar a dormir na sala. A situação toda deixou o cara bastante abalado, com o orgulho ferido e a auto-estima baixa. Emagreceu ainda mais, sem dinheiro só comia quando alguém oferecia alguma coisa. Qualquer golinho de vinho, naquele corpinho magro, já ficava bêbado. Bêbado o Alex era chatíssimo, como todo bêbado. Naquela época, eu dava aula a noite e chegava em casa tarde. Um dia, resolvi cozinhar ao chegar, estava com fome. Ia fazer um rápido miojo, mas como o Alex estava por ali, abatido, resolvi fazer uma massa mais substancial. Fiz bem rápido, coloquei um salame que estava por ali, tomate e pimentão, requeijão e até queijo ralado. Servi dois pratos e ofereci ao Alex. Sentamos na frente da TV para comer. O Alex deu duas garfadas e disse que não estava bom. Percebi de cara que ele tinha bebido, normalmente ele achava ótimo qualquer cacetinho seco, ria e fazia alguma paródia engraçada com a situação de pão seco. Ficou olhando o prato no colo e disse: “tu não sabe fazer, tu deveria ter...” daí deu uma baita explicação de como eu deveria ter cozinhado a massa, escorrido, colocado os vegetais, etc. Eu me desculpei, continuei comendo o que para mim estava bom e acrescentei que numa próxima vez eu faria o que ele estava me dizendo. Ele pegou no garfo de novo e deu uma desanimada remexida na massa. Largou o garfo, suspirou e repetiu toda a baita explicação. Eu disse: tá, Alex, eu entendi, desculpe, na próxima eu acerto. Ele de novo pegou o garfo, deu mais uma garfada, mastigou desanimado e afastou o prato repetindo, de novo, toda a ladainha. E assim foi, umas quinze vezes, ele dava um discurso enorme de como eu não sabia fazer massa, sempre igual. Entre cada discursada dele eu tentava argumentar alguma coisa, sempre de uma forma diferente, primeiro tentei me desculpar, depois gozei ele, depois xinguei o cara, cheguei até a empurrar para dar uma sacudida, nada adiantou. Mal eu terminava minha manifestação ele começava o mesmo discurso: “tu não sabe fazer, tu deveria ter...” Terminei de comer, passei a ignorá-lo, mas mesmo assim ele começava o discurso de novo, pegando o prato, remexendo na massa fria, largando o prato com nojo. Sai da sala e me meti no quarto, no outro dia ele estava sóbrio e nem lembrava do acontecido, duas semanas depois foi finalmente embora.
Textículo de 2010:
Quando adolescente eu gostava dos Beatles, acho que influenciado pelo tio Luiz. Ele descrevia com muita eloqüência como, na adolescência dele, as músicas dos Beatles, com aquele ritmo empolgante e alegre, com letras debochadas e pornográficas para época, tinham sido importantes para ele subverter a ordem de sua vida e da sua época. Toda uma geração vislumbrou o sonho se tornando realidade, um mundo bonito com aquelas letras de paz e amor, foi um transe coletivo. A Mafalda, aquele personagem do argentino Quino, também gostava muito dos Beatles. Tem uma tira que ela se pergunta porque eles não eram eleitos logo chefes gerais da ONU. Eu, na época que li a Mafalda, ri da tira, mas sem entender direito a sutileza do Quino. Amanhã tem “show de calouros” na creche em que trabalho, fiquei de cantar três músicas do Elvis: It’s now or never, Love me tender e Tutti Frutti. Estou ensaiando sozinho agora à noite em casa. Fiquei ouvindo o disquinho do Elvis no computer, uma coletânea das melhores músicas dele, enquanto jogava um frecell para decorar as letras. Fiquei surpreso como eu gostei. Agora senti uma melancolia enorme de não ter ouvido mais o Elvis na vida e pensei, como a Mafalda: Como? Como? Porque meu deus? Porque não elegeram o Elvis como chefe das nações unidas quando ele ainda era vivo?

