domingo, 25 de junho de 2017

Sociedade Kafkaniana
Um amigo me devolveu um livro que já nem lembrava tinha emprestado. A Metamorfose de Franz Kafka. É bom ter amigos honestos. Tenho ainda outro livro do mesmo autor em casa, O Processo. Fui procurar no gabinete e reli alguns trechos das obras para matar a saudade. Num instante, já estava perdido em reflexões sobre a vida e o que acho que o autor queria que pensássemos. No primeiro, o protagonista acorda uma manhã e descobre que tinha se transformado num “inseto monstruoso”. O segundo inicia do mesmo jeito: o personagem desperta e percebe que sua vida mudou, tem sua privacidade invadida e é acusado de um crime mas nem sabe qual. No meu entender os dois livros são sobre o mesmo tema. Tratam do momento que alguém se conscientiza de uma situação social opressora e começa a ser perseguido por isso. Por isso o autor utiliza a metáfora do despertar. O sair de um estado de dormência passiva, para uma vigília consciente e ativa. Quando li pela primeira vez A Metáfora, imaginei que Kafka fosse gay e, ao revelar para família seus desejos homossexuais, passou a ser tratado como uma criatura horrenda que tem que ser escondida no quarto até morrer. Depois, ao ler O Processo, minhas suspeitas aumentaram. A orientação sexual seria o crime intangível, mas condenável. Porém, lendo os anexos dos próprios livros, percebi que não era isso. Kafka era mulherengo. Também era judeu, talvez isso o levasse a escrever sobre excluídos, mas, essa foi mais uma hipótese descartada, porque toda sua família também era. Falava um dialeto alemão não muito bem visto em Praga, sua cidade natal, outra teoria. Relação difícil com seu pai. Não sei, o fato é que seus contos nos falam de lutas sociais, ou melhor, resignação diante de exclusões absurdas. 
Comecei a relacionar os dois livros sobre a mesa com conversas recentes que tive na escola. Na sala dos professores, durante o recreio, meus colegas de trabalho descobriram que larguei a Engenharia Mecânica da UFRGS no meio. Já incrédulos com minha aparente burrice, ficaram atônitos ao saber que falo outras línguas. Uma colega me perguntou até o porquê de eu estar ali, diante de tantas outras opções “melhores”. Ao longo da vida fui fazendo escolhas e, como todo mundo que consegue, escolho sempre me afastar das opressões e me aproximar das coisas que me agradam. Quando as coisas que te agradam são as mesmas que agradam a sociedade, tu segues tranquilamente a ordem social, és ordinário, é fácil, basta seguir o fluxo e serás feliz, realizado e bem gratificado. Mas, se tens ideias diferentes da maioria, és extraordinário, tua vida será um calvário. Ser um engenheiro, católico, casado, morar numa casa ou apartamento em Porto Alegre e com carro foram os planos da sociedade para mim quando nasci. Acredito que todos esses atributos são ótimos, mas não para mim. Essas perspectivas me enchiam de tristeza. Aos quinze anos comecei a suspeitar que meus desejos mais profundos eram diferentes daqueles projetados sobre mim. Aos vinte, passei a lutar por eles. Fugi para longe, para onde não me conheciam, para longe da tristeza, para onde poderia descobrir quem realmente eu era. Passei dois anos viajando pela Europa e descobri um cara totalmente extraordinário, diferente do que me diziam que eu deveria ser. Acredito que, a partir desse momento, também eu me transformei em um inseto monstruoso para a sociedade. Me percebi ateu e, como Kafka, um mulherengo, alguém que não quer casar, queria morar no mato, além de não ter a menor vontade de ser engenheiro e andar de carro. Ao voltar para o Brasil, sai de todas as trilhas que estavam abertas para mim e me embrenhei numa selva desconhecida. Isso horrorizou minha família e, devo admitir, a mim também. Minha história, que já estava toda pronta, teria que ser reescrita do zero. Nem eu sabia como seria. E para falar a verdade, ainda não sei, estou sempre em dúvida, temeroso de cometer erros, pois estou em pleno processo de reescrevê-la. Se permanecer no caminho “certo”, já escrito, “do sucesso”, era entristecedor, sair também não foi nada alegrador. O indivíduo extraordinário, “desviante” da ordem, encontra a mais sólida barreira a ser ultrapassada, a social. Nada é mais difícil do que nadar contra a corrente das imposições sociais. Pergunte aos gays, aos negros, aos deficientes, aos judeus, aos tatuados, aos ateus como eu ou outro grupo minoritário qualquer se suas vidas não têm sucessivos encontros com a estranheza, com o preconceito e com a opressão. Teus pais, teus irmãos, teus amigos, teus filhos e sobrinhos, todos agora vão te olhar com reprovação ou piedosa compaixão: “Ele tem problema...” Pior que tem mesmo, é um problema, nossa educação dificilmente contempla o diferente como normal. Nós somos incomuns, mas nos tratam como párias anormais. 
