quinta-feira, 15 de junho de 2017

Eu devia ter uns trinta, ela um pouco mais. Ainda éramos jovens, mas nem resíduo de ilusão romântica ainda existia em nenhum de nós. Nos deleitávamos um no outro despudoradamente, por mero prazer e isso bastava para ambos. Morávamos longe, mais de 300km, cada encontro era de muita sede. Ríamos muito e conversávamos, trocávamos carícias e fluidos corporais e, exaustos, descansávamos com mais risadas. Era uma amizade maravilhosa, de muita troca e respeito pela individualidade de cada um. Uma madrugada daquelas, aí por duas da manhã, plenamente saciados de tudo, ela manifestou um desejo guloso qualquer, talvez sorvete ou chocolate, não lembro. Propus sair, era verão e eu tinha recém comprado uma moto. Armados somente com nossos capacetes e nossa alegria de viver, saímos noite adentro. Na primeira lojinha de conveniência encontramos o que queríamos. Mas porque voltar para casa, quatro paredes fechadas, se temos o mundo todo para conhecer? Tive uma ideia boa: mostrar a ela os lugares que gosto de Porto Alegre. Subimos os morros, serpenteando no velho asfalto da zona rural do município. Fomos a Belém Velho, fizemos a volta na pracinha pouco iluminada do vilarejo. Mostrei o cemitério e a igrejinha, as figueiras e as casinhas e como parecia uma cidadezinha do interior. Conversamos sobre meu desejo de um dia me “interiorizar”. A noite era fresca e estávamos felizes, então seguimos o passeio. A levei ao Morro da Polícia e pedi para que fechasse os olhos. Lá em cima abriu e, de um só golpe de vista, o quadro de toda a cidade brilhando no escuro a estarreceu. O Guaíba refletia o céu estrelado e o contorno das ilhas era nítido. Ela se emocionou e eu por ela. Contemplamos um pouco a paisagem e partimos para o Belém Novo, outro bairro distante. Íamos conversando, devagar, acompanhados do ronronar da moto. As estradas todas vazias, só nós as usufruíamos àquelas horas e não com pressa, mas sim saboreando os momentos juntos. Paramos na beira da praia e de novo contemplamos o infinito, as sombras das árvores, a lua e as estrelas, a voz um do outro, a delícia do convívio. Muita gente devia estar trabalhando àquela hora, ou dormindo, ou sofrendo num hospital e nós ali, em descontraída reflexão, bebendo a noite com calma. Percebemos o quão especial era o instante e comemoramos nossa sorte as gargalhadas. Voltamos para casa quase seis da manhã. Finalmente nos acomodamos para dormir. De quando em quando reencontro essa mulher, agora uma senhora. Para mim também o tempo passou, tenho cabelos brancos e uns 30 kg a mais que tinha. Mas, magicamente, sempre que nos encontramos, às vezes com anos de intervalo, parece que ainda estamos naquela madrugada. Lembramos juntos coisas engraçadas e rimos de bobagens, comemos, dividimos dramas pessoais e tentamos ajudar no que pudemos. Eu chamo isso de amor. Feliz é a criatura que não se encarcera num casamento, num bom emprego, num concurso público, numa fé dogmática de alguma religião ou partido político. Porque o que tu vais lembrar com gosto daqui 20 anos ou na hora da morte são os pontos fora da curva, as coisas que tu não planejaste. A vida está aí: nos momentos vãos que tu passas com alguém que gostas. Perceba e aproveite.

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