quarta-feira, 11 de agosto de 2021

 Sobre as olimpíadas

"Se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor."

Paulo Freire

Exercer a profissão de professor é difícil. Temos que soprar do senso comum o pó da história para revelar ao estudante a origem, a raiz das coisas. Não é uma coisa fácil, algumas vezes, o conhecimento está tão encardido do uso que a população acredita serem aquelas as cores verdadeiras do quadro. A restauração da pintura original é traumática, alguns alunos inclusive se revoltam com o que é descoberto, pois o brilho intenso do que é revelado ofusca suas crenças atuais de tal forma que a verdade se torna ofensiva. Se formos estudar a etimologia da palavra “etimologia”, encontraremos que vem do grego “étumos”, que significa real ou verdadeiro, e “logos”, que pode ser traduzido como ciência, conhecimento, estudo ou razão. O docente está sempre atrás do que é verdadeiro, para não incorrer no erro de ensinar algo falso para os discentes. Assim é que o professor acaba se tornando um grande amante da etimologia das palavras. Como professor de Educação Física, aproveito os grandes eventos que preenchem o imaginário popular que envolvem a cultura de movimento para pesquisar com as turmas da escola o real significado histórico das palavras que são pertinentes para a compreensão do tema. Desde o carnaval, passando pelas festas juninas, campeonatos de futebol ou basquete, eventos de capoeira ou MMA, uma nova pista de skate no bairro, até festivais de pandorga, onde estiver gente se mexendo para jogar, dançar, lutar ou se divertir, lá estou eu a pesquisar com os alunos a etimologia das palavras. As olimpíadas não é diferente e, de quatro em quatro anos, temos esse banquete etimológico. Nenhuma criança sai da escola em que trabalho sem estudar radicalmente os Jogos Olímpicos. Pensei em colocar em texto para adultos o logos até aqui adquirido em todos esses anos de docência. 

A primeira palavra que sempre pesquisamos é atleta. Atleta, na Grécia antiga, era um lutador. Os alunos não se chocam ou se surpreendem com isso, pois a palavra lutador tem atualmente até um sentido dignificante, de pessoa que se esforça para atingir seus objetivos. Mas basta começarmos a contextualizar o significado para as crianças começarem a entender que atletas não são exatamente santos a serem glorificados. Atletas eram escravos e as lutas na antiguidade eram até à morte. Ganhava aquele que batia no outro até matar, ganhava o que conseguia causar tantas lesões em seus adversários que não saíam vivos da arena. O objetivo do atleta era matar. 

Arena é geralmente a segunda palavra que pesquisamos. Os alunos conhecem bem a palavra pois muitos estádios de futebol brasileiros tem o termo no nome, como Arena do Grêmio. Arena era um grande círculo de areia onde se realizavam as lutas. O chão era coberto de areia para absorver o sangue e pedaços de corpos, como dedos ou orelhas, que iam caindo dos lutadores e assim a área de luta não ficava escorregadia ou mal cheirosa. Quanto mais sangue, mais o público vibrava. Era uma grande honra vencer uma luta na arena e para isso o atleta se preparava muito. Se vencesse teria tratamento especial, seria admirado, ração dobrada, acesso a fêmeas. O esforço não era só para sobreviver, mas também para viver em honra, ou melhor, ser tratado não como um escravo, mas como um homem livre. 

