domingo, 27 de novembro de 2016

Sol de Si
Meu finado tio Luiz tinha umas tiradas muito engraçadas. Fazia comparações esdrúxulas e imaginava situações caricatas. Algumas passavam ao meu repertório instantaneamente por ser um humor insólito que me agradava muito. Uma que passei a usar sempre que cabe é a do sachê de chá.  Quando ele queria deixar claro o quão atraente sexualmente alguma pessoa não era, comparava com um sachê usado: tão excitante quanto um saquinho de chá segunda mão. Eu imaginava aquele sachê de chá todo amassado, esquecido num canto do pires, com uma mancha seca do líquido que já tinha tingido denunciando o que um dia foi, os prazeres que proporcionou para as pessoas que já não estavam por perto. Meu tio era um manancial de conhecimento. Para ele era fácil fazer piadas, tinha muita leitura e era só sacudir os baús do cérebro para pipocar chistes engraçados. Ele e minha mãe, Bebel, eram de família muito erudita. Tinham um pai escritor e tradutor, ampla biblioteca em casa, na escola estudaram francês e latim. Então, tinham uma visão de mundo bem diferente da média de seu tempo de iletrados sem internet. Os dois eram de esquerda, o que praticamente é sinônimo de militante, pois a direita, por inércia, é conservadora. Se ninguém fizer nada, as coisas se perpetuam, já diziam Newton e Marx. Os de esquerda são ativos, querem que as coisa mudem, vão a luta onde for. Os de direita reativos, não querem que as coisas mudem, então só se mexem para impedir a mudança.
Bebel, uma militante ativa de esquerda, estava sempre na luta por um mundo mais justo e igualitário. Vivia em reuniões que organizavam os pobres e oprimidos. Muitas vezes viajou longe para cursos, seminários e palestras. Esteve em Cuba, Nicarágua, China, entre tantos outros países com administrações de esquerda, trocando experiências com outros lutadores, aprendendo e ensinando. Estava sempre cercada de gente com a mesma gana, muitas vezes eram mulheres estrangeiras, europeias. Eu ficava na expectativa da chegada da mulher, como seria uma francesa ou alemã? Para minha grande frustração, as gurias que apareciam lá em casa eram sempre estranhas, saquinhos de chá usados, não me entusiasmavam sexualmente. Mas todas eram admiráveis: tinham o mesmo brilho no olhar de Bebel, um élan vital impressionante, uma alegria que contagiava e uma disposição de trabalhar de graça para os outros, por amor, Como Jesus ensinou, elas amavam o próximo e não se conformavam com as injustiças, uma atitude extremamente cristã. Pagavam do próprio bolso, viajavam para outros países, para ajudar desconhecidos, como na parábola do bom samaritano. Eu que, na adolescência, estava sempre tentando obter mais bens e beleza, o desapego a essas coisa materiais me era chocante. Foi sempre uma marcante lição de vida encontrar com aquelas figuras estranhas.
Agora, com a morte de Fidel, renasce uma antiga discussão, qual seria melhor: esquerda ou direita. Para os meios de comunicação nacionais a discussão não tem nem sentido, é óbvio que Fidel era um tirano ditador. Por sorte, vivi numa casa em que algumas pessoas realmente iam para Cuba ver como são as coisas por lá e tenho outros pontos de vista. No meu entender, a mídia no Brasil há muito deixou de tentar fingir uma neutralidade e adotou um editorial totalmente conservador de direita, por isso as palavras fortes que usam contra “El Comandante”. Não vou entrar no mérito se o líder cubano era ou não um ditador. Mas vou me perguntar se sua liderança foi boa ou ruim para Cuba. Segundo a ONU, Cuba tem o melhor sistema de saúde das Américas e o segundo melhor sistema de educação do mundo. Além disso, Não há naquele pequeno país de uma ilha caribenha, com a economia basicamente agrícola e que sofre boicote há 55 anos do comércio mundial, nem uma criança ou idoso desassistido, o que prova uma forte segurança social. Recente pesquisa também revelou que Cuba é o melhor país da América Latina para ser menina, assim, o país se torna modelo para outros países em desenvolvimento em termos de igualdade e oportunidade para as mulheres. O país também é um grande exportador de médicos, onde quer que sejam necessários no mundo, Cuba os envia para tratar enfermos de qualquer raça, nacionalidade ou credo por amor ao próximo. Nesse sentido, a liderança socialista de Cuba deu muito certo. A empolgação e brilho nos olhos de Fidel, os aplausos que recebia nos discursos na ONU, procure na internet para ver, fica claro que está falando de uma esperança que une todo mundo. Para os cubanos ele é um verdadeiro sol que ilumina o país. Me recordo que, por duas vezes nas suas andanças militantes, minha mãe esteve em Cuba. Tinha até umas fotos, não sei onde foram parar, dela ao lado de Raul Castro, na época um ilustre desconhecido, capinando um terreno, preparando a terra para a plantação. Meu pai também esteve por lá. Os dois relataram que lá não tem BMW, mas também não tem favelas. Não existe a possibilidade de alguém enriquecer, o que irrita profundamente os que gostam de explorar os pobres para ter sua BMW, como a mídia nacional. Um bom filme para assistir e tirar suas dúvidas a respeito do socialismo cubano é “Sicko”, documentário do subversivo cineasta americano, Michael Moore.
