segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

 

Sexo, amor, paixão, bicicletas, motocicletas e automóveis

Converse com qualquer pessoa que tem carro e bebê para ouvir a mesma história: a criança está irritada, chorando, incomodada com alguma coisa, basta dar uma voltinha na quadra para que pare de chorar e durma. O motivo é óbvio. A cadeirinha é justa, macia e acolhedora, o contato físico é intenso, a posição é fetal de imobilidade física, a criatura fica presa ali, com grande restrição de movimentos, o ronronar constante do motor e o balanço do movimento são muito semelhantes ao útero materno. O sistema nervoso do recém-nascido interpreta a situação da seguinte forma: bueno, agora tá beleza, estou de volta ao meu aconchego, aqui todas minhas demandas serão atendidas automaticamente, nada pode ser mais seguro, aqui é meu chão, daqui que vim, posso relaxar. Algo semelhante sente um adulto que está curtindo uma praia quando chega um vento frio e começa a chover forte. Guarda-sóis voam, o som forte do vento nas orelhas assusta, a areia lixa as canelas, o calorzinho do sol é substituído por pingos gelados que agridem a pele exposta. O cara recolhe tudo e volta rápido para o automóvel. Se o meio ambiente não está mais legal, basta correr para o colinho da mamãe. Assim que bate a porta, uma grande sensação de conforto inunda a consciência do veranista. Ali dentro do carro o sujeito fica isolado do meio ambiente e ainda é melhor que voltar ao útero materno por que tem janelas que permitem a visão do exterior e até porta se quiser sair. Os elementos da natureza que por ventura possam incomodar ficaram de fora. Até o ruído amedrontador da tormenta é filtrado. Naquela barriguinha metálica de bancos envolventes que a gente pode escolher a temperatura e o som que vai ouvir na posição fetal não entra frio ou calor, vento ou chuva. Podemos relaxar e comer uma rosquinha de polvilho desperdiçando os blues de Djavan enquanto se espera a borrasca passar.

Essa sensação de bem estar que tanto bebês quanto adultos temos na imobilidade física, sem gasto energético, isolado do meio ambiente, podemos chamar de amor. Tu não percebes que amas alguém quando tens prazer em ficar horas, bem encolhidinho no sofá, enroscado no corpo do outro, embaixo do edredom, mascando uma pipoca maratonando uma série de Netflix? Amor é bom, dá muito prazer, amamos intensamente nossos carros. Faça o experimento de tirar o veículo de alguém que tem carro há algum tempo. O sofrimento é de luto, depressão profunda. A necessidade de caminhar ou esperar um ônibus é a certeza da eminência da morte, sensação semelhante ao nenê que nasce e se vê cruelmente jogado ao meio ambiente, obrigado a fazer esforço físico e interagir com os elementos da natureza. Se entrevistados, tanto o recém nascido quanto o adulto, diriam: ponham-me de volta lá dentro, pelamordedeus!

Agora, tente lembrar a alegria de uma criança ao ganhar sua primeira bicicleta. Aquela maquininha movida a pedal dá uma liberdade fantástica, na mesma tarde o guri vai subir e descer a rua dezenas de vezes, talvez dará até algumas voltas na quadra se sua mãe permitir. Você lembrará da criança tentando manobras ousadas, tirando a mão do guidon, fazendo curvinhas apertadas, ficando em pé nos pedais, pedalando a toda velocidade ladeira abaixo, dando cavalinho de pau, descendo degraus, tentando empinar, cada dia mostrará orgulhoso suas novas habilidades para quem se dispuser a olhar. Mesmo sozinho e sem ninguém para se exibir, a diversão está garantida, é um momento de auto entretenimento, a hora de se dar prazer. Uma criança pode passar horas simplesmente andando de lá para cá e a razão é realmente só essa mesmo: prazer. Gastar muita energia em atividade física intensa, extraindo prazer do meio ambiente, é sexo! Claro que, no primeiro tombo e ralado no joelho, o chorão procurará a segurança. De novo, se o meio ambiente não está mais legal, basta correr para o colinho da mamãe.

