sábado, 23 de maio de 2020


Sobre meritocracia

Quando tinha uns seis anos, minha mãe comprou uma planta que se encolhia toda ao ser tocada, tinha um nome curioso que nos atraia ainda mais: dormideira. Nós ficávamos hipnotizados olhando aquela mágica natural. Passávamos bons momentos a tocando para pô-la a “dormir”, olhando ela se fechar. Bebel nos avisou que ela tinha uma flor muito bonita. Porém, nem chegamos a conhecer a aparência de sua floração, logo a dormideira sumiu, não aguentou o convívio com aquele meio ambiente tão invasivo: crianças. Aquela estratégia de defesa para desestimular predadores não servia para nós, a dormideira era delicada demais para viver próxima a mim e minhas irmãs. Já a beleza das rosas conhecíamos bem, eram mais resistentes à nossa companhia, seus espinhos eram realmente eficazes para espantar nossa predação. Outra planta que nos atraia da mesma forma e se perpetuou, apesar de nosso assédio, minha mãe chamava de beijinho de frade. Essa produzia flores coloridas e uma baguinha verde que se tocada, ainda que delicadamente, explodia e arremessava em todas as direções sua semente. Quanto mais brincávamos com ela, mais ela se reproduzia. A diversidade de estratégias de sobrevivência é um bom exemplo da riqueza da natureza.
Qualquer agricultor sabe, as plantas não reagem da mesma forma aos elementos do meio ambiente. O agrião gosta do banhado, o milho do úmido, já um cacto prefere a secura. Algumas plantas se dão bem em terreno arenoso, outras precisam de muito húmus. Tem até as plantas que crescem em terreno pedregoso ou aquelas resilientes que mesmo arrancadas com raíz e tudo sobrevivem. Se você plantar espécies diferentes no mesmo terreno, expostas a mesma radiação solar e com a mesma irrigação e adubação, algumas plantas prosperarão mais do que outras e algumas até perecerão. Isso é a natureza fazendo sua seleção natural. Conforme forem crescendo, os rizomas vão se cruzando e algumas mais agressivas, ainda que inadvertidamente, vão sugando nutrientes de outras. Algumas vêm vigorosas e sadias e outras se abatem e empalidecem, apesar de obterem, teoricamente, os mesmos recursos. Todas têm condições de crescerem sadias, mas algumas só sobreviverão se afastadas de outras.
Os grandes empresários do agronegócio, latifundiários que praticam a agricultura industrial, usam máquinas para que o terreno seja uniformemente tratado. Todas as plantas receberão o mesmo tratamento, a terra será igualmente afofada, a semeadura é feita em intervalos milimetricamente medidos, o inço, os fungos e os insetos que possam oferecer algum risco as plantas são mortos com produtos químicos que não afetam a cultura pretendida. Além disso, as sementes são clonadas, para que sejam todas iguais e produzam o máximo possível. Ainda assim, mesmo diante desse fantástico aparato tecnológico para a homogeneização das plantas, nenhuma é igual a outra e cada uma produz de forma diferenciada. Há diversidade se impõe, apesar dos esforços humanos pelo padrão da excelência.
Recebi a visita da agente de saúde da comunidade. Enquanto ela perguntava se eu passava bem, preocupada com a covid-19 e a dengue, conversávamos sobre amenidades de vizinhança, pois ela também é moradora da Barra do Ouro. A trabalhadora da linha de frente da pandemia me contou de suas filhas gêmeas. Como são bivitelinas, não tem nada em comum, nem no físico nem na personalidade e isso já está evidente aos dois anos de idade. Isso me chamou a atenção, pois as duas crianças recebem o mesmo cuidado e vivem no mesmo meio ambiente, tem praticamente as mesmas experiências.  Pensei então em perguntar para alguém que tem gêmeos univitelinos para saber como é com clones genéticos. Mandei mensagem para outra amiga que tem gêmeos idênticos para indagar e a resposta foi praticamente a mesma, ela relata diferenças tão importantes nas atitudes e preferências individuais que as crianças parecem ser de famílias diferentes. Os casos de gêmeos são preciosos para estudos sociais, pois, a princípio, tiraria das variáveis analisadas o fator genético. Quando se estuda irmãos não gemelares de mesmo pai e mesma mãe, as diferenças ficam ainda mais gritantes. Independente de sexo ou idade, as relações de dominância se estabelecem desde a mais tenra idade. Ao se criarem juntos, os rizomas se entrelaçam e alguns mais agressivos, ainda que inadvertidamente, sugam os elementos necessários a vida de outros fazendo com que uns sejam tóxicos para os outros. Essa advertência está nas primeiras páginas de qualquer manual de psicologia familiar. Alguns irmãos tem a estratégia de se fechar sob stress como uma dormideira, outros se sentem até estimulados ao serem pressionados, como um beijinho de frade e outros são intocáveis, como uma rosa.  