domingo, 6 de novembro de 2016

Escola sem partido
Meus pais me colocaram numa escola no centro. Era particular, cara, chique, um status e tanto! Foi um esforço grande para a família, queriam o melhor para mim. Era para eu gostar, mas não foi o que aconteceu, odiei. Para se obter o respeito do grupo no mundo masculino de uma escola particular, alguém deve ser grande e forte, rico ou ser craque no futebol. Eu tinha exatamente as qualidades opostas a essas. Ninguém me conhecia, eu era pequeno e ruim de bola, além de meio pobre. Receita perfeita para sofrer bullying. Foi o que aconteceu, agressões e humilhações diárias, apelidos jocosos, passei três anos sofrendo naquela escola. Conheci as pessoas mais cruéis, perversas, canalhas, vis, obscenas, degeneradas e repugnantes da minha vida lá. Hoje em dia, alguns daqueles colegas são juízes de direito, médicos, empresários, engenheiros e até políticos conhecidos. São a elite de Porto Alegre. Durante todo tempo que estudei lá, pedia, às vezes até implorava, para me colocarem de volta na escolinha pública perto de casa. Naquela que as crianças eram as mesmas da rua, íamos caminhando para o colégio, todos éramos do mesmo tamanho e habilidade com a bola, vivíamos uma camaradagem muito leal, correta, altruísta e educativa. Mas não, minha mãe me explicava que lá no centro eu teria uma educação melhor, teria que aprender a conviver com os opressores. A opressão é inexorável, ela nunca deixará de existir, eu tinha que me afastar e construir minha vida longe dos opressores. Foi dureza esse tempo, tinha até medo de ir para escola. A hora do recreio e a Educação Física eram momentos de terror. Eu era a caça e haviam muitos caçadores querendo se divertir. Realmente, percebo agora, minha mãe foi sábia em me obrigar a passar um tempo naquela escola de opressores, ela tinha razão, eu aprendi a me afastar da súcia. Minha vida passou a ser um diligente afastamento do que significa opressão, em todos os sentidos: político, econômico e social.
Uma das coisas que tivemos que aprender a fazer para estudar no centro foi andar de ônibus. O pai nos levava de Brasília amarela pela manhã e nos trazia de volta ao meio dia, mas sempre tinha umas atividades à tarde, fora do horário que o pai podia nos transportar. Naquele tempo, finaleira da ditadura militar, o povo era visto como gado, só servia para puxar a carroça da economia. Portanto, não precisava de luxo. O último presidente militar, João Figueredo, chegou a afirmar, sem constrangimento, que preferia o cheiro de cavalo do que o de povo. Diante de tal liderança política, os ônibus eram péssimos, velhos, escuros, poucos e apertados. Na hora do pique, havia filas quilométricas nas paradas e as pessoas iam se socando para dentro como podiam. Os cobradores apressavam os passageiros com frases icônicas: “Um passinho a frente, por favor!” Queriam dizer que lá na frente, em cima do barulhento motor do ônibus, ainda dava para se amontoar uns dois ou três. Outra frase incrível que usavam, era: “Ainda tem lugar no corredor do meio!” Essa queria dizer que deveria ter três corredores em pé! Um sobre as pessoas sentadas nos bancos do lado direito, um sobre os passageiros do lado esquerdo e o terceiro entre esses dois. Os corredores dos lados eram privilegiados porque tinham onde se agarrar na barra do teto, o brabo era aguentar a catinga de tanto sovaco exposto. Os do corredor do meio eram jogados para lá e para cá, conforme o movimento do ônibus,  por sobre os outros, fazendo que muitas vezes tu caísse de boca nalguma paleta suada. Outra frase boa, muito usada, era: “Vamos subir mais um degrau para poder fechar a porta, por favor!” Significava que o veículo já estava tão lotado que os passageiros deveriam se apertar uns contra os outros para que a porta fechasse e aqueles que ainda estavam na fila do lado de fora se resignassem a esperar o próximo horário. Quem olhasse de fora, quando a porta finalmente fechava e o motorista arrancava acelerando irritado, via uns corpos espremidos como uma rolha de champanhe, colados ao vidro da porta. Pudores frívolos como paus e mãos se esfregando nas bundas e seios tinham que ser deixados de lado ao “optar” por ser usuário de ônibus. Ao entrar na escola do centro, aos dez anos de idade, fui aprendendo a conviver também com o sensacional (sensações de tato, equilíbrio, olfato, visão, audição e até paladar) sistema de transporte coletivo brasileiro planejado por opressores. Mas, hoje de novo percebo, foi muito educativo, minha mãe tinha razão.
Havia três linhas de ônibus do centro para casa que poderíamos escolher para voltar: Juca Batista, Serraria e Ponta Grossa. Uma ocasião, seguindo dicas de uma irmã mais velha, ao sair da escola à tarde, entrei para a fila mais vazia das três linhas. Assim, eu conseguiria sentar. O Ponta Grossa tinha acabado de arrancar e a fila estava sem ninguém. Eu era o primeirão! No Serraria e no Juca as filas já viravam a esquina da Borges com a Jerônimo Coelho. Esperei. Assisti sairem cheios as duas linhas e pensei, orgulhoso, sou mais esperto, vou sentado. Esperei mais e percebi em júbilo as filas das três linhas crescendo sem parar. Mas já me aborreci vendo outros dois Jucas e Serrarias indo embora. Droga, o Ponta deve ter quebrado, situação extremamente comum naquele tempo eram as baldeações. A minha fila já virava a esquina quando cogitei que deveria ir em pé amontoado mesmo, azar, quando uma terceira dupla de Jucas e Serrarias saíram lotados. Mas, eu era o primeirão, e já estava ali esperando há 45 minutos! Seria uma vergonha e um desperdício não usufruir daquele privilégio. Finalmente o Ponta chegou, junto de outros dois das linhas concorrentes, depois de mais de uma hora de espera. Subi triunfante, passei a roleta e fui lá para frente sentar na janelinha. Mas, pena, uma senhora idosa, com dificuldades para caminhar, o motorista deixou entrar pela frente quando o ônibus lotado já ia arrancar. Ela pediu meu lugar e eu, uma criança educada, cedi e me senti o mais estúpido dos seres. Depois fiquei sabendo que o Ponta Grossa tem um por hora, enquanto as outras linhas são mais frequentes. Minha mãe tinha razão, havia muito o que aprender estudando no centro.
Depois de três anos de inferno e muita súplica, minha família autorizou que eu voltasse a estudar na escolinha pública do bairro. Terminei a oitava série lá e fui fazer o curso técnico noutra escola pública, mas agora no centro, tinha muito ônibus na minha vida de novo. Diferente da particular, essa era bacana, não tinha bullying comigo. Eu cresci, fiquei até mais alto e forte que outros colegas, nunca fiquei bom de bola, mas agora eu era um dos mais ricos, sem dúvida, da turma. Meus colegas eram muito pobres, muitos do interior, trabalhavam para ajudar a família, enquanto eu era o almofadinha, um dos raros que não ajudava com dinheiro em casa. Nessa escola me sentia muito bem, era respeitado pelos colegas. O ambiente era de eterna festa. Vivíamos unidos, as gargalhadas, tínhamos um circulo de amizade muito grande. Todo recreio saiamos caminhando da escola para uma confeitaria popular que existia ali por perto. Íamos olhando as bundas, debochando uns dos outros, fazendo planos de carreira em empresas ou empreendimentos próprios, discutindo os problemas de estágios e argumentando sobre o melhor veneno dos carros que passavam. Era uma época de muita camaradagem, franqueza, fraternidade, alegria, sonhos e esperanças. Emprestávamos trocados uns para os outros e dividíamos a mil-folhas, um que outro conseguia comprar uma coca-cola caçulinha, mas já sonhávamos com nosso primeiro emprego, com nosso primeiro carro, com nosso primeiro filme pornô, com nossa primeira namorada, com a nossa primeira transa, com nosso primeiro qualquer coisa. O tempo de ócio juntos nos era muito mais caro e precioso que o tempo em aula. Muitas vezes matávamos aulas para vagabundear pelo centro, passear e conversar. Nos sentíamos culpados e receosos de sermos flagrados por alguém conhecido, mas o risco valia a pena. Aprendíamos muito mais o que precisávamos aprender na adolescência no ócio com amigos do que em aula. Nunca me senti oprimido nessa escola, talvez porque o opressor era, de alguma forma, eu.
A experiência da escola pública bacana, com ambiente alvissareiro, se repetiu quando entrei na UFRGS. Na engenharia havia muitos bravos colegas do interior e até de outros estados que trabalhavam, além de muitos almofadinhas da capital como eu. Os de Porto Alegre eram oriundos de escolas particulares, felizmente não cruzei de novo com nenhum ex-colega pulha daquela minha antiga escola particular. Fiquei amigo de dois colegas que moravam próximos a minha casa. Os dois vinham de outras escolas particulares, ainda mais caras e com um status maior daquela que frequentei, eram muito parecidos ideologicamente mas diferentes em aparência, uma gordinha baixinha e um altão magro. Era uma hora e meia de ônibus até o Campus, então íamos conversando muito sobre as aulas de cálculo e física e fazíamos muitos planos de viagens juntos. Os dois me encantavam com sua inteligência e erudição, eram fluentes em inglês e iam bem nas disciplinas que eu me ralava, aprendi muito com eles. Agora eu já era grande e forte, minha aparência física, meus conhecimentos e o local onde eu morava contribuíam para que eu tivesse um salvo conduto entre aqueles dois personagens. Larguei a faculdade e fui viajar por dois anos, me afastei um pouco dos dois amigos. Ela largou também e foi fazer medicina, ele seguiu e se formou engenheiro civil.
Estou escrevendo esse texto, caro leitor, porque revivi algumas situações da infância e adolescência uns tempos atrás, mas agora do ponto de vista de um adulto, já orfão de mãe. Há muito tempo, há 15 anos já, me afastei de Porto Alegre, construí minha vida longe da opressão. Foi uma decisão consciente, não foi uma fuga. Mas seguidamente volto, por um motivo ou outro. Uns meses atrás, depois de um cineminha num shopping perto da casa de meu pai, procurei um lugar para jantar na praça de alimentação. Escolhi um fast food qualquer, fiz meu pedido e esperei. Nesse momento, chegou meu colega altão da engenharia reclamando de um erro no seu pedido. Nem me percebeu ali. Estava bem barbeado, cheiroso, penteado, roupas novas, passadas, figurino clássico do capitalista com fé no sistema. Refleti um pouco se fingia que não o tinha visto, recentemente ele me excluiu do Facebook por um fosso de diferenças ideológicas de magnitude abissal. O cumprimentei com certo receio, era impossível não notar o agora gordo e gigante amigo a trinta centímetros de mim. Ele me olha com uma alegre surpresa, mas logo se contém, seus olhos se tornam opacos, mas segue com os cumprimentos protocolares, tentando demonstrar uma alegria ritual em honra a nosso passado comum de colegas universitários. O mesmo faço eu. Nós dois evitamos política e nos esforçamos em manter uma conversinha de balcão. Comentamos dos filhos, que grandes e espertos estão, de como estamos gordos, dos quilos que os médicos mandaram nós dois perder. Chegam nossos lanches e nos despedimos educadamente. Ele não me convida para a mesa de sua família, nem eu me convido para sentar com eles. Escolho uma mesa distante, como com calma, mas não olho mais para o salão. Que momento triste. Faço uma rápida avaliação de minha aparência: Clássica de esquerda, questionador do sistema. Barba de 15 dias, roupas surradas, nem pente tenho, me lembro que enforquei o banho e quase nunca uso perfume. Nós dois comendo um fast food americano, o mais emblemático ícone capitalista. Ele deve ter pensado vitorioso: loser. Sem dúvida, no jogo que ele compete, eu nem no banco de reservas fico, nem entro em campo. Saí dali desacorçoado, meio engasgado, triste mesmo. Fui a uma livraria, olho tudo diletante e resolvo levar uma revista superinteressante só para ter alguma coisa para ler à noite lá no pai. Entro na fila para pagar e encontro o irmão da minha outra colega de engenharia com toda sua família. Ela também me excluiu do Facebook. A mesma cena se repetiu. Cumprimentos rituais, conversinhas amenas enquanto esperamos a fila andar, desconforto de ambos os lados. A mulher do cara me olhava como quem olha uma barata, com asco e repulsa, discretamente afastava sua prole de mim. Esse também, mesmo visual barbeado e lustroso pequeno burguês. Ele também era nosso contemporâneo de faculdade, mas um ano a frente de nós. Engenheiro, vende piscinas. Os dois terminaram a engenharia, eu larguei. Os dois casaram e tem família, eu nunca me entusiasmei com isso. Não vi, mas tenho certeza que os dois tem carros grandes, sedãs caros estacionados no subsolo, eu tenho moto mas fui de ônibus ao shopping. Na engenharia eu fracassei, assim, como na busca por uma remuneração maior. Mas, como dizia Darcy Ribeiro: “Fracassei em tudo que tentei, mas meus fracassos são minha maior vitória, odiaria estar no lugar de quem me venceu.” Tenho orgulho de não ter sucumbido a esse jogo de ganha-perde. Discordo nisso com minha falecida mãe, a opressão não é inexorável, é construída e ensinada em escolas. Me afastei e luto por uma sociedade ganha-ganha.   

