terça-feira, 5 de maio de 2020


Inço
Minha última esposa era de origem alemã, de uma cidadezinha do interior do noroeste gaúcho, sua família tinha uma pequena propriedade agrícola. Desde que seu pai morreu, sua mãe arrendava a terra para plantadores de soja, a mesma atividade que era até ali exercida por todos da comunidade, inclusive eles. A soja era o grande assunto da região. Era fácil entender porque, bastava dar uma voltinha pelas estradas entre um vilarejo e outro que se percebia uma esmagadora preferência pela cultura daquele feijão chinês. O entusiasmo pela planta asiática era devido ao fato que rendia dinheiro mais do que qualquer outra lavoura. O horizonte na região era um infinito campo da leguminosa. Para mim, um aprendiz neorural, a situação era curiosa. O Brasil não tem a cultura de comer soja, ninguém come arroz com soja ou bolinho de soja. No máximo, umas gotas de óleo de soja a cada refeição. Para que tanta soja? Aos poucos, fui compreendendo.  Conforme minhas dúvidas surgiam nas rodas de chimarrão, qualquer criança tinha a resposta na ponta da língua. O grande diferencial daquela cultura exótica era a quantidade de proteína que seu grão contém. A soja é servida para animais na forma de ração, para que cresçam mais rápido. Assim, vacas, porcos, perus e galinhas, confinados para que não desperdicem energias caminhando, são embuchados com farelo de soja para virar bife rapidamente. Mas eu, na minha ingenuidade urbana, seguia intrigado. Não tem tanta vaca assim! Realmente não, mas exportamos a soja para que vacas em lugares onde não tem tanta água, sol ou espaço como aqui, possam ter criações grandes de animais. Na verdade, exportamos sol e água na forma dessa importante “commodite” agrícola. Claro que tanta soja acaba atraindo um exército de insetos e fungos que a acham apetitosa. A monocultura exige então, um oceano de pesticidas químicos para que a produção chegue ao coxo dos bichos que nós achamos apetitosos. A agroindústria que esse grão gera movimenta a economia de forma poderosa. Muitas vezes, a conversa com familiares de minha ex girava em torno da admiração que tinham com a opulenta riqueza de alguns vizinhos que tinham mais terras. Colheitadeiras, tratores, plantadeiras, caminhonetes, silos, todos com valores estratosféricos, que para um professor como eu são até obscenos. O desejo intenso dos habitantes daquela localidade é obter mais recursos para adquirir mais terras e máquinas para extrair mais recursos num infinito círculo vicioso que se fecha em si. Pouco importa que a soja é uma planta exótica, que a ganância por mais espaço para plantação exija a derrubada de florestas nativas e a extinção da fauna local, que os pesticidas sejam levados pelas chuvas e pelo vento contaminando os rios e o ar que abastecem a própria população. Há que se produzir. A soja, na China e no Japão, é uma planta maravilhosa, com propriedades nutricionais riquíssimas, mas aqui no Brasil, longe de seu meio ambiente natural, é um inço invasor que está destruindo a biodiversidade do país. Já tomou grande parte da amazônia, caatinga, cerrado, pampa, pantanal e avança em velocidade de praga bíblica. Eu e minha ex problematizávamos muitas questões com os parentes dela, mas erámos vistos como loucos. Qualquer ser vivo luta para sobreviver diante do meio ambiente em que se encontra, os descendentes de alemães não são diferentes, lá havia um grande estímulo ao plantio de soja e uma maior diversidade de culturas seria até hostil a vida dos moradores daquela cidadezinha gaúcha.