Por obrigação profissional, sou professor de Educação Física, reflito muito sobre o fenômeno social do esporte. No esporte, a igualdade é um valor importante na organização de eventos. Adultos não competem contra crianças, homens não competem contra mulheres, deficientes não competem contra não deficientes. Os participantes são organizados em categorias e isso é tido como justo. Por mais disposto que esteja, uma criança não terá autorização para se confrontar contra um adulto, as regras proibem. Mesmo entre adultos se procura igualar por algum critério. Por exemplo, o peso do atleta é geralmente um critério utilizado nas lutas, os mais pesados não competem contra os mais leves. A competência na prática é outro critério muito utilizado. Somente os melhores times permanecem na “série A” do campeonato brasileiro de futebol, os campeões nacionais de ciclismo defendem o seu país no campeonato mundial e assim é em todos os outros esportes: os melhores se confrontam com os muito bons, os mais ou menos com os meia boca e os ruins com os pereba. Mesmo diante de tal aparato legislativo para garantir a igualdade no esporte, a pretenção segue sendo uma falácia, distorções importantes acontecem, porque é impossível ser igual mesmo entre gêmeos criados na mesma família ou sementes clonadas plantadas no mesmo terreno. Se houvesse realmente uma igualdade possível, o empate seria o resultado de todas as competições.
A intenção das regras que tentam criar essa “igualdade” falaciosa entre os adversários esportivos, é para defender outro valor mais importante, o mais importante de todos para o esporte: o mérito. O esporte busca premiar aqueles que tem as melhores qualidades para vencer: tem a genética melhor e/ou que se esforçaram mais para extrair de seu corpo não tão apto uma excelência na prática esportiva. Esse é um dogma quase religioso para os adeptos da competição: a meritocracia. Não por acaso, a meritocracia também é defendida por capitalistas. Os defensores do livre mercado também insistem que as pessoas tem liberdade para empreender e bastaria um grande esforço no trabalho para “vencer na vida”. Perceba que os capitalistas também admitem que haja os perdedores na vida, aqueles que, segundo as teorias liberais, não se esforçaram o suficiente. Na meritocracia, se os vencedores o são por mérito individual, os perdedores também. A culpa da derrota nos esportes ou na sociedade capitalista sempre recai sobre o indivíduo e não na perversidade do sistema. É claro que tanto nos esportes como na sociedade, quem inventa as regras são os dominantes, os vencedores, de forma que se perpetuem no poder. Um dos brasileiros mais asquerosos e repugnantes de todos os tempos, Ayrton Senna, grande garoto propaganda da meritocracia, uma ocasião em que foi parabenizado por tirar segundo lugar no campeonato, irritado, falou: “O segundo é o primeiro dos perdedores.” Ou seja, o maior e melhor “loser”, palavra em inglês que significa perdedor, pesadelo para um cidadão americano. Ele estava ensinando a população brasileira a ideologia capitalista: se tu não venceres na vida, tu és um bosta. O que acaba ocorrendo, é que a exclusão é a regra tanto na sociedade quanto nos esportes e todos nos achamos bosta por não vencer.
