domingo, 30 de outubro de 2016

Teiú
Resolvo trabalhar um pouco no pátio no lugar de sestear. Luto contra um toco, cheio de raízes, no caminho de um futuro muro. O trabalho é pesado: enxada, machado, picareta, pá. Cavo a terra úmida, corto raízes, tiro pedras. Depois de uma boa hora de trabalho, logro êxito na tarefa. Arrasto o toco para longe e, ainda arfando, retorno para contemplar a obra. Ninguém que olha aquilo vê obra nenhuma ainda, mas é assim no começo. Só um monte de terra mexida e já tanto esforço. tanto trabalho só será reconhecido como tal depois de terminado. Estou todo sujo, barro e lascas de madeira colados no corpo todo. Minha respiração volta ao normal enquanto percebo o entorno. O dia é belíssimo, temperatura amena, a cor da tarde de primavera valoriza as flores roxas do capim. Escuto um ruído de folhas secas sendo amassadas, mas não são passos. Me vem na cabeça um carro com motor desligado vagarosamente cedendo ao freio de mão. Mas isso não é possível, ali é muito íngreme, não tem carro que consiga chegar aqui nessa parte do terreno. A uns dez metros tem um enorme lagarto que diligente sobe o morro. Gordo e forte, caminha lomba acima sem titubear, é óbvio que não me percebeu ali, apesar de eu estar em pé exatamente na sua rota. Não está correndo, mas não é lerdo, Penso em pegar a câmera para registrar a cena, mas se me mover ele pode se assustar e prefiro saborear o momento. Fico paradinho me deleitando com a cena. O bicho parece um trator silencioso, vem amassando tudo pelo caminho, Acho que é um teiú, mas parece grande demais para um. De quando em quando, lança a língua para fora e dá uma chacoalhada com ela no ar para cheirar seu caminho. Ele chega onde estava o toco, a um metro de mim. Examina com calma as modificações que fiz no terreno e então me olha. Lança sua língua bifurcada na minha direção e ficamos nos admirando por um instante. De ponta a ponta deve ter um metro, suas pernas são musculosas, mas é pançudo como eu, tem um couro malhado e lustroso e é lindo. Se vira e segue seu caminho sem nenhuma pressa. Eu não pareço nenhuma ameaça, devo estar com o mesmo cheiro do chão e da madeira, que bom. O teiú se mete na macega e me deixa sozinho com meus pensamentos. Estou exausto, a tarefa ainda não acabou, mas olho de novo ao redor, me maravilho com o local que escolhi para morar. Acho que a mata me olha de volta e, como o teiú, me reconhece como igual e me deixa ficar. Chega por hoje. Espírito pleno, entro em casa e me dispo todo. Vou para o banho deixando tudo aberto, portas e janelas. A cor da casa está tão aconchegante com o sol do meio da tarde se espalhando pelos cantinhos. Descubro que se não fechar a porta do banheiro posso seguir olhando o mato dos fundos da casa. Tudo é tão lindo. Desligo o chuveiro elétrico e me molho com a água fria do rio que é só desviada para minha ducha por um engenhoso sistema de mangueiras e tanques. Deito na cama ainda molhado e deixo a brisa da rua me secar. É morninha, me sinto super bem, aconchegado e me deixo finalmente sestear. O simples repouso, depois de um trabalho duro, traz muita felicidade e é muito bom quando se tem a consciência de um momento feliz quando ele está ocorrendo!

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Eu corri dez maratonas, Na primeira estava super treinado, mas, ignorante, não fiz nenhuma preparação alimentar ou de hidratação, parei no km 25 esgotado. Nas oito seguintes terminei, algumas muito bem e no outro dia já estava pronto e apto para correr outra. Meu melhor tempo foi de 3 horas e 31 minutos para correr todos os 42km e 195m. Apliquei todos os conhecimentos da faculdade em treinamento, hidratação, alimentação, calçado, preparação psicológica, etc... Na décima eu parei de novo no km 25, mas desta vez por outro motivo. Eu me perguntei: porque? Correr maratonas é como ir no Beto Carreiro e descer a Big Tower. Quando se começa a cair aqueles 100m de altura, tu tens a certeza da morte. Quando percebe que sobreviveu aquele perigo extremo, um grande prazer te toma e até provoca gargalhada. Muita gente entra na fila de novo para sentir aquele "barato" provocado pelas drogas endógenas, aquelas produzidas pelo próprio cérebro. Ao terminar uma maratona, todo teu corpo grita de dor exigindo que aquele sofrimento acabe. O cérebro inunda o corpo com analgésicos naturais. Finalmente tu obedeces às ordens do corpo e ele te premia com um manancial de prazer difícil de descrever para quem nunca experimentou. Rir e chorar ao mesmo tempo, tremer de prazer, são sensações que vivi em chegadas de maratonas.