domingo, 10 de novembro de 2019



Brüder Bretzel e Bretz’Selle
Num dos três relacionamentos que chamei de casamento, tive uma enteada. Quando comecei a namorar sua mãe, ela já tinha quinze anos. Podia ter se revoltado contra mim, mas nos demos bem. Eu a chamava de Léti. Tinha uma aparência europeia, assim como minha namorada. Sua família era toda de descendência alemã, colonas do interior gaúcho, muitas vezes falavam alemão em casa. Era uma adolescente cheia de sonhos e eu os estimulava. Inteligente e com iniciativa, pleiteou e conseguiu meia bolsa de estudos na Aliança Francesa. Logo em seguida, também conseguiu um estágio numa agência de turismo para pagar a meia bolsa ela mesma. Queria viajar pela França. Tínhamos alguns problemas de liquidez, usando expressão de um ex-ministro da fazenda para não dizer que éramos pobres. A esperança de realizar aquele desejo era remota. Mas Léti não se abatia, fazia o que tinha que ser feito para caminhar em direção àquele objetivo. Lá pelas tantas já falava o francês, tirou o passaporte, trancou a faculdade e conseguiu um intercâmbio gratuito através do estágio, só faltavam as passagens de avião. Seu pai biológico também não tinha dinheiro, mas tinha crédito e comprou a passagem em dez vezes. Pronto, se foi a Léti para França nos enchendo de orgulho.
Já na França, a guria teve todo tipo de problema. Perdeu as bagagens, se viu ameaçada de deportação, faltou grana para tudo. Nós só podíamos torcer de longe e mandar esperança em drágeas de verbo via e-mail. Seu intercâmbio previa estudo e trabalho, então fazia um curso de francês e trabalhava de “au pair”, uma babá. No trabalho sofreu maltratos, trocou de emprego. No novo serviço, era perseguida, trocou de novo. Assédio moral, exigências absurdas, xenofobia, deboches, toda sorte de abuso, em cada novo trabalho um problema diferente. Mas não se faz uma boa espada sem que o aço passe pelo calor da forja, muito fogo e malhação. Enquanto isso, nos estudos, tudo ia bem. Conseguiu a transferência de seu curso de história da Universidade de Santa Catarina para a Universidade de Strassbourg. Fez amigos, começou a namorar, renovou o visto de permanência. Aos poucos a situação se estabilizou. Conseguiu um trabalho bom e tinha uma rede de amigos europeus que a apoiavam. Léti nos convidou para uma visita, já tinha a infraestrutura para nos receber, sua espada já estava polida e afiada. Pronto, nos fomos para a França.
Lá na Europa conhecemos o namorado da enteada, Pierre, seus amigos, o trabalho, a faculdade, a região toda. Ficamos muito felizes de ver onde ela estava. Era um ambiente jovem, cheio de vida. Tudo era encantador, os prédios, as ideias, as pessoas. Estrasburgo é uma cidade linda e curiosa, já foi alemã, francesa, alemã de novo e francesa desde a última guerra. Dependendo do resultado do conflito, Estrasburgo muda de lado. Cansada de joguetes, Strass, como é apelidada, reflete muito sobre a paz, a solidariedade, a fraternidade. É uma das sedes da União Europeia. Ah, se John Lennon fosse mais escutado: Imagine there’s no countries, nothing to kill or die for. Ou quem sabe Bob Dylan: how many times must the cannon balls fly Before they're forever banned? Strass agora é francesa, há uma grande tolerância com os diferentes no ar, com o estrangeiro. A cidade tem muitos bondes, casas barco e bicicletas, parece Amsterdam. Gostamos muito das padarias, era tudo delicioso, os “bretzel” e os “pain au chocolat” nos faziam comer mais do que o adequado, seu cheiro delicioso era sentido de longe. Os amigos da Léti eram simpaticíssimos, ouviam nossas histórias com interesse e nos faziam rir. Um deles era muito disposto e me guiou na subida da torre da catedral para ver a vista, eram muuuuitos degraus, mas subimos. Seu nome era Geoffrey, mas a pronuncia em francês é Jô-frô-á. Se não me engano era formado em relações internacionais ou algo assim, mas, naquele passeio, me contou entusiasmado de um curso que fazia na Bélgica para aprender as artes de um ferreiro. Conversamos muito, porque a forja também é uma paixão que tenho, ainda que platônica, só no mundo das ideias.
Pierre e Geoffrey estão a frente de seu tempo. Os dois ajudaram a fundar uma associação de ciclistas, pessoas que usam a bicicleta como transporte, para se deslocar pela cidade. A coisa não é capitalista, não objetiva o lucro ou tem dono, é uma associação comunista. Os donos são todos os associados que vivem em comunhão. Partilham as ferramentas, o espaço da oficina, os saberes. A prefeitura apoiou não cobrando o IPTU. A comunidade doa bicicletas velhas, estragadas, abandonadas ou que estejam sem uso. Elas são desmontadas e as peças servem para arrumar as bicis que estão em uso. Tudo grátis. Todos os associados podem usar as ferramentas da oficina, aprender as técnicas que não dominam para arrumar suas bicicletas e ensinar o que sabem. Alguns só aparecem quando precisam de algum reparo, outros gostam de ficar por ali batendo papo e ajudando no que podem. É obviamente uma associação de uma nova economia, solidária, comunista, sustentável, ambientalmente responsável. A alegria dos participantes é evidente, há brilho em seus olhos. Quando a fundaram, pensaram em mesclar no nome alguma coisa muito local, característica de Estrasburgo, com as bicicletas. A associação foi batizada de Bretz’selle, um trocadilho com a palavra Bretzel, dos pãezinhos alemães em formato curioso, e selle, que é selim de bicicleta em francês. O símbolo gráfico da associação é também uma mistura de bicicleta com bretzel. Maravilhoso, a comunidade local logo a reconheceu como legítima e passou a frequentar o lugar.