A falácia da igualdade e o valor moral da meritocracia são adotados pelos dominantes com entusiasmo. Não é por acaso que os donos dos meios de produção se disponham a patrocinar eventos esportivos, por mais caros que sejam, pois os esportes são uma metáfora perfeita para ensinar a ideologia capitalista bem didaticamente. A brincadeira dos esportes diverte e distrai os participantes desde a infância. Logo a ideologia meritocrática fica capilarizada em todas as mentes. Apesar do discurso de “igualdade de oportunidades”, o que se verifica na realidade é que a sociedade meritocrática exclui despudoradamente. Numa competição de duzentos corredores, somente um vencerá, os outros todos baixarão suas cabeças e refletirão sobre seus erros ainda que não tenham feito nenhum. Numa fábrica com duzentos funcionários, o único que enriquece é o dono, por mais esforços que todos os outros façam, jamais perceberão lucros como os do patrão. No entanto, “se a educação não for libertadora, o sonho do oprimido é se tornar um opressor”, já nos alertava o patrono da educação nacional, Paulo Freire. A ideologia da meritocracia é incorporada por todos os habitantes de uma sociedade e é tão insidiosa e capilar que penetra no seio das famílias, fazendo aflorar castas diferenciadas por mérito até mesmo entre irmãos. Nossa educação não foi libertadora, o resultado é desastroso, porque a igualdade de oportunidades também é fictícia mesmo entre gêmeos univitelinos. Obrigatoriamente, os rizomas vão se entrelaçar, mas alguns indivíduos são dormideiras, outros rosas e outros beijinhos de frade. Mesmo numa família, a exclusão aflorará e a alguns só será permitido jogar na segunda divisão.
Nos últimos dois séculos, a população humana cresceu tanto que se tornou uma ameaça a vida de todas as outras. Basta olhar o gráfico desse crescimento para que constatemos que há algo errado nisso. Esse sucesso se deve, entre outras coisas, ao fato que criamos uma cultura de preservação da vida humana, qualquer que seja. O processo de sofisticação moral foi lento, mas sempre se afastando da seleção natural, a lei da selva, a lei da competição. A cooperação triunfou: tratamos doentes ainda que terminais, protegemos crianças, cuidamos de idosos, preservamos culturas ancestrais indígenas, não discriminamos por cor de pele ou crença, criamos ações afirmativas para deficientes, defendemos as mulheres de homens agressivos. O leão não é o rei da selva, mas o ser humano é. Veja que nossa espécie não é muito antiga, nem é a mais forte, tampouco a mais rápida. Vivemos no mesmo terreno e com a mesma radiação solar que outras espécies. Não temos unhas afiadas ou presas pontiagudas, nem carapaça protetora ou audição aguçada. O Homo Sapiens se tornou dominante na natureza por adotar uma estratégia de sobrevivência procurando cooperar com seus semelhantes, mesmo os mais débeis. Só temos a arrogância de pensar que somos a espécie mais inteligente. Porém, há debate sobre isso, principalmente agora que essa suposta inteligência está levando a extinção de várias espécies de animais e plantas e ameaçando nossa própria existência com a diminuição de diversidade biológica. Muitas vezes erramos, mas sempre com a boa intenção de salvar vidas humanas.
Muito provavelmente tenhamos que criar mecanismos de diminuição da população humana, se o mundo não nos matar antes, mas não como gostaria o atual presidente brasileiro, o inominável, de forma meritocrática: quem não tiver histórico de atleta ou juventude, que morra. Qualquer ser humano tem que ser ajudado a se desenvolver em sua plena potencialidade, pois mesmo as mais delicadas dormideiras merecem viver, tu nunca sabes que lindas flores podem produzir se as sufocar antes.

terça-feira, 5 de maio de 2020


Inço
Minha última esposa era de origem alemã, de uma cidadezinha do interior do noroeste gaúcho, sua família tinha uma pequena propriedade agrícola. Desde que seu pai morreu, sua mãe arrendava a terra para plantadores de soja, a mesma atividade que era até ali exercida por todos da comunidade, inclusive eles. A soja era o grande assunto da região. Era fácil entender porque, bastava dar uma voltinha pelas estradas entre um vilarejo e outro que se percebia uma esmagadora preferência pela cultura daquele feijão chinês. O entusiasmo pela planta asiática era devido ao fato que rendia dinheiro mais do que qualquer outra lavoura. O horizonte na região era um infinito campo da leguminosa. Para mim, um aprendiz neorural, a situação era curiosa. O Brasil não tem a cultura de comer soja, ninguém come arroz com soja ou bolinho de soja. No máximo, umas gotas de óleo de soja a cada refeição. Para que tanta soja? Aos poucos, fui compreendendo.  