A etimologia da palavra ginásio causa grande risada entre os estudantes. Era o local onde homens socializavam nus, com os pelos raspados e o corpo todo besuntado em azeite de oliva. Hoje em dia, a ideia de ginásio é bem diferente e inclui as mulheres também, mas na cultura da época era o normal para todos os homens, tanto homo como héterossexuais, frequentar o lugar. Ali, conversavam sobre amenidades, debatiam política e filosofia e praticavam exercícios físicos. Mulheres não tinham direito a se aproximar do ginásio, pois não eram considerados seres humanos. Até hoje, a palavra “homem” muitas vezes é empregada erradamente com o significado de ser humano, mesmo em meios científicos, pois nossa cultura ocidental bebe muito da fonte grega. Não havia debate de gênero na Grécia antiga, pois só havia um gênero humano: os homens. As mulheres eram consideradas homens que nasceram do avesso, com vaginas no lugar de pênis, com úteros para abrigar os fetos e mamas para alimentar os recém nascidos, tudo perfeitamente adequado para que a máquina cósmica funcionasse perfeitamente. Era uma verdade cósmica, óbvia, incontestável, os homens que nasceram do lado certo gentilmente deveriam depositar suas sementes nas mulheres que serviam somente como terra para desenvolver novos homens. Mulheres eram coisas. No centro do ginásio, geralmente havia uma arena, para que homens da elite pudessem se divertir olhando uma briga mortal entre os escravos mais fortes, lutadores treinados para matar. A elite se divertia olhando atletas sangrando, se esforçando para não morrer. 

A etimologia da palavra olimpíadas é a que mais incredulidade causa nos alunos. Olimpíadas era o espaço de tempo entre cada festival religioso em homenagem a Zeus, quatro anos. O festival se realizava na cidade de Olímpia, na Grécia antiga, junto a uma das sete maravilhas do mundo antigo, a estátua de Zeus, com treze metros de altura, feita de madeira e coberta de ouro e marfim. Uma série de ritos ocorriam num mês de festividades: Procissões, banquetes, cantos, rezas e sacrifícios, além dos jogos olímpicos. Alguns ritos ainda hoje se perpetuam, como o símbolo da pira olímpica, que passeava pelo país chamando para o evento, mas no templo se mantinha sempre acessa. Centenas de carneiros eram mortos para oferecer ao deus dos deuses, Zeus. Além das lutas até à morte, outras competições ocorriam em louvor aquela entidade adorada pelos gregos, todas relacionadas à guerra. Os atletas/lutadores/escravos demonstravam suas habilidades nas arenas e ginásios ao redor do templo com as armas de guerra da época. Como as guerras se davam à pé em campos de batalha, corridas e saltos eram armas importantes dos exércitos para atravessar o terreno cheio de obstáculos. Durante aquela festa religiosa, organizava-se provas para ver quem corria mais rápido (citius) e saltava mais alto (altius), transpondo obstáculos como árvores caídas, pedras ou córregos, para ganhar mais terreno para seu exército. Além das corridas e saltos, o momento mais esperado do festival, era quando os escravos demonstravam sua capacidade de matar, exercendo o poder de vida e morte dos deuses. Competições de arremessos de armas mortais com mais força possível (fortius) como o dardo, o martelo, o disco e o peso, faziam a platéia vibrar imaginando o poder de destruição daqueles atletas. Aí está a origem do que hoje em dia chamamos de atletismo, a prática da guerra. Também daí saiu o lema das olimpíadas atuais: “citius, altius, fortius”, que significa mais rápido, mais alto, mais forte, qualidades desejadas para um guerreiro ou para todo um exército. 

Um professor e historiador francês, Charles Pierre de Frédy, ficou entusiasmado com o ensino do atletismo nas escolas francesas depois das descobertas arqueológicas na cidade de Olímpia, recentes no final do século XIX, época em que viveu. Os vestígios encontrados, confirmavam antigos escritos sobre os jogos olímpicos e Frédy lutou para recriá-los e promovê-los. A elite francesa gostou de seus esforços, o regalou com o título nobiliário de Barão de Coubertin, atualmente é considerado o pai dos Jogos Olímpicos da era moderna. Claro que, passados dois mil anos desde a última edição dos jogos da antiguidade, a cultura havia mudado bastante. “Ginásio” já não era lugar para homens ficarem nus com os amigos. A religião do Barão já era diferente da dos gregos da antiguidade, ele era cristão, pregava certos pudores. Frédy propôs então que os jogos fossem laicos e não mais em louvor a Zeus, mas que continuassem a respeitar uma olimpíada, o intervalo de quatro anos entre um festival e outro. Agora, já havia dois gêneros humanos admitidos, homem e mulher, mas ainda se referiam aos seres humanos falando somente do “homem” e o professor Charles Pierre, recém reconhecido como um homem nobre, achava que seria desaconselhável que mulheres participassem dos jogos. 