Separei da alemoa mas não do desejo de buscar uma vida mais saudável. Um amigo biólogo me falou da propriedade que adquiriu no Rio do Ouro em Maquiné, era uma terra bem barata pela precariedade de acesso. Não tinha estradas, pontes ou mesmo luz. Me interessei porque a localidade prometia natureza intocada, água potável abundante e silêncio, coisas que me são muito caras e os recursos de um professor são sempre limitadíssimos. Ali cheguei com muita disposição para construir uma casa sustentável e produzir meus próprios alimentos. A ignorância de um neorural logo mostrou suas garras, fui aprendendo duramente conhecimentos que na roça todos sabem, mas para mim eram objetos de estudo formal. Rocei um eito e fiquei feliz: pronto, agora está roçado. Mas meu amigo biólogo logo me frustrou, daqui um mês estaria tudo crescido de novo. Tomei o cuidado de preservar uma planta que achei lindíssima, com grandes flores brancas que perfumavam todo o ambiente, aqui chamada de caeté, mas em outros lugares conhecida como lírio do brejo. Ele me disse que aquilo era um inço desgraçado, uma planta exótica, que era quase impossível de remover e tinha mudado definitivamente a flora e a fauna local. Em toda beira de rio ou grota, o caeté tinha invadido e tomado conta, mas achei que era só uma bela planta nativa, estava tão integrada ao meio ambiente. Aos poucos fui percebendo outras invasões mais óbvias, mas que quando o ser humano urbano vê, desavisado, nem percebe. Grandes plantações de eucalipto e pinus que crescem rápido e tem troncos retos, foram as preferidas pelos agricultores que tiveram que abandonar as colônias depois do surgimento das leis ambientais que proibiam a queimada. Mesmo algumas daquelas lindas árvores floridas no meio da floresta também não eram nativas, mas sim trazidas de longe, a uva do Japão. Os próprios moradores eram pessoas de fora, como eu, exóticos poloneses, italianos e alemães, que estando há muito mais tempo ali, já estavam integrados a paisagem, como a uva do Japão ou os eucaliptos. Como qualquer inço, eu estava determinado a sobreviver ali naquele meio ambiente e, com grande dificuldade, consegui firmar raízes.
Como agricultor, percebi que morreria. Meu sistema nervoso buscou alternativas de recursos energéticos para meu empreendimento. Trabalhei numa serraria onde me foi possível entender para que tantas plantações de pinus e eucaliptos: rendem muito dinheiro para quem tem uma terrinha. A minha história de intenso trabalho braçal para garantir o sustento era agora igual a qualquer vizinho, apesar de minha total ignorância em relação aos assuntos da terra. Mas na serraria também ganhava muito pouco, eu teria que buscar alternativas melhores. Fiz concurso do estado para voltar a ser professor, profissão que havia decidido abandonar. Com a estabilidade financeira vinda de meu salário de docente, consegui os recursos energéticos necessários para prosseguir naquele sonho de morar no mato. Como educador profissional, percebi que o ser humano que aqui reside, em sua maioria, é de extrema rudeza, necessária para sobreviver em meio ambiente tão hostil. Tive alunos e alunas que com dez anos já tinham as mãos calejadas e feridas do árduo trabalho com foices e enxadas. A escola era lamentada por eles e seus pais como um mal necessário para ter acesso aos recursos do programa federal Bolsa Família. Troquei de escola atrás de uma remuneração melhor fazendo um concurso do município de Osório. Lá encontrei alunos indígenas, Mbyá Guarani, educados e silenciosos, muito diferentes dos alunos comuns. Eles, como as plantas nativas, mal abrem a boca, talvez sufocados por seres humanos exóticos, vindos de outros meio ambientes, lutam por um lugarzinho ao sol, com grande dificuldade.  