Outro livro que li sobre os incomuns e me marcou muito, foi de um destes “párias” da sociedade. John Wray, um neozelandês que escreveu Os Vagabundos dos Mares do Sul. Ele desiste de trabalhar e viver em sociedade e resolve construir um barco para se isolar. Ao final do livro, num capítulo chamado Conclusão, ele aconselha seus leitores a ser ordinários e não agir como ele, nunca construir um barco. Se construírem, nunca mais conseguirão se encaixar numa vida comum. Eu não sou Wray, nem Kafka, divirjo deles. Wray reage e parte voluntariamente do convívio social, como eu fiz, mas se arrepende e aconselha outros a não seguir seu exemplo. Kafka fica, mas sofre até a morte a opressão. Já eu não, acredito que devemos tentar sair da opressão e buscar construir um exemplo para que outros se encorajem a fazer o mesmo. Isso é crucial. Somente quando for comum os incomuns saírem do armário, nós seremos considerados normais. 
Se tu és comum e gosta da vida que leva, vá fundo, estás correto, não construa barcos. Mas, meu caro leitor, aconselho que assuma teus desejos, construa teus barcos, viaje de bicicleta pela Europa, saia do armário se é o que desejas. Pois tu, apesar dos temores, dúvidas e erros que venhas a cometer, estarás escrevendo a tua história e não a de alguém que escreveu por ti. A felicidade não existe, os raros momentos felizes que vivemos são aqueles que estamos em busca dela.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Eu devia ter uns trinta, ela um pouco mais. Ainda éramos jovens, mas nem resíduo de ilusão romântica ainda existia em nenhum de nós. Nos deleitávamos um no outro despudoradamente, por mero prazer e isso bastava para ambos. Morávamos longe, mais de 300km, cada encontro era de muita sede. Ríamos muito e conversávamos, trocávamos carícias e fluidos corporais e, exaustos, descansávamos com mais risadas. Era uma amizade maravilhosa, de muita troca e respeito pela individualidade de cada um. Uma madrugada daquelas, aí por duas da manhã, plenamente saciados de tudo, ela manifestou um desejo guloso qualquer, talvez sorvete ou chocolate, não lembro. Propus sair, era verão e eu tinha recém comprado uma moto. Armados somente com nossos capacetes e nossa alegria de viver, saímos noite adentro. Na primeira lojinha de conveniência encontramos o que queríamos. Mas porque voltar para casa, quatro paredes fechadas, se temos o mundo todo para conhecer? Tive uma ideia boa: mostrar a ela os lugares que gosto de Porto Alegre. Subimos os morros, serpenteando no velho asfalto da zona rural do município. Fomos a Belém Velho, fizemos a volta na pracinha pouco iluminada do vilarejo. Mostrei o cemitério e a igrejinha, as figueiras e as casinhas e como parecia uma cidadezinha do interior. Conversamos sobre meu desejo de um dia me “interiorizar”. A noite era fresca e estávamos felizes, então seguimos o passeio. A levei ao Morro da Polícia e pedi para que fechasse os olhos. Lá em cima abriu e, de um só golpe de vista, o quadro de toda a cidade brilhando no escuro a estarreceu. O Guaíba refletia o céu estrelado e o contorno das ilhas era nítido. Ela se emocionou e eu por ela. Contemplamos um pouco a paisagem e partimos para o Belém Novo, outro bairro distante. Íamos conversando, devagar, acompanhados do ronronar da moto. As estradas todas vazias, só nós as usufruíamos àquelas horas e não com pressa, mas sim saboreando os momentos juntos. Paramos na beira da praia e de novo contemplamos o infinito, as sombras das árvores, a lua e as estrelas, a voz um do outro, a delícia do convívio. Muita gente devia estar trabalhando àquela hora, ou dormindo, ou sofrendo num hospital e nós ali, em descontraída reflexão, bebendo a noite com calma. Percebemos o quão especial era o instante e comemoramos nossa sorte as gargalhadas. Voltamos para casa quase seis da manhã. Finalmente nos acomodamos para dormir. De quando em quando reencontro essa mulher, agora uma senhora. Para mim também o tempo passou, tenho cabelos brancos e uns 30 kg a mais que tinha. Mas, magicamente, sempre que nos encontramos, às vezes com anos de intervalo, parece que ainda estamos naquela madrugada. Lembramos juntos coisas engraçadas e rimos de bobagens, comemos, dividimos dramas pessoais e tentamos ajudar no que pudemos. Eu chamo isso de amor. Feliz é a criatura que não se encarcera num casamento, num bom emprego, num concurso público, numa fé dogmática de alguma religião ou partido político. Porque o que tu vais lembrar com gosto daqui 20 anos ou na hora da morte são os pontos fora da curva, as coisas que tu não planejaste. A vida está aí: nos momentos vãos que tu passas com alguém que gostas. Perceba e aproveite.