Quando começamos a estudar os personagens envolvidos na história das olimpíadas, as alunas começam a ficar muito desconfortáveis, pois já nasceram numa era em que a diferenciação por gênero é uma ofensa punida pela lei. A luta por igualdade nunca foi uma preocupação muito grande do Comitê Olímpico Internacional (COI), entidade criada por Frédy. Ao contrário, a desigualdade é uma constante na história olímpica, mas as alunas acreditam que era só na antiguidade. Algumas regras também foram mudadas por razões religiosas, as lutas não eram mais até a morte de algum dos atletas, pois um dos mandamentos cristãos é “não matarás”, o poder de decidir matar é somente do deus que Frédy cria a época. Pierre de Coubertin era presidente do COI em 1925 quando a diretoria decidiu que as mulheres também poderiam participar a partir da décima edição dos jogos da era moderna. Contrariado e revoltado com essa decisão, o Barão se retirou do Comitê organizador dos jogos para nunca mais voltar, pois, no entender dele, seria contra os “ideais olímpicos” que mulheres participassem. Não ter mais centenas de sacrifícios de animais, não ser mais um festival religioso em honra a Zeus, não ter mais homens nuns besuntados com azeite ou não ter mais lutas até a morte mantinham os ideiais olímpicos, mas mulheres jogando seria demasiada desvirtuação dos jogos para o Barão. Tokio 2021, dois mil e quinhentos anos depois dos primeiros jogos, é a primeira vez que há igualdade no número de participantes homens e mulheres e a primeira vez também que se organizaram provas mistas de atletismo, com homens e mulheres correndo juntos na mesma competição. 

Há uma perceptível esforço dos organizadores dos jogos olímpicos por atender as demandas das mudanças culturais. Em tempos de internet as mudanças são rápidas e gigantescas, no entanto, O COI anda à passos de tartaruga. Ou melhor, no ritmo olímpico, de quatro em quatro anos algumas regras são revistas. A inclusão dos deficientes físicos e mentais, por exemplo, ainda é uma luta que está sendo disputada nos bastidores. Foi somente na edição de Barcelona, em 1992, que os Jogos Paralímpicos aconteceram no mesmo local e quase que concomitantemente aos Olímpicos, mas até hoje são eventos separados por uma barreira intransponível de duas semanas no tempo, atletas deficientes não se encontram com atletas não deficientes nem nos corredores da vila olímpica. O Debate sobre a questão de gênero também está longe de acabar. O imaginário popular acredita que é uma coisa óbvia e simples de resolver, afinal, são só dois gêneros admitidos: homem e mulher. As regras do COI, por incrível que pareça, também tentam definir o que é um homem e o que é uma mulher, com diversos testes biológicos que envolvem inclusive exames laboratoriais de sangue e investigações sobre o DNA da pessoa, fora, claro, o constrangedor exame físico por médicos do comitê. Mas muitos atletas não se enquadram no ingênuo binário homem/mulher e são simplesmente proibidos de competir. 