Ontem foi o aniversário da queda do muro de Berlim. Há trinta anos eu estava em Amsterdam quando tudo aconteceu e senti de pertinho a euforia gerada pelo fim daquela fronteira. O entusiasmo era perceptível na pele, se fez muita festa por toda Europa. Os acordos para a União Europeia estavam selados, seu lema era “in varietate concordia” em latim, unidos na diversidade em português e seu hino a “Ode a alegria” do compositor alemão Ludwig van Beethoven. A união previa uma cidadania europeia, sem distinção e com livre movimentação dos cidadãos entre os países membros. Já estava até marcada a data para seu início. Que tempo alvissareiro. A profecia de John Lennon parecia estar começando a se realizar. Um mundo sem fronteiras. A onda progressista avançava por todos os lados e o apartheid da África do Sul estava com os dias contados, Mandela logo seria solto. No Brasil, dias depois se fez a primeira eleição direta em décadas e o presidente Collor de Mello foi eleito em segundo turno contra Lula. Nesse momento efervescente, nessa primavera mundial, estavam nascendo Léti e seus amigos.
Coincidentemente, ontem fui à Porto Alegre para tentar arrumar uma máquina. Estava caminhando pelas ruas do centro com uma amiga, descendo a Marechal Floriano, comemorando a libertação do companheiro Lula, quando sinto um cheiro conhecido. O aroma vinha de uma minúscula padaria especializada em Bretzel. Com a memória olfativa, meu cérebro se encheu de boas lembranças. Entramos e a sorridente atendente era uma simpática moça com aparência alemã, bem da idade da Léti, seus olhos brilhavam. Pedimos um bretzel romeu e julieta, devidamente abrasileirado com queijo e goiabada, delicioso. Enquanto comíamos, conversamos com a moça. Ela tinha feito doutorado em biologia genética na Alemanha, era uma espada afiada, forjada no calor e na malhação da academia em outra língua. Porém, se cansou da vida acadêmica e ali estava ela, em sociedade com seu irmão, ganhando a vida como padeira. Me lembrou muito Geoffrey e sua busca pela simplicidade, pelas profissões realmente importantes. A aparência da Brüder Bretzel da Marechal era muito semelhante a Bretz’Selle, até um pequeno sofá na frente para sentar e conversar os dois estabelecimentos tem.