Sempre que volto a Porto Alegre, evito dirigir, o trânsito é sufocante e opressor naquela cidade. Basta tentar seguir a lei, parar em faixa de pedestres ou obedecer a velocidade máxima, passas a ser agredido. Se tu não fores oprimido, serás opressor. Umas duas ou três fechadas e buzinadas e tu começas a reagir no reflexo, tu começas a ser mais agressivo, passas a competir como um animal. Portanto evito, não quero oprimir ninguém, não quero jogar esse jogo. Largo a moto na garagem do pai, me recuso a competir, saio de transporte coletivo para algum passeio que quero dar. Evito horários de pico, fico sufocado em congestionamentos. Depois daqueles dois encontros tristes na mesma noite, saí do shopping e me dirigi à parada já tarde da noite. Tenho medo de assalto em Porto Alegre, fico atento as pessoas do entorno. Histórias de violência me oprimem também lá. A diferença social dos que estão de um lado do balcão do shopping para os que estão do outro tem aumentado muito e cada um usa as armas que tem para tentar vencer. A parada é abrigada e iluminada a noite, muitos trabalhadores do shopping aguardam comigo. Não esperei nem um minuto e chegou um Ponta Grossa! Era um ônibus novo, claro, com ar condicionado, amplo, daqueles minhocões, todo mundo está sentado e sobram lugares. Lembro daqueles antigos ônibus da Trevo, empresa que faz as linhas que vão para a casa do pai. Que diferença! O motor é embaixo, muito mais silencioso, super potente, arranca rápido. A viagem até em casa é rápida e segura. Fico refletindo o que separa o Ponta Grossa do João Figueredo para o da Dilma. Obviamente foram anos de governos de esquerda, de caras com barbas por fazer e roupas surradas. A primeira ação de Olívio Dutra, primeiro prefeito eleito depois da ditadura que era realmente de esquerda, foi intervir nos transportes públicos. Depois o orçamento participativo colocou casinhas e asfalto onde antes eram vielas escuras de favelas em Porto Alegre. A melhor distribuição de renda foi responsável por um boom econômico no Brasil durante os governos Lula e Dilma a tal ponto que o país “comprou” em leilão internacional concorrido as olimpíadas e a copa. O aumento do poder aquisitivo de classes menos favorecidas fez com que muitas famílias comprasse carro, aumentando os congestionamentos. 
Através dos posts eu percebia, enquanto eram meus amigos no Facebook, que meus dois ex-colegas de engenharia eram radicalmente contra os governos de esquerda. Vai ver é porque congestiona as ruas para seus sedãs e põe nas filas do shopping, do mesmo lado do balcão, pessoas como eu, desprovidas da fé no sistema depois de tanto bullying e fracassos. Não existe escola sem partido, elas todas vão te ensinar uma ideologia. A tentativa vil desses senhores que falam bem dessa proposta é a de que aceitemos a ideologia deles, aquela que ensina a manter o status quo atual, o status que os esportes ensinam: todo mundo tem que competir, mas só alguns devem subir no pódio, lugar que tem degraus hierárquicos e não cabe todo mundo. Não foi a toa que Barão de Coubertin resgatou os esportes olímpicos logo após Marx e Engels publicarem o Manifesto. Os esportes vêm carregados de ideologia aristocrática, mas com discurso de abnegado altruísmo. Não sejamos tolos, democracia grega era aristocrática. Só cidadãos livres do sexo masculíno podiam votar. Veja que nas últimas eleições, muitos candidatos de direita se elegeram dizendo que não são políticos. Mais um pouco eles vão sugerir um congresso sem partido... 

domingo, 30 de outubro de 2016

Teiú
Resolvo trabalhar um pouco no pátio no lugar de sestear. Luto contra um toco, cheio de raízes, no caminho de um futuro muro. O trabalho é pesado: enxada, machado, picareta, pá. Cavo a terra úmida, corto raízes, tiro pedras. Depois de uma boa hora de trabalho, logro êxito na tarefa. Arrasto o toco para longe e, ainda arfando, retorno para contemplar a obra. Ninguém que olha aquilo vê obra nenhuma ainda, mas é assim no começo. Só um monte de terra mexida e já tanto esforço. tanto trabalho só será reconhecido como tal depois de terminado. Estou todo sujo, barro e lascas de madeira colados no corpo todo. Minha respiração volta ao normal enquanto percebo o entorno. O dia é belíssimo, temperatura amena, a cor da tarde de primavera valoriza as flores roxas do capim. Escuto um ruído de folhas secas sendo amassadas, mas não são passos. Me vem na cabeça um carro com motor desligado vagarosamente cedendo ao freio de mão. Mas isso não é possível, ali é muito íngreme, não tem carro que consiga chegar aqui nessa parte do terreno. A uns dez metros tem um enorme lagarto que diligente sobe o morro. Gordo e forte, caminha lomba acima sem titubear, é óbvio que não me percebeu ali, apesar de eu estar em pé exatamente na sua rota. Não está correndo, mas não é lerdo, Penso em pegar a câmera para registrar a cena, mas se me mover ele pode se assustar e prefiro saborear o momento. Fico paradinho me deleitando com a cena. O bicho parece um trator silencioso, vem amassando tudo pelo caminho, Acho que é um teiú, mas parece grande demais para um. De quando em quando, lança a língua para fora e dá uma chacoalhada com ela no ar para cheirar seu caminho. Ele chega onde estava o toco, a um metro de mim. Examina com calma as modificações que fiz no terreno e então me olha. Lança sua língua bifurcada na minha direção e ficamos nos admirando por um instante. De ponta a ponta deve ter um metro, suas pernas são musculosas, mas é pançudo como eu, tem um couro malhado e lustroso e é lindo. Se vira e segue seu caminho sem nenhuma pressa. Eu não pareço nenhuma ameaça, devo estar com o mesmo cheiro do chão e da madeira, que bom. O teiú se mete na macega e me deixa sozinho com meus pensamentos. Estou exausto, a tarefa ainda não acabou, mas olho de novo ao redor, me maravilho com o local que escolhi para morar. Acho que a mata me olha de volta e, como o teiú, me reconhece como igual e me deixa ficar. Chega por hoje. Espírito pleno, entro em casa e me dispo todo. Vou para o banho deixando tudo aberto, portas e janelas. A cor da casa está tão aconchegante com o sol do meio da tarde se espalhando pelos cantinhos. Descubro que se não fechar a porta do banheiro posso seguir olhando o mato dos fundos da casa. Tudo é tão lindo. Desligo o chuveiro elétrico e me molho com a água fria do rio que é só desviada para minha ducha por um engenhoso sistema de mangueiras e tanques. Deito na cama ainda molhado e deixo a brisa da rua me secar. É morninha, me sinto super bem, aconchegado e me deixo finalmente sestear. O simples repouso, depois de um trabalho duro, traz muita felicidade e é muito bom quando se tem a consciência de um momento feliz quando ele está ocorrendo!

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Eu corri dez maratonas, Na primeira estava super treinado, mas, ignorante, não fiz nenhuma preparação alimentar ou de hidratação, parei no km 25 esgotado. Nas oito seguintes terminei, algumas muito bem e no outro dia já estava pronto e apto para correr outra. Meu melhor tempo foi de 3 horas e 31 minutos para correr todos os 42km e 195m. Apliquei todos os conhecimentos da faculdade em treinamento, hidratação, alimentação, calçado, preparação psicológica, etc... Na décima eu parei de novo no km 25, mas desta vez por outro motivo. Eu me perguntei: porque? Correr maratonas é como ir no Beto Carreiro e descer a Big Tower. Quando se começa a cair aqueles 100m de altura, tu tens a certeza da morte. Quando percebe que sobreviveu aquele perigo extremo, um grande prazer te toma e até provoca gargalhada. Muita gente entra na fila de novo para sentir aquele "barato" provocado pelas drogas endógenas, aquelas produzidas pelo próprio cérebro. Ao terminar uma maratona, todo teu corpo grita de dor exigindo que aquele sofrimento acabe. O cérebro inunda o corpo com analgésicos naturais. Finalmente tu obedeces às ordens do corpo e ele te premia com um manancial de prazer difícil de descrever para quem nunca experimentou. Rir e chorar ao mesmo tempo, tremer de prazer, são sensações que vivi em chegadas de maratonas.