Até mesmo a altura dos degraus do pódio, que serve para determinar uma hierarquia da virtude entre as pessoas desde a antiguidade, está diminuindo. A compreensão de que um ser humano não é melhor que outro pelo fato de ter tido um desempenho superior numa prova esportiva, constrange cada vez mais a existência do rito do pódio. Atualmente, não é raro que o atleta que triunfa sobre os outros convide seus colegas de pódio para subir no degrau mais alto com ele. Um ser humano ser exibido para as fotos num nível superior aos outros já não é mais admissível na atual conjuntura política e cultural. Nesse sentido, chamou a atenção um esporte estreante nesses jogos olímpicos com quase todos os atletas muito jovens, ou seja, de uma nova era, o skate. Os “competidores” vibravam com o sucesso do rival! Cada manobra completada com êxito por algum atleta era comemorada por todos com genuína alegria. Situação completamente diferente do “espírito olímpico” de matar o oponente ou, no linguajar esportivo mais polido ou politicamente correto de hoje em dia, eliminá-lo, que também não deixa de ser o desejo de um exército sobre o outro.  

Debates dessa natureza, como a inclusão de deficientes, o absurdo do pódio ou sobre gênero humano, tem que ser realizados na escola, pois em outros ambientes os preconceitos culturais se perpetuam sem a devida reflexão. Daí a importância de o professor de Educação Física se manifestar ardorosamente quando surge a oportunidade. A eterna discussão de qual seria mais importante para o desenvolvimento humano, cultura ou natureza, é falaciosa. Não há como dissociar o corpo da cultura em que está imerso. O próprio estudo dos Jogos Olímpicos demonstra isso. Em Tóquio uma nova questão se impôs nas rodas de conversas e tomou conta das notícias da imprensa: a saúde mental dos atletas. Até hoje, pouco se admitia sobre o tema, os atletas eram somente corpos sorridentes sem mente. As emoções eram praticamente excluídas das competições. Angústia, raiva, medo, tristeza, tudo deveria ser suprimido ou relevado em prol do espetáculo. Somente a alegria das vitórias eram expostas na mídia. O tal do espírito olímpico deveria encarar derrotas ou sofrimento físico como parte da glória do esporte, mas tudo se fazia para escondê-los. Somente quando o sofrimento era tão grande ou a derrota tão humilhante, eram mostrados como grandes vitórias a serem glorificadas também. Há casos clássicos de situações absurdas, como a chegada da maratonista suiça Gabriela Andersen, cambaleante por uma severa desidratação nas olimpíadas de Los Angeles que a mídia trata como superação. Ou o nadador Eric Moussambani, de Guiné Equatorial, nos Jogos Olímpicos de Sidney, que mal sabia nadar, e completa a prova com mais que o dobro do tempo do primeiro colocado, que a mídia vende como honra, “espírito olímpico” ou ainda o batido clichê que “o importante não é ganhar, mas sim, competir”.  Na edição desse ano, em Tóquio, sopraram ventos de muitos questionamentos. Simone Biles, uma atleta multicampeã de outros jogos, e só por isso o que tinha para dizer foi ouvido, desistiu de algumas competições em que tinha chances de medalha, alegando cansaço mental. Uma das coisas que a pressionava era o pedido de técnicos e juízes para sorrir mais. A partir dessas declarações da ginasta, uma série de outros atletas começaram a vocalizar descontentamento com as pressões psicológicas a que o atleta está exposto. A dor da derrota e do sacrifício físico passou a ser admitido como mazela da rotina de treinos necessários para se atingir o nível olímpico. 

Outra polêmica que surgiu foi a participação de crianças. Uma atleta brasileira de apenas 13 anos, Rayssa Leal, ganhou a medalha de prata na competição do skate. Questões de ordem ética surgiram: se crianças devem estar expostas às responsabilidades e sacrifícios físicos impostos aos competidores da elite esportiva. A própria pequena skatista, em entrevista, revelou, numa declaração de surpreendente maturidade, que mesmo com seu corpo de criança tem que ser adulta quanto a responsabilidades. Brincar, interagir com o grupo de amigos, namorar, ou simplesmente sentir tédio, necessários ao bom desenvolvimento mental de qualquer pessoa, não estão na agenda dos atletas mirins. Na ginástica, já há um consenso que menores de 16 anos devem ser proibidos de competir em nível olímpico, mas essa importante regra ainda não avançou sobre os outros esportes ou mesmo sobre o COI que anda a passos de tartaruga ou de olimpíadas, de quatro em quatro anos. 