Algum tempo atrás, reencontrei Léti no facebook. Com alegria observo o rumo que sua vida tomou, assim como de seus amigos. Pierre e ela estão dando a volta ao mundo de bicicleta, agora estão subindo montanhas por estradinhas da Ucrânia. Geoffrey virou ferreiro e tem sua escola de forjaria em Estrasburgo. Os valores da loirinha da padaria são os mesmo da Léti, do Pierre e seus amigos. São poliglotas, não veem fronteiras, não se preocupam em enriquecer, buscam a felicidade e viabilizam meios para sentar e conversar. Os quatro estão fazendo um esforço grande, mas que para eles é fácil. Já passaram pela forja da vida, muito calor e malhação, são mestres e doutores, espadas afiadas, estão construindo uma nova sociedade. Não é a toa que Geoffrey escolheu ser ferreiro, profissão tão nobre, assim como padeiro, existem desde os tempos bíblicos. São profissões simbólicas. Depois do inverno de Trump e Bolsonaro, eles estão planejando e ensinando gerações anteriores e futuras que outro mundo é possível. Com partilha e solidariedade. Nada mais cristão. A geração deles está chegando finalmente ao poder e a primavera de uma nova sociedade florescerá. Acredito que a libertação de Lula, assim como de Mandela há trinta anos, simbolize esse equinócio. Olha... You may say I’m a dreamer, but I’m not the only one. Até Bob Dylan já ganhou o Nobel em literatura, The answer is blowing in the Wind.



quarta-feira, 6 de novembro de 2019


Sou racista, tenho que admitir. Depois de adulto percebi esse fato. Só me dei conta com a formação continuada nas escolas que trabalhei. Se não fosse a explicitação do conhecimento nos cursos que freqüentei, jamais saberia. Comecei a investigar porque tenho essa mácula no meu perfil. Nas conversas familiares descobri que meu avô paterno dizia: Não sou racista, mas essa negrada...!!! Os colegas de escola contavam piadas sobre negros, principalmente sobre sua cor ou sua aparêcia. O lápis de cor salmão era chamado de “cor de pele”, mesmo não tendo na escola inteira ninguém com aquela cor na pele. Havia também, três ou quatro ditados sobre a desonestidade, preguiça, ignorância dos negros que eram corriqueiramente repetidos. Normalmente, nas novelas da TV sempre os personagens negros eram serviçais dos brancos. Cozinheiras, motoristas, mordomos, camareiras negros. Na sessão da tarde, seguidamente passava um clássico do cinema, Cleópatra. De novo, Elizabeth Taylor, uma americana de olhos azuis e pele alva, fazia o papel da rainha africana. No programa Os trapalhões, Mussum, o negro do quarteto, era retratado como bêbado, ignorante, tolo e que falava tudo errado. Chocado fiquei ao descobrir que o maior escritor brasileiro de todos os tempos, Machado de Assis, era negro, pois todos os quadros que tinha visto dele até hoje era de um ser humano de tez clara. O mesmo aconteceu com outros lumiares brasileiros: o poeta Cruz e Souza, o compositor Lupicínio Rodrigues, O presidente Nilo Peçanha, O político José do Patrocínio, o advogado Luíz Gama, entre tantos outros. Esse último teve sua habilitação reconhecida 133 anos após sua morte. O time de futebol Grêmio Football Porto-alegrense foi fundando em 1903 somente para descendentes de alemães. Depois de alguns anos, em 1909, outro time foi fundando para incluir descendentes de outros países, por isso o nome de Internacional. No entanto, o inter só aceitou negros a partir de 1927. O Grêmio só passou a admitir negros na década de 1960! Jesus era judeu, povo que fugiu do Egito para a terra prometida da palestina. Jesus era descendente de africanos, obviamente negro. Porém, todos os filmes e pinturas que vi até hoje sobre Jesus era com atores loiros de olhos claros. Quando o papel é bom: um deus, uma rainha, uma escrava alforriada que se dá bem no fim, o negro é retratado como branco. Quando é um bandido mau, um mau caráter, um bêbado, até o branco é pintado como negro. Não é de graça que sou racista, somos todos, fomos educados para sê-lo. Aí está a importância da formalização do dia da consciência negra. Precisamos falar sobre esse assunto, debater, expor. Não falando, ou fingindo que o racismo não existe, como acontecia comigo na infância, perpetua uma sociedade opressora excludente e que segrega por cor da pele. Mesmo dando aulas sobre o tema, acredito que umas três gerações ainda sofrerão com isso. Lutemos, pois o racismo é inço forte, tem que ser arrancado do solo nacional com decisão. Como fazem os alcoólicos, admitem seu vício e repetem sempre que são alcoólicos em recuperação, nós, racistas, também temos que admitir nosso racismo e, por mais vinte e quatro horas, lutar contra isso. Evite hábitos, lugares e pessoas do tempo de racismo. Aja, faça sua parte, melhore a vida da sociedade brasileira.