Conforme minhas dúvidas surgiam nas rodas de chimarrão, qualquer criança tinha a resposta na ponta da língua. O grande diferencial daquela cultura exótica era a quantidade de proteína que seu grão contém. A soja é servida para animais na forma de ração, para que cresçam mais rápido. Assim, vacas, porcos, perus e galinhas, confinados para que não desperdicem energias caminhando, são embuchados com farelo de soja para virar bife rapidamente. Mas eu, na minha ingenuidade urbana, seguia intrigado. Não tem tanta vaca assim! Realmente não, mas exportamos a soja para que vacas em lugares onde não tem tanta água, sol ou espaço como aqui, possam ter criações grandes de animais. Na verdade, exportamos sol e água na forma dessa importante “commodite” agrícola. Claro que tanta soja acaba atraindo um exército de insetos e fungos que a acham apetitosa. A monocultura exige então, um oceano de pesticidas químicos para que a produção chegue ao coxo dos bichos que nós achamos apetitosos. A agroindústria que esse grão gera movimenta a economia de forma poderosa. Muitas vezes, a conversa com familiares de minha ex girava em torno da admiração que tinham com a opulenta riqueza de alguns vizinhos que tinham mais terras. Colheitadeiras, tratores, plantadeiras, caminhonetes, silos, todos com valores estratosféricos, que para um professor como eu são até obscenos. O desejo intenso dos habitantes daquela localidade é obter mais recursos para adquirir mais terras e máquinas para extrair mais recursos num infinito círculo vicioso que se fecha em si. Pouco importa que a soja é uma planta exótica, que a ganância por mais espaço para plantação exija a derrubada de florestas nativas e a extinção da fauna local, que os pesticidas sejam levados pelas chuvas e pelo vento contaminando os rios e o ar que abastecem a própria população. Há que se produzir. A soja, na China e no Japão, é uma planta maravilhosa, com propriedades nutricionais riquíssimas, mas aqui no Brasil, longe de seu meio ambiente natural, é um inço invasor que está destruindo a biodiversidade do país. Já tomou grande parte da amazônia, caatinga, cerrado, pampa, pantanal e avança em velocidade de praga bíblica. Eu e minha ex problematizávamos muitas questões com os parentes dela, mas erámos vistos como loucos. Qualquer ser vivo luta para sobreviver diante do meio ambiente em que se encontra, os descendentes de alemães não são diferentes, lá havia um grande estímulo ao plantio de soja e uma maior diversidade de culturas seria até hostil a vida dos moradores daquela cidadezinha gaúcha.
Separei da alemoa mas não do desejo de buscar uma vida mais saudável. Um amigo biólogo me falou da propriedade que adquiriu no Rio do Ouro em Maquiné, era uma terra bem barata pela precariedade de acesso. Não tinha estradas, pontes ou mesmo luz. Me interessei porque a localidade prometia natureza intocada, água potável abundante e silêncio, coisas que me são muito caras e os recursos de um professor são sempre limitadíssimos. Ali cheguei com muita disposição para construir uma casa sustentável e produzir meus próprios alimentos. A ignorância de um neorural logo mostrou suas garras, fui aprendendo duramente conhecimentos que na roça todos sabem, mas para mim eram objetos de estudo formal. Rocei um eito e fiquei feliz: pronto, agora está roçado. Mas meu amigo biólogo logo me frustrou, daqui um mês estaria tudo crescido de novo. Tomei o cuidado de preservar uma planta que achei lindíssima, com grandes flores brancas que perfumavam todo o ambiente, aqui chamada de caeté, mas em outros lugares conhecida como lírio do brejo. Ele me disse que aquilo era um inço desgraçado, uma planta exótica, que era quase impossível de remover e tinha mudado definitivamente a flora e a fauna local. Em toda beira de rio ou grota, o caeté tinha invadido e tomado conta, mas achei que era só uma bela planta nativa, estava tão integrada ao meio ambiente. Aos poucos fui percebendo outras invasões mais óbvias, mas que quando o ser humano urbano vê, desavisado, nem percebe. Grandes plantações de eucalipto e pinus que crescem rápido e tem troncos retos, foram as preferidas pelos agricultores que tiveram que abandonar as colônias depois do surgimento das leis ambientais que proibiam a queimada. Mesmo algumas daquelas lindas árvores floridas no meio da floresta também não eram nativas, mas sim trazidas de longe, a uva do Japão. Os próprios moradores eram pessoas de fora, como eu, exóticos poloneses, italianos e alemães, que estando há muito mais tempo ali, já estavam integrados a paisagem, como a uva do Japão ou os eucaliptos. Como qualquer inço, eu estava determinado a sobreviver ali naquele meio ambiente e, com grande dificuldade, consegui firmar raízes.