domingo, 4 de setembro de 2016

Ontem fui a Porto Alegre de novo. Aniversário da irmã caçula. Me arrependo toda vez que lá vou, que lugar medonho. Depois de um trânsito ultra mega estressante, com trocentos carros e motos disputando ferozmente espaço nas ruas, fui ao supermercado Zaffari comprar pão, estava movimentado. Corredores e mais corredores abarrotados com toda sorte de produto, desde peras até celulares de última geração. Tudo que tu sonhas está lá, assim como aquelas coisas que tu nem imaginas que exista, é um paraíso do consumo, um jardim do éden. O chão é lisinho, nem é preciso olhar, não chove dentro nem venta, a luz vem de todos os lados, não tem sombras. A coisa toda é feita para o teu foco ficar nas coisas expostas nas prateleiras, tu não vais deixar de enxergar nada. E gente, muita gente, todos desconhecidos, ninguém te olha nos olhos. O cara fica até tonto, entra pensando em comprar pão e sai com dois jogos de lençóis de malha. Tinha umas 80 caixas abertas, mas todas com fila. Escolhi a menos pior e esperei. Na minha frente uma família feliz, incluídos levando alimentos ultraprocessados. Na hora deles passarem as compras no crivo da funcionária, a mãe lembra que esqueceu os limões e recomenda a filha adolescente que busque rápido e escolha os melhores. Num tapa a guria volta com as lindas bolotas verdes e brilhantes num saquinho transparente. Percebi que era a única fruta que levavam, talvez uma caipirinha. Na minha vez a operadora pergunta: é cheque ou cartão? Me surpreendo, não estava pensando em usar nenhum dos dois. Não se usa mais dinheiro aqui? Ufa, ela aceitou umas notas velhas e amassadas que eu tinha como pagamento das minhas comprinhas. Saí dali e fui visitar uma amiga no décimo oitavo andar de um prédio vizinho. No caminho, atordoado, fui refletindo. Onde será que as pessoas que moram no edifício plantam seus limões? Evidentemente elas não plantam nada! São dependentes de um sistema de entregas que leva tudo até aquele entreposto chamado supermercado. Os alimentos vem de caminhão, às vezes passando por várias fábricas, até que fique na forma desejada. Para serem produzidos e ficar redondos e lustrosos como aqueles limões, muito veneno tem que ser aplicado às lavouras para que nem um inseto deforme aquela ótima aparência. Lembrei do papo que tive com vizinhos apicultores da Barra. Um me contou de um tio que tinha 200 caixas de abelha e ano passado não tirou sequer um quilo de mel. Outra lamentou que o marido, que sempre tirava 250 kg, também amargou prejuízo, nem para o consumo da família conseguiu. As caixas estavam vazias ou com todas as abelhas mortas. Perguntei onde estavam colocados os enxames e fiquei chocado ao saber que é um dos locais mais preservados do estado, no Garapiá, no meio de uma reserva de mata atlântica. O desaparecimento das abelhas é um fenômeno mundial e apavorante. O livro da Rachel Carson, Primavera Silenciosa, já em 1962, previu o atual momento da humanidade, quando os insetos não mais polinizariam as plantas, os pássaros morreriam e também logo toda vegetação. O esforço humano de se desenvolver, ou melhor dito, não se envolver com a natureza, foi tão eficaz que não só afastou os insetos e limoeiros para longe do décimo oitavo andar das cidades, mas também está conseguindo extingui-los da face da terra. Na casa de meu pai, filtros e garráfas d’água na geladeira. Ele reclama da qualidade da água da torneira em Porto Alegre, fedida e com gosto ruim. Lembrei de outro livro: O Jardim de Granito, Anne Whiston Spirn. A autora analisa as cidades, como elas se desenvolvem, os erros que cometem ao se desenvolverem e como deveriam se envolver com a natureza para promover uma vida melhor para os cidadãos. Ao final do livro ela formula regras para o colapso das cidades, lembrando dos inúmeros casos de cidades que já colapsaram ao longo da experiência humana na Terra. Só recordo dos últimos dois estágios antes da morte de uma cidade, por insustentabilidade. O penúltimo é que a água das torneiras está contaminada, obrigando o consumo de água envasada. E o último ela chama de “o escândalo das águas”, quando mesmo a água engarrafada está imprópria para o consumo. Curioso, que mesmo com a experiência das cidades incas, maias, astecas, egípcias, roma e tantas outras, impérios inteiros, civilizações super complexas que desapareceram por insustentabilidade, seguimos tomando decisões erradas. Aqui no Brasil, não por coincidência, acaba de tomar o poder as forças conservadoras do agronegócio, da concentração de renda, do fundamentalismo religioso, da bancada da bala, que resolve tudo aos golpes e não no diálogo. Um grande desânimo me invade, é humano, será que não tem como ser diferente? Não sei, mas, evidentemente, o colapso está em curso, é inexorável e nem fugir para as colinas adiantará, pois nem lá haverá limões para chupar.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Se você passa na rua por um homem batendo numa mulher e se omite, não fala nada, está apoiado a injusta opressão. Somos professores, temos o dever de ensinar. O congresso nacional foi eleito democraticamente, por mais que me doa dizer isso, nós elegemos aqueles corruptos golpistas. Eu, como professor, não posso me omitir, tenho que falar, esclarecer. Não de forma maniqueísta, identificando mocinhos e bandidos, mas de forma a soprar a bruma de informações ilusórias em que os alunos estão imersos. Eles já são eleitores ou serão brevemente. Se nos omitirmos eles terão a formação que a mídia golpista quer que eles tenham. A direita perdeu quatro eleições seguidas, mesmo com a força da mídia de que é dona. Acabou a disposição deles de respeitar as urnas, democracia é boa até que seja a "nosso" serviço. Senhor professor, com serenidade, com coragem, com conhecimento, com argumentos, não se cale. A "escola sem partido" tem a intenção de sepultar opiniões, criar um clima de perseguição a quem é "antipatriótico". A repressão já começou e vai piorar. Temer, no seu primeiro discurso como presidente não eleito já deixou claro: "Não tolerarei ser chamado de golpista". Eu me posicionei hoje diante dos 9°, 8° e 7° anos, amanhã pretendo fazê-lo com os sextos. Os alunos se surpreendem: "Professor, isso é aula de Educação Física ou o que?" A Educação Física também tem que ser cidadã, inclusiva, democrática, não pode ser alienada da sociedade em que vive. Muitos colegas de trabalho também não percebem o que está acontecendo. Converse, não se omita, ponha na mesa sua opinião, saia do armário. O atual congresso foi eleito depois de 30 anos de acomodação democrática, uma geração que não sofreu privações de liberdade de opinião, esquecemos. Respeite a opinião dos que comemoraram o impeachment de Dilma, mas deixe claro seu posicionamento, defenda a mulher que apanha: existem rochedos que não são levados pelas enchentes do rio, resistem. Coragem, companheiros de trabalho, pois a luta continua.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Choveu o final de semana inteiro, não deu para trabalhar no pátio. O Vanderlei até apareceu, mas só para prosear. Ficamos no redário, tomando coca e café, comendo bolachas, fofocando e rindo de besteiras. Comentei com ele a foto que consegui do tucano. Há quatro anos que tentava, já tinha tirado outras, mas de tão distante nem se distingue as folhas do bicho, não tenho zoom poderoso. Ele me contou o quão próximo já esteve de alguns, tem frutíferas encostadas nas janelas de casa. “Nessa época a carne é mais macia, porque ele só come frutas...” Daí riu olhando minha cara de espanto... Nunca sei se é verdade ou mentira suas piadas. O assunto passou a ser pássaros. Na nossa frente havia um desfile de bichos voando da ameixeira para a goiabeira e dali para a aroeira e sua pimentinha rosa. A tarde chuvosa, bem fria, uma garoa batendo constante, talvez fosse a ideal para buscar alimento. O trânsito estava movimentado aqui na frente da casinha! Para mim, que sou da cidade, todos tem um único nome: passarinho. Mas o Vander sabia os nomes, os hábitos e o canto, me debochava: é que eu sou um verdadeiro ornitólogo! E ia me mostrando. Ó, aquele ali é um trincaferro, ele tem o canto assim... e assoviava. Aquele ali com o peito vermelho, meio gordinho, é um surucuá. Aquele com um rabão é o alma de gato, tem esse nome por se mover muito silenciosamente. E assim ia a tarde. Uma saíra verde passou e contei, orgulhoso, da vez que uma dessas deu de cara na minha vidraça e pude analisá-la de perto. Vimos outras saíras, verdes, sete cores, militares, diz que tem trocentas espécies de saíra. Vimos arapaçus, cambacicas, corruíras, coleirinhos, beija-flores grande preto e pequeno verde, chopins preto brilhante, bem-te-vis, bem-te-vis rajados. Um que outro ele me dizia: esse eu não sei o nome, mas tem bastante. Lembrei da minha infância, em Porto Alegre só tinha pardal, sabiá, joão de barro e bem-te-vi, um que outro beija flor. O Vanderlei não estava muito impressionado, mas eu sim, feliz de morar agora num lugar tão rico. Me contou então de um bicho raro que havia avistado uma única vez, um gavião tesoura. Fiquei com aquele nome na cabeça, procurei na internet para ver sua aparência. Agora vou ficar cuidando, ainda quero ver um gavião tesoura!