O senso comum imagina que esporte faz bem para saúde, pois os corpos bem torneados dos atletas impressionam o leigo. No entanto, o esporte arrasta o praticante para uma sucessão de lesões graves, que, assim como as mazelas mentais, também são insistentemente omitidas da mídia. Felizmente isso parece estar mudando, o debate em torno das lesões inerentes a prática esportiva ganhou visibilidade em Tóquio. A judoca Mayra Aguiar, que conquistou o bronze e a ginasta Rebeca Andrade que conquistou duas medalhas, de ouro e prata, já sofreram muitas cirurgias de joelho, mesmo sendo as duas bastante jovens, com menos de trinta anos. Alguns outros grandes ídolos brasileiros dos esportes olímpicos, como Oscar Schmidt, no basquete, ou o tenista Guga Kuerten, conviveram durante toda suas carreiras com fisioterapeutas e medicações para tentar sanar as lesões recorrentes e afastar as dores decorrentes da prática esportiva. Guga chegou a abandonar a carreira depois que a terceira cirurgia na virilha não conseguiu amenizar as dores que sentia. Oscar tinha todos os aparelhos de fisioterapia em casa e, depois dos treinos, já jantava atrelado a eles. O atual discreto caso de Mayra Aguiar, nos leva a refletir sobre o fenômeno antropológico dos esportes. Mesmo depois de sua sétima intervenção cirúrgica no joelho, poucos meses antes das olimpíadas, Mayra não cogitou abandonar os treinos, a carreira ou sequer as competições em Tóquio. Treinando e competindo, ela sabe que terá que fazer cirurgias, é como dar murros em ponta de faca, vai machucar. O que seria essa obsessão? Um vício, uma tara, uma necessidade financeira, uma busca por reconhecimento, uma fuga da realidade social em que vive? Se formos à raiz do debate em torno das olimpíadas, se formos buscar a "etimologia", ou seja, se formos em busca do que é real e verdadeiro desse fenômeno, encontraremos a resposta no paralelismo dos casos atuais com os da antiguidade.   

É comum, ao entrevistar atletas que obtêm êxito no esporte nacional, que repórteres investiguem o passado dos vencedores. A história geralmente é semelhante: criado só por sua mãe, fome que ronda a família numerosa, projeto social que estimula o esporte, destaque por habilidade em alguma coisa, adoção por algum clube esportivo de elite, treinamento extenuante, consagração na excelência esportiva. Não vejo diferença nenhuma com a história dos atletas/lutadores/escravos da Grécia antiga, que se preparavam e se esforçavam muito para não morrer sangrando na arena, porque somente obteriam reconhecimento social e seriam tratados como homens livres se vencessem a luta até à morte. Não é de se admirar o discurso emocionado de Daiane dos Santos, mulher, negra, excelente ex-atleta olímpica derrotada, ao ver sua compatriota Rebeca Andrade triunfar. Daiane lembra que Rebeca é uma mulher, negra, favelada, criada só pela mãe, que sofreu todo tipo de privação até ser adotada por um clube de elite, que enfrentou muitas lesões e que agora vencendo, tem o direito de brilhar na TV, ser entrevistada e tratada como um homem livre, ser finalmente reconhecida como um cidadão de plenos direitos. Pena que milhões de rebecas, a esmagadora e brutal maioria, ficou pelo caminho em algum momento e não obteve o sucesso almejado, são eliminados da competição social muitas vezes a tiros e ainda vivem como escravizados em favelas. 