Como agricultor, percebi que morreria. Meu sistema nervoso buscou alternativas de recursos energéticos para meu empreendimento. Trabalhei numa serraria onde me foi possível entender para que tantas plantações de pinus e eucaliptos: rendem muito dinheiro para quem tem uma terrinha. A minha história de intenso trabalho braçal para garantir o sustento era agora igual a qualquer vizinho, apesar de minha total ignorância em relação aos assuntos da terra. Mas na serraria também ganhava muito pouco, eu teria que buscar alternativas melhores. Fiz concurso do estado para voltar a ser professor, profissão que havia decidido abandonar. Com a estabilidade financeira vinda de meu salário de docente, consegui os recursos energéticos necessários para prosseguir naquele sonho de morar no mato. Como educador profissional, percebi que o ser humano que aqui reside, em sua maioria, é de extrema rudeza, necessária para sobreviver em meio ambiente tão hostil. Tive alunos e alunas que com dez anos já tinham as mãos calejadas e feridas do árduo trabalho com foices e enxadas. A escola era lamentada por eles e seus pais como um mal necessário para ter acesso aos recursos do programa federal Bolsa Família. Troquei de escola atrás de uma remuneração melhor fazendo um concurso do município de Osório. Lá encontrei alunos indígenas, Mbyá Guarani, educados e silenciosos, muito diferentes dos alunos comuns. Eles, como as plantas nativas, mal abrem a boca, talvez sufocados por seres humanos exóticos, vindos de outros meio ambientes, lutam por um lugarzinho ao sol, com grande dificuldade.  
Tenho uma linda prima por parte de pai, branca, com faiscantes olhos verdes e sobrenomes europeus, que me revelou o desejo de um dia fazer como fiz e morar no mato com sua filhinha e seu companheiro. O que será que atrai nossos sistemas nervosos para cá, será que ela também busca o silêncio, a água potável e o contato intenso com a natureza como eu busquei? Eu a alerto para as dificuldades de sustentabilidade para inços como nós num ambiente tão hostil. Ela está ciente e me convida a ler seu TCC de sociologia. Me surpreendi com o conteúdo, um estudo sobre as escolas indígenas Mbyá Guarani! A leitura desse texto foi caleidoscópica e me fez refletir muito sobre minha vida, como cidadão brasileiro, como professor, como ser humano. Aprendi muito com seu trabalho de conclusão de curso e até me constrangi, há anos dou aulas para alunos indígenas, como ainda não sei determinadas palavras guarani que ela cita? Talvez a escola sendo uma indústria, com produção em massa de alunos, isolados do meio ambiente natural confinados em salas de aula, com ênfase na homogeneização dos conteúdos ministrados, me tenha impedido de conhecer suas especificidades. A escola é uma ferramenta que inventamos, ainda não é muito boa, mas foi o melhor que a humanidade conseguiu fazer até aqui. Eu como professor sou um pouco como a soja, uma agroindústria pedagógica invasora, atropelo com minha cultura os espécimes nativos. Mbyáreko, o modo de vida guarani, está em obrigatório processo constante de mudança diante do sufocamento que nós, plantas exóticas, exercemos sobre as comunidades originais. Me identifiquei com seus questionamentos e preocupações, sempre temo cometer gafes étnicas com meus alunos indígenas. Com certeza eu as cometo, mas nem fico sabendo, pois eles não reclamam. No entanto, como minha prima, tento ser delicado e respeitador de sua cultura. Como ela, chego as mesmas conclusões, a escola ajuda a mitigar as mazelas do encontro de culturas. Aos guaranis talvez só reste tentar adaptar-se a invasão e a escola é uma ferramenta importante no processo.