Se nunca for apresentado aos automóveis, a criança seguirá andando prazerosamente de bicicleta, passará toda sua adolescência gostando e entrará na idade adulta ainda tendo prazer em circular pedalando. O prazer sexual numa pessoa que treina todo dia nunca acaba. Há países desenvolvidos como Holanda, Suécia e Dinamarca, que a maioria dos deslocamentos urbanos são feitos sobre bicicletas por adultos com grandes benefícios na saúde e longevidade da população, silêncio e poluição do ar das cidades. Os cidadãos dessas culturas muitas vezes nem entendem o porquê de pensar noutra opção modal de transporte, mesmo abaixo de neve, se existe essa tão prazerosa. Há muitos anos, assisti uma reportagem de uma senhora francesa que completava 124 anos e estava lúcida e conversando. Ela contava que o que mais sentia falta era de andar de bicicleta, pois o médico a proibiu de pedalar depois de um tombo em que quebrou o quadril quando tinha cem anos.

Os automóveis são uma das invenções humanas mais prejudiciais a saúde e ao meio ambiente. Nos Estados Unidos, país que adotou os carros como principal modo de ir e vir, as pessoas são obesas e as cidades ruidosas e poluídas. Na Holanda, onde a bicicleta é a opção primeira para deslocamentos urbanos, a população é magra e as cidades são silenciosas. Se fossem inventados hoje em dia, com os conhecimentos que temos sobre o meio ambiente global, a saúde humana, o problema da superpopulação ou escassez de recursos naturais, os automóveis particulares seriam vistos como uma piada de mau gosto. No entanto, o mundo os ama, um amor doentio, um vício que faz mal para saúde e endivida as pessoas como qualquer vício.

Muito bem, você compreendeu. Os automóveis são amor: prazer que vem da inatividade física, do isolamento dos elementos da natureza, útero, casamento, assistir Netflix comendo Ruffles, engorda. As bicicletas são sexo: prazer que vem da atividade física, do contato físico intenso com o meio ambiente, do vento na cara, o nascimento, a solteirice, o gasto de energia, emagrece. E as motocicletas? Bueno, isso é interessante de se refletir. As motos são a intersecção entre os dois. Ao mesmo tempo em que se fica inativo fisicamente, se interage com os elementos da natureza de forma intensa. Tudo é intenso no motociclismo: o ruído do vento, o barulho, o calor e a vibração do motor, a sensação de velocidade. Moto é um troço que dá muito prazer. Qualquer chuvinha se sente na pele como uma tempestade e qualquer ventinho um furacão. Tanto quem está habituado com carros quanto com bicicletas fica apavorado. Moto dá medo! Costumo resumir as motocicletas com uma palavra: paixão! Elas são intensas, apavorantes, mas apaixonantes e o usuário fica querendo sempre mais e mais. Motos são namoro, sexo com amor, desejo com alguns desentendimentos eventuais. Mas elas não duram para sempre. Os acidentes são graves e geralmente, depois de passar um tempo no hospital, o cara decide por casar com um carro, se aquietar, se meter no útero protetor da barriga de lata, se socorrer do colinho da mamãe. Eu já fui um grande ciclista, cruzei continentes pedalando, sexo puro. Também já fui casado com carro, fui viciado no aconchego amoroso e protetor que proporciona, engordei bastante. Atualmente estou namorando, feliz com minha moto, sexo e amor nas medidas exatas. Mas, apesar de me dar muito prazer há 34 anos, motos ainda me dão muito medo, me apavoram. Sinto uma atração incontrolável por elas, um tesão louco, tenho alguns desentendimentos eventuais, mas as amo demais, são minha paixão. Mas sei que se sobreviver a um tombo feio, a paixão vai evaporar. Enquanto tenho virilidade suficiente, vou mantendo esse relacionamento tesudo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

 