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Meia fujona
No inverno, costumo dormir de meias. O curioso é que sempre acordo com um dos pés semi nu, a meia fica quase caindo. Quando percebi o fenômeno, achei que fosse o acaso. Mas não, todos os dias acontece. Engraçado como algumas coisas o cara só percebe depois de velho, ou, ainda não sei, só passam a ocorrer numa certa idade. O fato é que lá pelos trinta que comecei a me incomodar com a dúvida existencial do striptease de pé. Morava numa república de estudantes em Florianópolis, então imaginei o óbvio: meus colegas de apartamento vinham à noite para me pregar uma peça. Questionados, negaram veementemente, claro, com uma cara séria. Mas eu tinha certeza, eles riam muito assim que eu saia de casa. Porém, quando mudei para morar sozinho, essa hipótese foi rejeitada, pois um dos calcanhares continuava a acordar pelado. Será que tenho um dos pés calorento que habilidosamente se auto despe de madrugada? Ou o outro que é sacana e tira a meia do irmão? Como tenho formação científica, comecei a observar meticulosamente, formular hipóteses e até fazer alguns experimentos para descobrir as causas da bizarra e frequente ocorrência. Descartei as opções sobrenaturais. Não acho que seja um gnomo brincalhão que quer ver minha cara de dúvida ao acordar, nem meu anjo da guarda que coça minha canela. Me dei conta que só o pé esquerdo fica sem meia... Arrá!!! O movimento de rotação da terra e sua força de precessão vai arrancando a meia esquerda!!! Não, seria mais lento, como o afastamento dos continentes. Para a meia passar o calcanhar levaria algumas centenas de milênios. Hipótese descartada. Tem que ser uma coisa mais local, na cama. Eletricidade estática gerada pela fricção dos pés nas cobertas? Tá, mas e o outro pé? Também não. Então deve ser porque eu rolo na cama sempre para a direita e a meia vai saindo? Tentei umas três roladas e a meia fica firmona. Dez roladas, vinte, mas nada. Será que eu tenho movimentos involuntários frenéticos na perna esquerda? As companheiras que já dormiram comigo denunciariam, mas ninguém nunca reclamou de uma perna louca ou um dançarino de rock noturno. Mas recebi sugestões bem humoradas de uma namorada. Uma hipótese da sociologia, os pés teriam inclinações políticas: o esquerdo é revolucionário, naturista, o direito conservador, quer burca, claro! Outra hipótese da biologia: Um pé tem descendência indígena, não existe pecado ao sul do equador, o outro carrega os genes europeus e vem de cachecol. Os estudos continuam, mas a dúvida permanece. Hoje acordei de novo com o pé esquerdo quase sem meia e tive um insight: ele não tem pelos e a meia desliza num pé escorregadio! Diligente e em nome da ciência sentei rápido na cama, tirei as meias dos pés, até acendi a luz e comparei. Não, que desapontamento, os mesmos pelinhos que tem num, tem no outro. Mistério! Vou persistir na pesquisa. Não é porque ignoro as causas de um fenômeno natural que vou abdicar da razão. Se algum cientista quiser colaborar comigo, fique a vontade de contribuir.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Minha irmã do meio, Betânia, nasceu no último dia do ano. Quando aconteceu, muita gente aconselhou meus pais a registrá-la somente no outro dia, assim ela seria um ano mais nova. Ela é de meia sete e eu sou de somente um ano depois, comecinho de meia nove (ano de piadinhas maliciosas). Mas, nas datas de nascimento, parece que temos uma diferença maior. Somos da década de sessenta, de uma época de grandes transformações sociais. Sou da finaleira da década, mas me orgulho de ser daí e digo que sou de “meados dos anos sessenta”. Tudo bem, nasci no meio da fuzarca, ali é quando tudo estava acontecendo. Maio de 68 em Paris! Perdi por pouco! Eu diria que foi a pílula anticoncepcional o gatilho das revoluções. As mulheres passaram a poder fazer sexo casual como os homens, com vários parceiros, sem preocupações com uma possível gravidez. Mas há quem diga que foi a luta contra as guerras da Coréia e do Vietnam. O fato é que uma mudança brusca no modo de vida, nas relações sociais no mundo ocidental, ocorreu.
Alguém postou no facebook que Mercedes Sosa faria 77 anos hoje. Procurei “Gracias a La Vida” no Youtube e escutei. Me emocionei com a música e procurei outras que lembrei daquela época. Nossa, devia ser muito bacana ser adolescente ou adulto jovem nessa época! Os velhos deviam ficar apavorados enquanto nós crianças passivamente só assistíamos e aquilo para mim era o normal, a única vida que conhecia. Não só mudanças sociais ocorreram, mas tinha coisas muito boas surgindo na década de sessenta, além de eu, claro. No campo musical também foi um momento de virada. No mundo, Beatles, Rolling Stones, Simon and Garfunkel, Joan Baez, Bob Dilan, Janis Joplin. Aqui no Brasil, Caetano Veloso e Gilberto Gil inovavam com a Tropicália, Raul Seixas e Rita Lee arrebentando no rock. No Rio Grande do Sul os Almôndegas nos levantavam a autoestima. Imagina que loucura que era, cara!!! Cada letra legal, cada melodia inovadora, a esperança fantástica de um mundo mais justo. O Woodstock, as repúblicas dos estudantes, as comunidades hippies, a Mafalda, o Henfil, o ser humano na lua e o êxito socialista em alguns países. Nos anos setenta the dream was over. Eu nasci junto do AI-5. E minha infância e adolescência foi num momento muito duro do país, sombrio, de muita pobreza e desesperança, um momento da vitória das forças conservadoras de direita.
Betânia é um lugar, um vilarejo da antiga Judéia, um daqueles que Jesus perambulava com seus discípulos. Não tenho a menor idéia porque minha mãe escolheu o nome da criança homenageando um lugar. Vai ver era alguma passagem bíblica significativa para ela. Enquanto era vivo, os seguidores/aprendizes de Jesus eram chamados “discípulos”, mas depois de morto e ressucitado,  segundo a crença cristã, os discípulos viraram “apóstolos” ou enviados. Havia dois Tiagos entre os discípulos/apóstolos: Tiago, filho de Zebedeu e Tiago, Filho de Alfeu. Tenho certeza que foi por isso que minha mãe escolheu meu nome, era o nome mais comum entre os apóstolos! Só não me chamo Jesus mesmo porque um dos mandamentos da religião católica que ela seguia avisa para não dizer o nome de dels em vão. Acho que Bebel ficou com medo de uma hora ou outra escapar e gritar: Jesus, seu demônio!!!

Eu gosto de meu Tiago. Hoje em dia ninguém nem sabe que é da Bíblia, muito menos que tinha dois apóstolos com esse nome, tanto que a maioria dos Thiagos agora, tem um “H” socado no meio. O bom católico nem lê, porque se fosse ler, hoje em dia, com o conhecimento que temos, perceberia rapidamente as inúmeras contradições e mazelas do livro sagrado. Aqui na Barra me disseram que quem lê de Gênesis ao Apocalipse enlouquece... Claro, percebe a farsa. A numerologia diz que o H dá um equilíbrio a pessoa. Nasci no fim de uma era, durante a revolução cultural. Meus pais ainda escolheram nomes na Bíblia, sem “H”, tiveram vários filhos até surgir a pílula, era como se fazia na época. Minha vida teve início na turbulência da tormenta cultural onde os Chicos Buarques eram maravilhosamente poéticos e caçados exatamente por isso. Mas a geração do meu filho vive uma bonanza cultural e econômica. Temos somente um ou dois filhos. O socialismo sucumbiu a pressão do capital. A Mercedes Sosa já morreu. O Simon e o Garfunkel, se vivos, já são velhinhos. E as Bethânias e Thiagos que nascem tem um H socado no meio do nome e nem sabe mais o que é catolicismo... Bueno, nem tudo está perdido!

domingo, 22 de maio de 2016

Tem somente dois Tiagos aqui na Barra do Ouro. Eu e o Padre Tiago. Olhei o facebook dele e, adivinha, na foto de perfil ele faz o gesto de paz e amor, o mesmo que eu sempre cumprimento todo mundo. A situação é curiosa, porque somos os dois de fora, os dois pela paz e amor, eu assumidamente ateu e o Padre... bem, não sei, só o conheço de dar oi, mas parece que não é ateu. A pequena comunidade é muito religiosa, católicos em sua maioria, alguns até são fundamentalistas, eu diria. O catolicismo é cristão, segue as palavras de Jesus: amaivos uns aos outros e tal. Apesar disso eu sei que não sou uma pessoa muito bem vista ou mesmo bem-vindo por alguns. Imagino que aos olhos de alguns barrenses, sou quase um demônio que veio para trazer o mal. Algumas locais me adicionaram no face e logo me bloquearam, com medo de contaminação. Hoje fiquei sabendo uma coisa incrível que me chocou. Falam mal do Padre Tiago! Ele não está a altura da paróquia! Claro, compreendo, uma vila em que os cidadãos tem tanta erudição, tanto estudo, tão viajados pelo mundo, assíduos frequentadores de livrarias, bibliotecas, universidades grandes, cinemas e teatros, não é qualquer padrinho de 25 anos que vai agradar. Deve ser o gesto de paz e amor que desagradou, é laico demais para um padre! Lembrei da caverna de Platão. O sujeito que saiu da caverna, quando voltou, foi achincalhado pelos que lá ficaram. Pô... até o padre?!!!