O meio ambiente natural está em constante mutação. Quando o primeiro branco europeu chegou por aqui, o lugar era conhecido como Pindorama e os indígenas já tinham exterminado várias espécies de animais. Eles também um dia foram um inço invasor e destruidor. Há quem diga que chegaram aqui há cinquenta mil anos. Você já ouviu falar em bichos como a preguiça gigante? Com a chegada de meus ascendentes e de minha prima de olhos verdes há quinhentos anos, Pindorama virou Brasil e se modificou ainda mais. O Rio do Ouro já não é o mesmo com caetés e eucaliptos, muitas espécies foram extintas por não encontrar mais os recursos necessários a sua sobrevivência. A minha simples chegada a Barra do Ouro, com a melhor das intenções, já modificou o meio ambiente local. Quebrei pedras, cortei vegetação que não me era útil, plantei as que me agradam, construí uma casa, cavei valas para drenar o terreno, levantei cercas e muros, interagi com outros humanos que aqui habitavam antes de mim, dei opiniões, critiquei, fui criticado, debati temas diversos, discuti, argumentei. Eu modifiquei tudo por aqui, desde a biosfera, até a antroposfera passando pela litosfera e até a atmosfera do lugar, alegremente toco fogo em lenha para me aquecer no inverno. E a reciproca é verdadeira, Newton não errou na sua terceira lei da mecânica, o meio ambiente me modificou com a mesma intensidade e em sentido contrário. Mas isso é a vida, ninguém fica igual do nascimento a morte. Ao contrário, a vida é como um filme cinematográfico antigo, vinte quatro quadros por segundo e nenhum é igual ao outro.
A ciência é maravilhosa, produz coisas fantásticas como vacinas e TCCs de sociologia preocupados com a preservação de culturas nativas ancestrais. Mas ao mesmo tempo, produz morte e devastação com armas e lavouras de soja e seus pesticidas. Tudo parece sempre ter um lado sombrio. Examinemos outro exemplo: a democracia numa república moderna produz muita igualdade, mas também pode produzir atrocidades, como o nazismo. Hitler foi sempre democraticamente eleito e tomava suas decisões consultando a população em plebiscitos. Se o eleitor é mal educado, fará escolhas equivocadas. Mas tanto ciência como democracia, assim como a escola, são as melhores ferramentas que inventamos até hoje, por enquanto, foi o que deu para arrumar. Muitas vezes, temo ser um mal professor. Temo não ter tempo suficiente ou habilidade para ensinar adequadamente meus alunos as questões pertinentes da vida em sociedade. Temo não saber eu mesmo quais são essas questões pertinentes. Observo claramente que a maioria dos eleitores tem escolhido mal seus representantes. Também percebo uma preferência pela luta inescrupulosa por recursos financeiros e pouco valor é dado aos valores humanos altruístas de solidariedade e preservação do meio ambiente para futuras gerações. É a minha avaliação, posso estar errado. Mas igual, me sinto culpado como educador quando o resultado da eleição é desastroso como tem sido ou quando a comunidade onde trabalho opta pela mesquinha luta por recursos financeiros em prejuízo da vida. Me dói.
Um novo vírus corona está assombrando a humanidade atualmente. Com o lockdown de algumas sociedades diante da pandemia, as populações perceberam assombradas que o céu é azul e as águas transparentes. Animais selvagens voltaram a ser vistos em ambientes urbanos. Esse inço invasor de nossos corpos também tem seu lado positivo. Um grande questionamento corre a boca pequena, o que fizemos de nossas vidas? Todo mundo foi obrigado a ficar em casa refletindo por algum momento. Observo meus vizinhos e muitas vezes os considero incrivelmente ignorantes, mas também percebo minhas limitações e sei que eles tem opiniões a meu respeito que muitas vezes não são nada boas. Talvez me achem louco, como os familiares de minha ex achavam. Me chamam de hippie, porque é a única caixinha que eles conhecem que podem me encaixar. Alguém que não é descendente de colonos vir morar no mato só pode ser um hippie. Como bom hippie, gosto de citar o grande filósofo Lulu Santos que cantava que a vida vem em ondas como o mar e que a humanidade caminha a passos de formiguinha e sem vontade. Novos vírus aparecem a todo instante, a maioria nem ficamos sabendo, nosso sistema imunológico está habituado a lidar com tudo: fungos, bactérias, protozoários, vírus, presidentes fascistas, germes em geral. Temos defesas excelentes. Às vezes um individuo ou outro sucumbe a algum vírus ou vota na pessoa errada, mas nossa espécie é resistente, se adapta e sobrevive. O mundo dá muitas voltas e se transforma. Acredito que um dia minha prima dará aulas de antropologia na escolinha da Barra do Ouro, os descendentes de alemães do noroeste gaúcho repensarão sua agricultura, o meio ambiente se adaptará a minha presença na vila como se adaptou aos caetés. Como os indígenas e seu Mbyáreko, o modo de vida da aldeia global se adaptará e criaremos anticorpos, alguma vacina e sistemas de ensino que nos imunize de presidentes inço como o atual e nos livre dessa pandemia.