sábado, 2 de novembro de 2019



O pé de jujo
Verônica tirou minha dúvida: jujo é planta medicinal. Olhou na internet. Tudo que está na internet é verdade! Todo mundo sabe. Olhei também, para conferir. Sério? Nunca tinha ouvido falar. Por mais tirocínio que se tenha, sempre haverá termos desconhecidos. A ansiedade do jovem aprendiz, de querer aprender logo tudo, se transforma ao longo da vida na serena humildade do traquejado mestre. Mas o conhecimento precisa ser cultivado, como uma planta. Não basta plantar, tem que regar, adubar, tirar inços, expor ao sol. Aos poucos ela vai crescendo. Ao final de sua vida pode estar enorme ou minúsculo, depende das escolhas que fazes. Regou? Pessoas que se encantam com o aprendizado se reúnem nalguns lugares para juntos partilharem o que sabem. A erudição, como o amor, é uma daquelas coisas que quanto mais se dá, mais se tem. Estive ontem novamente na Sala Jazz Geraldo Flach, lugar de público erudito. Ao meu lado, assistindo ao show, professores universitários, médicos psiquiatras, jornalistas, artistas, pessoas que vivem no coração intelectual da sociedade, nenhum ribeirinho. No livro A invenção do ar, Steven Johnson relata como se dá os avanços do pensamento. A atmosfera necessária para mudanças paradigmáticas sempre contém ingredientes parecidos. As grandes cabeças de uma época se reúnem no mesmo lugar, comem, bebem e fumam juntos, experimentam estados alterados da consciência, escutam música, tocam, riem e cantam. Parece bobo, mas mais ou menos assim que o pé de conhecimento cresce: um gênio debocha do outro que está meio bêbado cantando melodias com letras engraçadas. Enfadonhas salas de aula nos ensinam o que já existe, mas para mudar o que se pensa tem que ser noutro tipo de ambiente. Paulo Freire dizia que o aprendizado só se dá numa relação afetiva positiva. O que testemunhei ontem foi isso. Zelito, artista de Santo Antônio da Patrulha, tocou seu violão e nos fez rir. Angela e Roni cultivam ali naquela sala, com muito zelo, amor e cuidado, a plantinha da erudição. Reuniram os amigos, como sempre fazem, para comer, beber e se divertir. Escutamos cantigas de ninar e Mamonas Assassinas, milongas e rock. Um caldeirão de conhecimento musical onde mergulhamos para nos embebedar. O afinado dueto entre Zelito e Marcelo Delacroix, foi emocionante. O ponto alto do show foi “O pé de jujo”, uma engraçada canção que trata da legalização da maconha como planta medicinal e diferenças legislativas entre países. O pé de jujo, a Sala Jazz e um professor universitário ébrio são coisas que a sociedade vê como clandestinas, porém, nada mais importante para a revolução acontecer do que a existência delas. Os conservadores sempre perdem a batalha contra a inteligência. A evolução social sempre acontece. As mulheres votam, a escravidão é proibida, a homossexualidade não é doença, os indígenas não são selvagens. Mas tudo demora, os intelectuais são minoria, ilhas de saber, a idiotice é oceânica e opressora. A Sala Jazz é um lugar pequeno, a estupidez enche estádios. É com ajuda da arte, o humor, a música e os pés de jujo que a inteligência vai se sobrepondo a ignorância. Mas temos que cultivar, na Geraldo Flach a ignorância não passa da porta porque é inço, tem que ser arrancado de lá. Me sinto muito honrado quando me deixam entrar. Imagina o que será que está sendo criado ali?! John Lennon frequentaria o lugar, imagine there’s no countries, não deveria ser preciso atravessar fronteiras para cultivar um pé de jujo.