Tenho uma linda prima por parte de pai, branca, com faiscantes olhos verdes e sobrenomes europeus, que me revelou o desejo de um dia fazer como fiz e morar no mato com sua filhinha e seu companheiro. O que será que atrai nossos sistemas nervosos para cá, será que ela também busca o silêncio, a água potável e o contato intenso com a natureza como eu busquei? Eu a alerto para as dificuldades de sustentabilidade para inços como nós num ambiente tão hostil. Ela está ciente e me convida a ler seu TCC de sociologia. Me surpreendi com o conteúdo, um estudo sobre as escolas indígenas Mbyá Guarani! A leitura desse texto foi caleidoscópica e me fez refletir muito sobre minha vida, como cidadão brasileiro, como professor, como ser humano. Aprendi muito com seu trabalho de conclusão de curso e até me constrangi, há anos dou aulas para alunos indígenas, como ainda não sei determinadas palavras guarani que ela cita? Talvez a escola sendo uma indústria, com produção em massa de alunos, isolados do meio ambiente natural confinados em salas de aula, com ênfase na homogeneização dos conteúdos ministrados, me tenha impedido de conhecer suas especificidades. A escola é uma ferramenta que inventamos, ainda não é muito boa, mas foi o melhor que a humanidade conseguiu fazer até aqui. Eu como professor sou um pouco como a soja, uma agroindústria pedagógica invasora, atropelo com minha cultura os espécimes nativos. Mbyáreko, o modo de vida guarani, está em obrigatório processo constante de mudança diante do sufocamento que nós, plantas exóticas, exercemos sobre as comunidades originais. Me identifiquei com seus questionamentos e preocupações, sempre temo cometer gafes étnicas com meus alunos indígenas. Com certeza eu as cometo, mas nem fico sabendo, pois eles não reclamam. No entanto, como minha prima, tento ser delicado e respeitador de sua cultura. Como ela, chego as mesmas conclusões, a escola ajuda a mitigar as mazelas do encontro de culturas. Aos guaranis talvez só reste tentar adaptar-se a invasão e a escola é uma ferramenta importante no processo.
O meio ambiente natural está em constante mutação. Quando o primeiro branco europeu chegou por aqui, o lugar era conhecido como Pindorama e os indígenas já tinham exterminado várias espécies de animais. Eles também um dia foram um inço invasor e destruidor. Há quem diga que chegaram aqui há cinquenta mil anos. Você já ouviu falar em bichos como a preguiça gigante? Com a chegada de meus ascendentes e de minha prima de olhos verdes há quinhentos anos, Pindorama virou Brasil e se modificou ainda mais. O Rio do Ouro já não é o mesmo com caetés e eucaliptos, muitas espécies foram extintas por não encontrar mais os recursos necessários a sua sobrevivência. A minha simples chegada a Barra do Ouro, com a melhor das intenções, já modificou o meio ambiente local. Quebrei pedras, cortei vegetação que não me era útil, plantei as que me agradam, construí uma casa, cavei valas para drenar o terreno, levantei cercas e muros, interagi com outros humanos que aqui habitavam antes de mim, dei opiniões, critiquei, fui criticado, debati temas diversos, discuti, argumentei. Eu modifiquei tudo por aqui, desde a biosfera, até a antroposfera passando pela litosfera e até a atmosfera do lugar, alegremente toco fogo em lenha para me aquecer no inverno. E a reciproca é verdadeira, Newton não errou na sua terceira lei da mecânica, o meio ambiente me modificou com a mesma intensidade e em sentido contrário. Mas isso é a vida, ninguém fica igual do nascimento a morte. Ao contrário, a vida é como um filme cinematográfico antigo, vinte quatro quadros por segundo e nenhum é igual ao outro.
A ciência é maravilhosa, produz coisas fantásticas como vacinas e TCCs de sociologia preocupados com a preservação de culturas nativas ancestrais. Mas ao mesmo tempo, produz morte e devastação com armas e lavouras de soja e seus pesticidas. Tudo parece sempre ter um lado sombrio. Examinemos outro exemplo: a democracia numa república moderna produz muita igualdade, mas também pode produzir atrocidades, como o nazismo. Hitler foi sempre democraticamente eleito e tomava suas decisões consultando a população em plebiscitos. Se o eleitor é mal educado, fará escolhas equivocadas. Mas tanto ciência como democracia, assim como a escola, são as melhores ferramentas que inventamos até hoje, por enquanto, foi o que deu para arrumar. Muitas vezes, temo ser um mal professor. Temo não ter tempo suficiente ou habilidade para ensinar adequadamente meus alunos as questões pertinentes da vida em sociedade. Temo não saber eu mesmo quais são essas questões pertinentes. Observo claramente que a maioria dos eleitores tem escolhido mal seus representantes. Também percebo uma preferência pela luta inescrupulosa por recursos financeiros e pouco valor é dado aos valores humanos altruístas de solidariedade e preservação do meio ambiente para futuras gerações. É a minha avaliação, posso estar errado. Mas igual, me sinto culpado como educador quando o resultado da eleição é desastroso como tem sido ou quando a comunidade onde trabalho opta pela mesquinha luta por recursos financeiros em prejuízo da vida. Me dói.