Essa história vitoriosa de Rebeca Andrade, assim como a derrotada maratonista suiça que chega cambaleante, é vendida na mídia como linda, exemplo a ser seguido por todos. Omite-se, convenientemente, os milhares que seguiram essa exata mesma história, mas não tiveram a sorte de nascerem com alguma habilidade especial ou aberração física que determine o sucesso, ou que morreram por exaustão tentando. Observe-se que, numa prova mundial como são as olímpicas, que tem somente uma pessoa que ganha a medalha de ouro, quantos atletas, de quantos países, ficaram de fora? Em cada país, quantos atletas foram eliminados, por mais que se esforçassem para trilhar essa senda brilhante de vitórias pintada como possível para qualquer um? Quantas crianças, de quantas escolas, viram na TV esses vencedores cobertos de glória e almejaram um dia se tornar um deles? Acredito que estamos falando de todos os oito bilhões de habitantes do planeta, mas só temos um medalhista de ouro a cada quatro anos em algumas poucas modalidades esportivas. Essa seita dos Jogos Olímpicos celebra, ao fim e ao cabo, a exclusão. Ensinamos a população que é bom, justo, lindo e até altruísta, perder e se sacrificar para manter o espírito olímpico intacto. Os jogos olímpicos ainda são, apesar de muito diferentes dos originais, um festival religioso. A diferença principal é que o deus a ser louvado não é mais Zeus, mas sim a diferença social. Os Jogos são para louvar a exclusão.

O tal do “espírito olímpico” é o seguinte: a elite vai fazer tudo que puder para permanecer elite. Para isso inventou uns joguinhos para distrair os escravizados, promove competições sangrentas para se deliciar assistindo escravos se digladiarem até à morte para, só aí, dar uma medalhinha ou título nobiliário para aquele que fizer direitinho tudo que eles quiserem o chamando de vencedor. Assim, todos os outros escravos se sentem estimulados a permanecer lutando sob as mesmas regras para que nada mude nunca e todo mundo fique tão hipnotizado com esse jogo que não perceba que é feito para que o “status quo’ permaneça inalterado. A elite será sempre elite e os escravos serão sempre escravos. Essa hipnótica cortina de fumaça tem funcionado há milênios. O patrono da educação nacional, Paulo Freire, nunca falou especificamente dos esportes, mas suas palavras servem como uma luva, pois ele observava uma injustiça social gritante. Ele dizia que “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de forma crítica.”

 O longo caminho dos Jogos Olímpicos para uma maior inclusão, não acabou. Ao contrário, está longe do fim. Porque a existência dos Jogos é o símbolo máximo da própria existência da exclusão social. Se quisermos acabar com uma, teremos que acabar com o outro. Acabar com a exclusão e a diferença social, o pódio social, não é do interesse das elites dominantes pois estão no degrau mais alto do pódio e não querem sair de lá. Por isso os avanços são minúsculos e muito afastados no tempo. Dois mil e quinhentos anos para as mulheres conseguirem igualdade no número de participantes, Dois mil e quinhentos anos e os deficientes ainda não tem direito a participar junto com os não deficientes. A elite sempre promove, patrocina e celebra com entusiasmo os Jogos para manter o Status Quo. A etimologia da expressão Status Quo, que vem do Latim, significa a busca pelo estado das coisas antes da guerra. Antes da guerra a elite desejava a guerra. 

Como professor de escola pública, trabalho para que o que é real e verdadeiro seja esclarecido. Estudo a etimologia das palavras e expressões da língua para que meus alunos percebam sua posição social desfavorecida e lutem para que tudo mude. Enquanto tiver um único injustiçado na sociedade, um único excluído, os quero atletas, ressignificando as palavras, lutando na arena da justiça. Quero vê-los lutando por amor, vida e inclusão e repudiando o ódio, a morte, a guerra e a exclusão. Por isso os mantenho o mais longe possível das competições. Bom o dia em que os Jogos Olímpicos e sua seita da diferença social fiquem de novo em escombros e soterrados pelos avanços sociais e sofisticação moral da população. E de novo citando Paulo Freire: “Enquanto eu luto, sou movido pela esperança; e se eu lutar com esperança, posso esperar."