sábado, 21 de maio de 2016

Livre arbítrio 
Imagine a cena: Está frio, é inverno. Tu acordas de madrugada com vontade de fazer xixi. A estufinha está desligada há horas. Embaixo das cobertas está quentinho, mas tu sabes que se levantar da cama vai tremer com a fuga de calor. Tu, num primeiro momento, negas a vontade e lutas um pouco para continuar a dormir fingindo nem sentir. A memória de algumas vezes que tu foste obrigado a levantar para não ficar todo mijado te estimula a tentar enganar o corpo. É uma tarefa desagradável caminhar só de pijama até o banheiro, bêbado de sono. Na volta para cama o edredon vai ter esfriado, vai custar a esquentar de novo. Aquele sonho estava bom, mas sobre o que era mesmo? Que horas será que são? Se falta pouco para tocar o despertador não vale a pena levantar. O volume que pressiona a bexiga te incomoda e não deixa relaxar de novo. Em alguns minutos, fica óbvio que terás que encarar os fatos, dá uma raiva de ter ficado adulto. As crianças e adolescentes dormem doze horas sem levantar, bexiga elástica. Porque tu não investisse numa calefação tipo aquelas dos europeus? Tu passas a tentar barganhar com o mundo, ficas imaginando alternativas. Talvez fazer na cama mesmo, azar. Uma irritante lembrança da última vez que tu tentaste isso, aos dez anos de idade, a cacáca que foi, te desvia a atenção. Esperto, abdicas dessa opção e passas a ponderar sair da cama enrolado num cobertor. Essa é outra ideia descartada, certo que vais sair derrubando tudo pelo caminho e ainda vais ficar urinado na hora de tirar o pinto para fora. Não, não tem saída, uma depressão te invade, tu vais ter que fazer o que é certo, por mais infeliz que seja. O último estágio é o da aceitação. Resignado, tu vais finalmente ao banheiro, o mais rápido que podes, mas cambaleante, aborrecido, tiritando. Fazes o que tem para ser feito e voltas para o leito, entras naquele útero quentinho, te acomodas o melhor que podes de novo, ajeitas todas as dobrinhas das roupas de cama nas curvas do corpo para que nenhum ar frio fique soprando desconforto no cangote. Quando tu estás já entrando em R.E.M., toca o despertador. Argh!!!
Imaginemos agora outra cena, uma absurda. Vamos pensar o que ocorreria se tu te recusasse a atender aquela demanda do corpo. Afinal, tu és crente no livre arbítrio e não queres sair da cama. Decides pelo impossível: não ir até o banheiro aliviar-se e, ao mesmo tempo, não molhar a cama. A vontade de urinar começa a ficar maior e uma dorzinha aparece no baixo ventre, mas, fiel a tua crença tola que se pode decidir com liberdade, tu te iludes que podes seguir dormindo. É inútil, em pouco tempo o corpo já ameaça te desobedecer e, num momento de distração, umas gotinhas escapam. Agora tu já estás sofrendo, nenhum sono mais é possível, tu estás plenamente desperto e até começas a suar diante do esforço. Todo o prazer que tinhas de estar deitado no quentinho não existe mais. Na tua mente só aparecem pensamentos em luta: a opção óbvia de liberar os esfíncters e outra teimosa que quer provar que a mente domina completamente os apetites do corpo. Todos sabemos o resultado disso. O corpo vai por a mente de joelhos e tua fé no livre arbítrio vai ser humilhada por um argumento inegável. Tu estás todo molhado de xixi e agora vais ficar com as duas opções que querias evitar, levantar no frio e não mais dormir, acrescidas de outras muito constrangedoras: Tomar banho, lavar as roupas de cama e colocar o colchão ao sol para secar daquela patética e fétida tentativa.
O livre arbítrio é uma crença de base religiosa tão tola como tantas outras que já foram superadas. A Terra é o centro do universo, o Ser Humano é o único que raciocina, as estrelas estão presas no éter. Apesar de estúpida diante das evidências, resiste ao tempo. Todas as religiões colocam sua fé nessa quimera e todos os sistemas jurídicos são baseados nela, mesmo os laicos. Nossas leis foram escritas confiando nessa premissa: que todos os seres humanos tem esse dom, diferente dos animais que só agem por instinto, que podem decidir livremente quais atitudes vão tomar. Esse é o discurso. A convicção é unânime e dogmática. Ai daquele que levante sua voz contra o livre arbítrio. Esse sim, ficará preso numa viscosa substância etérea e será ignorado pois, evidentemente, se encontra mergulhado num oceano de blasfêmia.
Mas, tu leitor, que já pisou nas margens desse oceano, pois obviamente ainda me acompanhas nesse texto, raciocine comigo. Vamos imaginar outra cena. Tu estás fazendo vestibular, concentra-te numa questão de trigonometria mas, sem o menor cabimento, licença ou autorização, uma voz silenciosa e interna te pergunta se realmente fechaste a porta ao sair de casa ou algo assim. Tu respondes aquela vozinha, que é a tua mesmo, rapidamente para não atrapalhar na elucidação do problema matemático. Caminhas um pouco na prova e lá vens tu de novo, te atrapalhando com suposições estapafúrdias. Será que o Valtinho está pegando a Léa? Tu imaginas a Léa e o Valtinho na cama, vê toda a cena num segundo. Uma segunda voz entra na cena, é tua também! Vamos voltar ao triângulo-retângulo, por favor? A hipotenusa se descobre... Mas que tá pegando, tá! Durante toda a prova tu vais te ouvindo em trocentas vozes, todas puxando algum assunto diferente. Tu levantas a cabeça, olha o fiscal, toma uma águinha tentando te livrar daqueles fantasmas, voltas aqueles malditos catetos, mas a polifonia está ali, insistente. Todos nós temos esses diálogos internos, despertos e sonhando. Não temos a menor possibilidade de evitá-los, não temos o menor controle sobre eles. Os pensamentos vão se seguindo entre a diagonal do cubo e o volume da esfera. Vem de tudo: o preço da lata de atum, uma piada politicamente incorreta, a bunda da vizinha, o orgulho da tua mãe se tu passares nessa prova, o Raul Seixas... Pronto, essa questão tá morta, agora... Os pensamentos são totalmente aleatórios. Mesmo com todas essas distrações a maioria das pessoas consegue ao fim terminar a prova da melhor maneira que sabe. Fomos criados nessa comunidade, estamos acostumados a trabalhar ouvindo todas aquelas vozes internas. Aquele manancial de pensamentos, imagens, vozes e diálogos que tu não escolhes, é tu mesmo! Claro que se tu tivesses algum livre arbítrio escolherias ficar em silêncio interior e focar numa única voz, aquela que lê e resolve os problemas. Mas livre arbítrio não existe, não podemos ter o que não existe. Se não temos livre arbítrio, não podemos escolher nada? Como escolhemos então?
A crença no livre arbítrio, vou chamar de “LA” para facilitar, exige que se acredite que o corpo é separado de alguma forma da mente. Corpo e mente não seriam a mesma coisa. Assim, a mente seria uma espécie de chefe e o corpo um funcionário não muito obediente. Essa idéia de separação é tão forte que algumas religiões afirmam que a mente seguirá livre depois da morte do corpo. Seria a alma. A personalidade da criatura, com toda sua memória e seus afetos, seguiria para uma outra vida, essa eterna, sem o corpo, doloroso, faminto, cansado, desejante, mortal e finito para atrapalhar. E mais: a alma de alguém cairia direitinho junto daquelas outras almas que ama para se curtirem para sempre. Por mais boba que possa soar, essa história rege o mundo desde, quem sabe, o primeiro ser humano! Acreditar nessa tolice é extremamente reconfortante. O medo da finitude e a consciência da inevitabilidade da morte, produzem esse tipo de fé. Uma fé dogmática, pois simplesmente questioná-la já seria muito doloroso. Acreditar que comer melancia com leite ou tomar banho depois do almoço matam também são crenças bastante conhecidas e dogmáticas. As pessoas aprendem quando crianças coisas assim e não questionam nada, só as vivem para passar para seus filhos. Tais fés, muitas vezes, realmente ajudam a viver. Tiram muito da angústia da insegurança e fragilidade da vida. Criamos esses dogmas imaginando que estamos fazendo o melhor para sobreviver... para sempre! Mas não misture uva com manga!!! Empedra tudo no estômago e é mortal!
Os crentes no LA tem a reconfortante ilusão que estão sob controle da vida, assim como os religiosos crêem até que podem agir de formas a controlar o além da vida! Mas, que pena: Somos iguais a qualquer outro ser vivo, somos mesmo animais comuns e seguimos os instintos em todas as decisões. Comemos, dormimos, defecamos, cruzamos, parimos e amamentamos como qualquer mamífero. Esqueça, a Terra não é o centro do universo. Não somos diferentes ou especiais em nada, não controlamos nada! Não temos LA nenhum, assim como não o tem qualquer camelo.
O corpo e a mente são a mesma coisa. Podemos inclusive criar um nome diferente, vou chamar de corpente. Para perceber claramente que o corpo e a mente são um único corpente, dê uma boa martelada no teu dedo indicador. Num instante, corpo latejante e mente dolorida vão estar consciente e inegavelmente unidos. Tente isolar tua mente agora e responder aquela questão da área do cone. Rapidamente perceberás que teu LA para resolver o problema não está mais AQUI, está LÁ, só na fé.
Estás incrédulo! Não sabes como tomamos decisões se não temos LÁ. Bueno, é simples e bem menos impressionante que uma alma eterna, isolada do corpo, que pode livremente escolher agir bem ou mal. Tomamos decisões examinando, através da memória, toda nossa vida regressa para avaliar as vezes que foi bom ou ruim para a sobrevivência as decisões tomadas anteriormente. Voltando ao exemplo que iniciou esse texto: temos inúmeras experiências no início da vida de fazer xixi na cama. Lá pelas tantas experimentamos levantar para fazer no banheiro. Diante da comparação de custos e benefícios, o cérebro avalia, a partir de um dado momento, que é melhor levantar para não se mijar todo. Assim também aprendemos a caminhar, a andar de bicicleta, a escolher relacionamentos, a obedecer ou não os pais ou o chefe. Diante da pergunta: Queres um cafézinho? Em frações de segundo o cérebro resgata da memória todas as vezes que tu tomaste cafézinho. Algumas vezes o dia estava frio e foi bom um café quente, outras estava calor e a experiência foi ruim. A primeira xicrinha é quase sempre boa, mas a décima já pode ser enjoativa. Uns estavam frios e fracos, outras vezes quentes e fortes. Teu cérebro avalia como está teu corpo no instante da decisão diante do meio que se apresenta e as decisões sempre serão no sentido do melhor para preservar teus genes. Se já almocei, não vou aceitar um convite para uma lasanha na casa de um amigo. Mas se estou faminto respondo sim sem hesitar. Estou com muita sede, não gosto de pepsi, mas é só o que tem, pode ser? Pode. Ela é feia, mas rica, vou dar uma chance, assim meus filhos vão estudar numa escola particular. Algumas decisões são fáceis de tomar, já que todas as situações anteriores foram boas ou ruins: Queres dez mil reais? Quero! Queres um tapão na cara? Não! Mas algumas são difícieis porque nunca foram tomadas e os resultados podem ser desastrosos: Largo o emprego ou não? Caso com ela ou não? Me enterro num financiamento de um carro zero ou compro um usado?
A vida sem a crença no LÁ não muda em nada nossas condutas. Mas nossa compreensão dos eventos da vida sim. O LÁ sempre foi usado para opressão. Os gays, como teriam LÁ, deveriam escolher não sê-lo! Afinal, ser homossexual foi uma decisão que livremente eles teriam escolhido. Os alcóolatras, se tivessem LÁ, não seriam bêbados. Se existisse o LÁ, eles teriam escolhido não ser “sem vergonha”, como muitos ainda escutam. Hoje em dia esses exemplos já são melhor compreendidos ou ajudados. Ser gay não é uma opção sexual, mas sim uma orientação genética. O alcoolismo é uma doença grave e os doentes devem ser ajudados e não condenados. Quantos pecadores seriam “salvos” se a crença no LÁ não existisse. O psicopata deve ser ajudado, ele não escolheu nascer com o cérebro deformado, sem remorso ou compaixão. O ladrão não escolheu ser fora da lei, ele se viu obrigado, diante da injustiça social ou fome. O pedófilo não escolheu ter essa tara, ele nasceu com ela, vamos pensar como ajudá-lo? Quem sabe investimos em castração química ou isolamento de crianças. Eles mesmos seriam voluntários e se apresentariam espontâneamente ao tratamento se não fossem ameaçados de prisão. O aluno “burro” da escola será que escolheu fingir ser pouco inteligente? Ou ele realmente não consegue seguir raciocinios mais complexos. O cara não teve LÁ nenhum para agir diferente! Vamos ajudá-lo!  
Tu agora estás perplexo! O Tiago está propondo que todo mundo é inimputável? Não, longe disso. O Eduardo Cunha tem que ir para cadeia, apesar de ele também não ter LÁ. Ele só se aproveitou do meio ambiente de impunidade em que se encontrou para preservar seus genes e de sua prole. A sociedade o ajudará se privá-lo de liberdade. Ele agora precisa encontrar um limite, para que haja, entre suas experiências de vida regressa, uma memória de taquarada nos dedos. A sociedade caminha para uma maior civilidade, uma sociedade onde a ética, a conduta virtuosa, é um valor moral importante. Os gays já foram queimados na fogueira por não se compreender seu comportamento. Mas em muitos países eles já tem direitos iguais. No nosso ainda não, eles não vão para fogueira aqui, mas ainda temos muito que ajudá-los. Acredito que a compreensão que não existe LÁ será um degrau importante a ser subido pela humanidade no processo civilizador.
Fique AQUI e agora e deixe essa fé tola no LÁ da eternidade inexistente.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Imaginemos um agente imobiliário falcatrua. Ele faz vários negócios fraudulentos durante um tempo, enriquece e influencia outros a agir como ele. Os negócios prosperam, apesar da evidente ilegalidade de seus atos anti-éticos. Finalmente é denunciado, sua licença de corretor de imóveis é cassada. Seus clientes foram lesados porque seus negócios são nulos. Alguns poucos sócios da sua súcia enriqueceram com ele, mas muitos de boa fé foram logrados. É óbvio que seus negócios tem que ser investigados, seus sócios também cassados e presos com ele. É óbvio que seus negócios tem que ser invalidados e os prejudicados ressarcidos do prejuízo. É óbvio que é golpe! Ô STF!!! Anula tudo, caras!!!