Quando morei em Amsterdam, recebi a visita de uma das amigas estrangeiras “sachê usado” da Bebel. Ela me ofereceu sua casa na Alemanha para ficar uns tempos. Diante de tal oferta, resolvi me mudar para Hertzogenrath, um vilarejo perto de Aachen. Pedi as contas do meu emprego, comprei uma bicicleta de viagem, coloquei todas minhas coisas nas mochilas e parti da Holanda. Mas, mal cheguei e a guria já foi avisando: Ficaria um mês viajando e na volta eu já deveria ter desocupado o colchonete da sala. Me prendi a procurar emprego, fui a vários estabelecimentos mas era um lugar pequeno, a economia não sustentava ilegais como eu. Comecei a me deprimir sozinho naquele apartamento estranho. Mas não desisti, estive então em Colônia e Bonn, mas também não achei trabalho. A Alemanha Ocidental estava cheia de imigrantes da recém unificada antiga Alemanha Oriental, país que resistiu bem menos ao assédio do capital que Cuba, aptos legalmente para trabalhar, falantes da língua e aceitando qualquer salário. Eu não tinha como competir, apesar do meu desejo intenso de ficar mais tempo no país e aprender alemão, logo percebi que teria que sair. Durante os dias que fiquei sozinho no apartamento da sachê, triste e desempregado, me socorri da ajuda dos LPs que ela tinha do Brasil. Era uma forma de me acalmar, encher meu coração de esperança, ouvir português, me sentir seguro num país estrangeiro. Escutei muito Lulu Santos, Tim Maia e Chico Buarque. Me orgulhava de ser brasileiro ao encontrar no interior de uma casinha qualquer da Alemanha amantes da nossa cultura. Me emocionava com a letra das músicas, uma grande saudade me tornava melancólico, mas também me dava uma forte coragem par continuar a lutar pelo que eu queria. Quem me conhece sabe que nunca escuto música, nunca. Bem, quase nunca. Não sinto a menor falta. Mas quando escuto com atenção uma música boa, no escuro, sem ruídos externos, refletindo seu significado e o projetando sobre minha vida, sempre me emociono todo. Sei lá o que acontece, afrouxa minhas funções vitais, minha musculatura fica trêmula e fraca, minha garganta se aperta e choro como criança. Talvez por isso, tanta gente ouça, tanto, tantas músicas! Talvez eu me cague de medo de ouvir e perder o controle, então, inconscientemente, esqueço que existe música, nem aparelho de som eu tenho em casa. Arrumei minhas coisas de novo sobre a bicicleta e parti para Bélgica. Aprendi mais português do que alemão naquele mês na Alemanha.
Minha irmã mais velha, Verônica, depois de velha voltou a cantar num coral, coisa que fazia nos tempos de escola. Quando o grupo se apresenta somos todos convocados a comparecer, quer queiramos ou não. Então, fomos todos sábado passado assitir mais uma das apresentações do Grupo de Canto Sol de Si. Sempre encontro pessoas que não vejo há quinze, vinte anos nesses eventos. Me flagro julgando a aparência das pessoas depois de tanto tempo: Nossa, que velha e encarquilhada está a fulana, parece um saquinho de chá segunda mão. Claro, a recíproca deve ser verdadeira, elas olham para mim e vêem uma mancha seca e amassada no cantinho do pires daquilo que um dia já fui. Alguém me pergunta: E aí?!!! Não tenho nada para contar, nenhuma façanha extraordinária, só vivendo com os olhos opacos. Respondo sem jeito: tudo bem, tô aí, vivo. Depois da desconfortável espera na porta e conversinhas formais com antigos conhecidos, finalmente entramos, sentamos e começa o espetáculo. Eram 34 mulheres cantando juntas. Me surpreendi várias vezes emocionado, chorando no escuro, durante o show. Meu coração se encheu de uma alegre melancolia, me senti pleno de amor que aquelas gurias gentilmente me ofereciam. As músicas começam, geralmente de mansinho, vão crescendo, se encorpam, atingem um ápice de potência vocal e significado, um auge que espreme lágrimas, depois vão minguando até pararem, tem uma vida bem breve. Com o espetáculo, a mesma coisa: Depois de uma espera inicial e educadas trocas de sorrisos e cumprimentos, as músicas vão se sucedendo, uma a uma, o evento tem um auge, até a canja final e as palmas consagradoras. Na saída do teatro, as pessoas se cumprimentam alegres, mas se despedem num melancólico adeus e aos poucos vão saindo, em pouco tempo o saguão está vazio e triste de novo.
Me impressiono com as cantoras, todas já curtidas e marcadas pelas colisões com o mundo, saquinhos de chá usados, mas com brilho nos olhos. Transmitem a mesma esperança e alegria de um adolescente. Eufóricas ao final da apresentação. Nem todo mundo pode ser Fidel ou Chico Buarque e mobilizar milhões, marcar gerações e deixar legados ao morrer. Mas pode, da mesmíssima forma que eles, ter uma alegria, um sol em si, um brilho que emana de sua atitude, que seja cantar ou outra qualquer e ilumina com amor as vidas dos próximos. Mesmo ao final do espetáculo da vida, quando todos teus amigos estão se despedindo e saindo, ainda dá para ser um Sol de Si. A aparência das pessoas pouco importa, BMW também não adianta nada no final, mas ninguém deve ficar desassistido de carinho, cuidado e amor. Ninguém vive para sempre ou fica suculento até o fim. O que realmente interessa é se teu olho ainda brilha e tu faz a alegria dos outros por amor, porque a vida é breve. Tio Luiz, mesmo ao fim da vida, se negava a ter carro, era uma músico de olhos brilhantes, que espalhava amor para desconhecidos empunhando seu saxofone. Ainda tem muito caldinho num saquinho segunda mão, depende do jeito que tu olhas.

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