Hiperplasia Maligna

O jornal Zero Hora de Porto Alegre, na edição do dia 1º de fevereiro, traz uma reportagem sobre passeios turísticos e ecológicos no município de Maquiné em áreas próximas a Reserva Biológica da Serra Geral, única área do estado que nunca foi desmatada. A comunidade local comemora a publicação, pois dará uma visibilidade maior aos seus esforços de sobrevivência na região ainda bem preservada e até certo ponto hostil a ocupação humana. O prefeito e demais políticos da cidade também celebram o artigo, com grande foto de chamada na capa do periódico, porque trará mais desenvolvimento para a população. Os produtores e comerciantes citados no texto, evidentemente, regozijaram com a possibilidade de maiores vendas e lucros vindos do grande afluxo de visitantes que a matéria possibilitará. E, finalmente, os turistas, ávidos por novas atrações, curiosos por conhecer aquela novidade: o meio ambiente natural. Todos parecem estar contentes, só quem lamenta são meia dúzia de ambientalistas que entendem o estrago que tal reportagem, com toda sua boa intenção e ingenuidade, pode gerar ao ecossistema nativo.

Com o surgimento da pandemia do novo vírus corona, a imprensa se esforça em tecer loas a ciência e os benefícios que ela traz para a humanidade. É inegável. A longevidade média, como exemplo cabal de sucesso científico, dobrou durante o século XX e continua a subir atualmente. A criação de vacinas, que evitam muitas doenças, assim como medicamentos eficientes, como a penicilina, para tratá-las, transformou nossa espécie no maior sucesso evolutivo do planeta. De pouco mais de um bilhão de indivíduos há cento e cinquenta anos, saltamos para cerca de oito bilhões atualmente. Não é incomum que quatro ou até mesmo cinco gerações convivam juntas. Assim como na reportagem da Zero Hora sobre os passeios de turismo rural organizados pela prefeitura, todos estão felizes com os avanços da ciência, exceto claro, aqueles mesmos ecochatos que falam de uma tal insustentabilidade.

Observe o gráfico do aumento da população humana no planeta do século I até a atualidade (no eixo x os anos e no eixo y bilhões de habitantes):



No final dos anos setenta, eu ainda uma criança, li uma entrevista do ambientalista gaúcho José Lutzenberger que me impressionou muito. Ele abraçava a teoria de Gaia, de seu amigo inglês, o cientista James Lovelock. Segundo eles, o planeta é um ser vivo, com fisiologia própria, auto regulatória, capaz inclusive de manter uma temperatura média como se fosse um mamífero. Para Lutzenberger, a Terra trataria o tremendo aumento da nossa espécie como uma doença. Naquela época, a população humana ainda não chegava aos cinco bilhões de indivíduos. A humanidade seria uma enfermidade que provoca febre e um aumento insustentável da temperatura global e Gaia logo acionaria seus mecanismos de defesa imunológica para nos expelir como um pus nojento. A hipótese de Lovelock e Lutzenberger se torna muito mais palpável agora com o aquecimento global ou a pandemia de covid-19, quando a comunidade científica inteira se encontra apavorada, pois mesmo com seus maiores esforços já se vislumbra a possibilidade de nossa extinção. Uma simples mutação do vírus para uma maior letalidade ou um grau a mais na temperatura do planeta elevando o nível dos oceanos pode por tudo a perder. A arrogante soberba humana de total controle de Gaia está se aproximando muito do caos. Gaia é uma deusa da mitologia grega, que surgiu depois de outro deus, Caos. Caos e Gaia não são antropomórficos, são de difícil representação. Caos seria uma eterna queda, escura e úmida, um desespero incerto. Já Gaia seria o chão, o fim da queda e do caos, onde outros seres poderiam se abrigar e viver, a firme certeza, o calor, a superfície terrestre. É simplesmente chocante constatar que somos iguais a qualquer outra espécie do planeta e estamos sujeitos aos humores caprichosos da Terra. O próprio conhecimento científico nos faz chegar a conclusões aterrorizantes: segundo os estudiosos, 99% de todas as espécies biológicas que já existiram no planeta já foram extintas. Ops...