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Se existisse, dels ia ficar confuso naquela votação patética de ontem: seu nome foi invocado tanto por aqueles que gritavam sim, quanto pelos que exigiam não. Fora que cada um chamava sua religião (povo assembeiano, família quadrangular, santo não sei quê, etc.) para justificar seu voto. Qual seria a certa, não é mesmo? É exatamente por isso, pela variedade de crenças tolas (exceto, claro, a própria), que o estado deve ser laico. A política deveria passar ao largo da religião, para não constranger os outros. Passei incríveis vergonhas alheias durante toda a sessão. Uma população ignorante e temerosa de um dels vingativo, como ficou claro no voto do presidente, "Deus tenha misericórdia dessa nação!", elege um parlamento ignorante e temeroso também, ficou óbvio. O parlamento é o reflexo da nação. Se o país aplaude palhaços, tem tiriricas. Se valoriza jogadores de futebol, tem danrleys. Se idolatra ex BBB's, tem jeans. Esse último surpreendeu positivamente desde o início do seu mandato, a exceção que justifica a regra. Mas claro, se o povo dá jeitinhos para corromper a seu favor alguma lei, tem cunhas. Um fantástico desfile de nomes estranhos (pauderney, baleia, cabuçu, juthay... veneziano era até dos legaizinhos) que te convidam a pensar também em pedir misericórdia de dels! Que tipo de pai põe um nome desses num recém nascido? Só um ignorante de outro país!!!! Só pode ser outro país as localidades citadas!!! Cada cidade mais esquisita que a outra, deve ser um grotão que... Ah, claro, agora me caiu a ficha: Em Cabrobó, pauderney deve ser tão comum quanto Tiago em Porto Alegre. O Brasil é tão grande e diverso que realmente parece improvável uma erudição e culturas comuns. Tem muita luta ainda pela frente, mas acredito que essa geração que entrou nas universidades graças ao estímulo dado por programas de inclusão (cotas, próuni, fies) dos últimos 10 anos, que se alimenta melhor (bolsa família, pnae), que tem saúde melhor (mais médicos), que tem acesso a moradia digna (minha casa minha vida), com luz elétrica (luz para todos), essa geração vai construir um país bem diferente e eleger um parlamento mais erudito e laico. Será realmente uma pena se esse impeachment passar. Ficou evidente nas falas os interesses pessoais nas decisões dos parlamentares: por minha mãe marinalva, por meu filho juptair, por minha amada cabrobó... Quem vota assim ignora para que serve a política pública, está lá só por dinheiro. Misericórdia!!