Um novo vírus corona está assombrando a humanidade atualmente. Com o lockdown de algumas sociedades diante da pandemia, as populações perceberam assombradas que o céu é azul e as águas transparentes. Animais selvagens voltaram a ser vistos em ambientes urbanos. Esse inço invasor de nossos corpos também tem seu lado positivo. Um grande questionamento corre a boca pequena, o que fizemos de nossas vidas? Todo mundo foi obrigado a ficar em casa refletindo por algum momento. Observo meus vizinhos e muitas vezes os considero incrivelmente ignorantes, mas também percebo minhas limitações e sei que eles tem opiniões a meu respeito que muitas vezes não são nada boas. Talvez me achem louco, como os familiares de minha ex achavam. Me chamam de hippie, porque é a única caixinha que eles conhecem que podem me encaixar. Alguém que não é descendente de colonos vir morar no mato só pode ser um hippie. Como bom hippie, gosto de citar o grande filósofo Lulu Santos que cantava que a vida vem em ondas como o mar e que a humanidade caminha a passos de formiguinha e sem vontade. Novos vírus aparecem a todo instante, a maioria nem ficamos sabendo, nosso sistema imunológico está habituado a lidar com tudo: fungos, bactérias, protozoários, vírus, presidentes fascistas, germes em geral. Temos defesas excelentes. Às vezes um individuo ou outro sucumbe a algum vírus ou vota na pessoa errada, mas nossa espécie é resistente, se adapta e sobrevive. O mundo dá muitas voltas e se transforma. Acredito que um dia minha prima dará aulas de antropologia na escolinha da Barra do Ouro, os descendentes de alemães do noroeste gaúcho repensarão sua agricultura, o meio ambiente se adaptará a minha presença na vila como se adaptou aos caetés. Como os indígenas e seu Mbyáreko, o modo de vida da aldeia global se adaptará e criaremos anticorpos, alguma vacina e sistemas de ensino que nos imunize de presidentes inço como o atual e nos livre dessa pandemia.


2 comentários:

  1. Esse teu artigo merece primeiro ser bem digerido prá depois ser comentado. São tantos os importantes temas tratados que precisam ser assimilados em separado. O mosaico de tuas rxperiencias pessoais te permite teorizar em diferenntes frentes encharcado de prática. O que em outros destacaria como coerencia, em teu caso particular, com experiencias muito loucas de escrita, com esta tua viagem autobiográfica vais dando aos teus leitores uma oportunidade de conhecer um verdadeiro exemplo de práxis. É impossível parar de ler teu texto antes do fim. Ele instiga à reflexão e discussão antropológicas, sociológicas, filosóficas, pedagógicas, rudimentares de técnicas agrícolas, políticas... Me faz pensar em grandes amigos que certamente me fariam aprender muito evoluindo como pessoa, somente tentando explorar, defendendo e atacando, pontos que tão bem desenvolves no teu texto. Apenas formalmente estou te pedindo autorização, na verdade mais que pedido é comunicação, vou socializar com amigos diletos e fazer render minhas dúvidas depois dessa leitura. Viajei contigo nas tuas batatinhas... Foi muito bom especialmente pro meu lado "professor". Tchê, como é complexa nossa faena de formadores de homens e mulheres no mais amplo sentido da vida. Como podemos pretender ser professores humanitários com experiencias de vida tão. estreitas e/ou limitadas? São tantos os questionamentos que brotam desse texto... Parabéns! Espero e confio poder seguir merecendo o detalhe do envio de novas produções de tua lavra. Recebe um abraço fraterno

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  2. Ao mesmo tempo em que citas tuas experiências pessoais, antes um leque enorme de questionamentos de suma relevância neste artigo. A forma descritiva clara, consegue nos remeter facilmente aos lugares citados e, de certa forma, vivenciarmos estas experiências. É texto que merece ser relido algumas vezes. Maravilhoso!
    Obrigada por compartilhar.🌹

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