A mitologia grega é parte importante da história do pensamento humano. Aquela conversa do corpo ser separado da alma, por exemplo, de onde tu achas que o cristianismo tirou isso? Sim, de lá, da Grécia antiga. No século I, a Palestina tinha sido invadida e colonizada por romanos, que absorveram e ensinavam por todos os territórios que dominavam a mitologia grega. Chamamos inclusive de mitologia grego-romana, pois os nomes dos personagens mudavam, mas as histórias são as mesmas. Provavelmente, o menino Jesus cresceu escutando “ad infinitum” nas ruas aqueles mitos, como as coisas “na verdade” são, assim como nós atualmente escutamos repetidas vezes que a ciência é a verdade e a vida. O filósofo francês Edgar Morin, divide a história do pensamento em três momentos. O primeiro seria esse que Jesusinho aprendeu na rua e deu uma melhorada, seria o paradigma escolástico: a verdade está na bíblia e no que Aristóteles escreveu. Deus, ou o cosmos para os gregos, era perfeito e o centro de tudo, aqueles que não acreditassem nisso eram punidos com a fogueira para purificar o mundo das heresias. O segundo seria o paradigma mecanicista ou científico: a verdade é a experiência, se a razão for bem usada poderemos controlar tudo, até mesmo falar com Deus. Esse é o paradigma antropocêntrico que ainda estamos imersos, o que aprendemos na escola, surgiu com o renascimento e o iluminismo. Eu, como professor, tenho que me ater a ele na escola por força de lei. A constituição também o defende com unhas e dentes. No entanto, esse paradigma está vivendo seus dias de ocaso, encontrou seus limites. Por mais racionais que sejamos, não conseguimos controlar muita coisa e Gaia, nosso lar, nosso chão, caminha a passos largos para o caos. Morin já nos introduziu um terceiro paradigma: o complexo. Nesse, nem Deus nem o Ser Humano estão no centro de tudo. Não adianta rezar nem raciocinar. No centro de tudo está a natureza e suas complexas interações entre as espécies e o meio ambiente.

É doloroso constatar que não temos a proteção de um papai do céu que nos salvará ou pelo menos uma inteligência que racionalmente nos protegerá de qualquer enrascada. O paradigma complexo nos obriga a admitir que não somos melhores que uma lesma do jardim, ou pior, que um passivo gerânio comido pela lagarta. O paradigma científico, todo esse tempo que ingênua e ignorantemente acreditamos que tínhamos algum poder divino sobrenatural, talvez tenha se provado tolo ao final das contas. A ciência inteira pode ter sido só um experimento em que as hipóteses não se confirmaram.  Erramos feio na nossa avaliação inicial.  José Lutzenberger estava certo, somos um câncer no planeta com metástases em todos os continentes, uma hiperplasia maligna em Gaia. Não vamos matá-la, não temos esse poder, porém, provavelmente ela nos expelirá num pus nojento.

Observe o mesmo gráfico anterior, mas numa escala maior de tempo:



Vim morar há nove anos na Barra do Ouro maravilhado com o lugar. Suas matas, seus rios e cachoeiras, os pássaros e animais selvagens tão preservados. No entanto, eu sou um ser humano contemporâneo, imerso no paradigma mecanicista, acredito que posso controlar o meio ambiente. Me vacino e tomo medicações, não hesito em matar cobras e aranhas que porventura apareçam na minha casa, retiro espécies vegetais nativas para dar lugar a espécies exóticas que acredito serem mais bonitas, além de cavoucar o pátio todo para formar um platô mais agradável para um humano caminhar do que seria a encosta original do terreno. Eu também sofro da ingênua boa intenção dos turistas atraídos pela Zero Hora. Não quero que deixemos de nos vacinar ou tenhamos vidas mais curtas, não sou como Bolsonaro, ele ainda está no paradigma escolástico. Mas é imperativo que para nossa espécie sobreviver a própria estupidez que façamos um rigoroso controle de natalidade. Os Chineses estavam certos, usaram o bestunto: só um filho por mulher. Gaia não sustentará nosso sucesso ecológico por muito tempo.