quarta-feira, 2 de março de 2016

Acordei e percebi que a luz havia caído. Droga, sem luz, sem internet. Estou tão habituado a ter acesso ao mundo através de um computador que até fico meio desnorteado, sem saber o que fazer. Posso ler um livro, mas até livros eu agora leio no laptop que, por sorte, ainda tem bastante bateria. Ligo o aparelho e fico jogando uma partidinha de freecell até que a energia retorne. Mas, que nada, ela teima em se ausentar. Começo a recordar do tempo que a internet era escassa e cara. Lá em casa não tinha, mas meu pai, no escritório, sim. Ia lá a noite, de ônibus, para acessar. Era uma ferramenta para correspondência rápida, mas só com quem também tinha aquele privilégio, claro. Eu usava um programa que comprei dividindo com minha irmã advogada. Vinha em vários disquetes e se chamava MEMO. Hoje, qualquer adolescente acharia uma porcaria o tal do programa, só uma tela azul com as letras brancas, mas nós achávamos uma revolução, não precisava lamber selos! Permitia um endereço eletrônico de no máximo oito letras e nós nunca sabiámos se o email tinha ido ou não, ficávamos na dúvida. Assim, apertava o enter duas ou três vezes para ter certeza, fazendo com que a mesma mensagem fosse enviada tantas vezes quanto a ansiedade recomendava. Escrevia um email como uma carta: em cima ia o local onde eu estava e a data, depois cumprimentos educados e só aí o texto. Lembro o status de uma ocasião que fui ao aniversário de um amigo e a namorada do cara anunciou para todos os presentes que eu havia sido convidado e tinha confirmado presença através de correio eletrônico, ou eletronic mail, o e-mail. Foi um espanto geral. Lá em casa, eu quem primeiro comprei o acesso a internet. O pacote era por minutos e a conexão era por linha telefônica. Só dava para acessar tarde da noite, quando ninguém reclamaria da ocupação da linha. Como era caro, fiz o plano mais baratinho que tinha, se não me engano eram 35 minutos por dia. Minutos extras eram cobrados por fora, num boleto que chegava em casa no mês seguinte. Os extras eram muito mais caros, então evitava usá-los. O que fazia era: ligava o computador, abria o Netscape Navigator, melhor browser da época e acessava os emails. Quando havia algum, tu devias abrir o email e imediatamente desconectar da internet, para não ficar gastando minutos com a leitura. Simplesmente chegar ao primeiro email já levava uns dez minutos! Então, escrevia a resposta e só aí reconectava para enviar. Teve um mês que descobri os sites pornô. Nossa, minha conta explodiu e resolvi comprar um pacote mais caro. Mesmo assim, eu baixava a foto da mulher pelada para, só depois, com calma, apreciar. Quase tudo era feito off line, claro. Eu era bem mais produtivo em textos e leituras, não tinha orkuts para distrair. Aos poucos fui comprando acessórios para o computador, todos caros, então a opção pirata era a mais usada. Um fora da lei vinha à noite entregar os programas, como se fosse uma droga ilícita. Comprei a enciclopédia Encarta e o Office, da Microsoft. Bá, com esses esteróides anabólicos,
meu computador ficou musculoso e eu me achei um Luis Fernando Veríssimo, tinha tudo a mão para produzir. O programa Word fazia do escrever uma tarefa fácil. Meu tio Luiz comentou comigo de uma novidade incrível: O Aurélio eletrônico. Bá, enlouqueci! Fui na livraria Globo, no centro de Porto Alegre e comprei à prestação o programa no mesmo dia. Espetáculo! Meus grossos livros de dicionários ficaram obsoletos, até a conjugação dos verbos, sinônimos e antônimos, tudo aquele programa sabia, era só perguntar! Nem a ordem alfabética precisava saber!
Tu, caro leitor, podes estar achando que sou muito velho e um pioneiro da computação brasileira. Na verdade, omiti nesse texto até aqui quão ancião realmente sou. Mas agora vou botar para quebrar, sem maquiagem e sem filtro, cara nua, sou velho mesmo. Sou do tempo que a IBM construiu um prédio ao lado da Redenção só para abrigar um computador. Sim, o prédio todo era um único computador, com uma capacidade de processamento menor que um celular atual. Um colega meu do grupo de escoteiros tinha um pai engenheiro. O velho logo comprou um computador, um CP300. Era como comprar um carro, de tão caro, e só o computador não adiantava nada, tinha que comprar também uma televisão preto e branco e um gravador de fitas cassete. Coisa de magnata! Mas, como ele deixava, iámos lá brincar, com todo cuidado e respeito, claro. A atividade era estranha e longe do que hoje as crianças entendem como brincadeira. Tudo conectado e ligado, começávamos a digitar algum programa de jogo que vinha em revistas especializadas. Só podíamos escolher um jogo que fosse menor que a memória do computador, se não seria trabalho perdido. Não se podia errar nem uma virgula, se não a coisa não funcionava. Um guri ia lendo e o outro teclando, terminada a frase relíamos para ver se não tinha faltado nada. "Instalar" um programa até ficar operacional era um troço demorado, às vezes levava horas, se não dias. Copiávamos tudo da revista e, se não faltasse luz durante o processo, gravávamos numa fita cassete, quando... Eureca!!! Podíamos finalmente brincar depois de horas de concentração máxima. Outros amigos nos achavam CDFs loucos, porque não jogar bola na rua? Tem sol! A frustração era regra, mas quando algum program finalmente funcionava era uma glória!!! Tanto dinheiro em fliperama economizado: fazíamos nossos próprios joguinhos em casa e nos achávamos inteligentíssimos por saber copiar sem errar. Uma vez teve um concurso na escola: quem fizesse a melhor redação sobre computação ganharia um curso na UFRGS de programação LOGO, uma linguagem para crianças. Teve poucos inscritos e duas redações empataram em qualidade, a minha e de um cara da 202. Fomos para a secretaria da escola decidir com quem ficaria a vaga em sorteio. Ganhei! Fiquei até sem graça em ser o vencedor da disputa diante da cara do perdedor. Fiz o curso, mas sem computador em casa pouco adiantava aquele conhecimento. Logo começaram a se popularizar cursinhos de programação no centro. Tinha várias linguagens de programação: Algol, Cobol, Fortran, Fliper. A mais popular era a BASIC. Todos falavam que não servia muito para trabalho, mas sim para brincar em casa. Era mais um instrumento para desenvolver o raciocínio de programação. Eu achava fácil e logo me formei. Quando entrei na engenharia tinha cadeiras de programação opcionais, me inscrevi em BASIC, afinal, seria uma barbada, já era formado! Depois eu faria as outras linguagens. Mas droga, o BASIC da faculdade era bem difícil, quase rodei, passei com C. Os programas não eram mais tolos como formar todos os angramas possíveis de alguma palavra. Mas sim, úteis, como calcular o salário de um funcionário depois de informadas as horas extras trabalhadas. Penei. Alguns colegas seguiram empolgados. Teve um que escreveu um programa para planejar alternativas de horário da faculdade informadas todas as opções das cadeiras. Mas eu não, me aborreci e não fiz nenhuma outra cadeira de programação. Um tio comprou um computador ainda melhor que do escoteiro filho do engenheiro, um CP500. Ele me cedeu a chave do apartamento e eu ia lá as vezes só para escrever. Esse computador tinha algumas novidades incríveis. A primeira é que a tela vinha colada ao teclado, parecia uma máquina do filme Star Trek. O outro avanço tecnológico fabuloso era que tu podias imprimir, uma máquina de escrever Olivetti elétrica tinha ligação com o computador. Tá certo que demorava uma hora, mais ou menos, para imprimir uma folha, mas era sensacional! Depois disso, uma irmã comprou de uma amiga jornalista um 286 usado, com impressora matricial. Agora tínhamos computador em casa e logo me associei para usar. Pena que ele durou pouco, pifou em menos de dois meses e, por ser importado, ninguém sabia consertar a coisa. Me afastei dos computadores até o começo desse texto, quando programas simples eram vendidos prontos e computadores ainda eram caros, mas pagáveis. Tinha que ligar e digitar: win. Pronto, em menos de dois minutos uma linda tela colorida se abria e o mouse era a interface que agilizava o acesso aos diversos programas que já vinham instalados no computador. Agora tinhámos disquetes e podíamos até levar para outros computadores nossas produções. OBA!!! A luz voltou e eu posso cair de boca no frívolo Facebook. Coisa chata esses caras que escrevem!!! Pelamordedels, troço anacrônico e estapafúrdio!!