terça-feira, 12 de fevereiro de 2019


O ninho do urubu
A tragédia do incêndio nos alojamentos do centro de treinamento do Flamengo, o Ninho do Urubu, que vitimou dez rapazes jovens, me encheu de indignação por várias razões. Até assisti o Jornal Nacional e o programa Fantástico de novo no youtube para ver melhor como o assunto foi mostrado. As reportagens tratam como normal que adolescentes, aqueles com os corpos mais desejáveis para o esporte, sejam levados de casa ao redor dos doze anos para viver em outra cidade e alguns ficam mais de ano sem ver suas famílias. Surpreende que esse sequestro seja autorizado pelos pais na esperança de que as crianças tenham um futuro melhor e usufruam dos confortos de uma vida de luxo, quem sabe até tragam para casa alguma sobra. No meu entender, isso lembra muito os escravos de dentro da casa grande, que vestiam roupas, comiam melhor, dormiam em camas e faziam sexo com as elites, vida muito diferente daqueles que ficavam nas senzalas. Não há diferença, não deixaram de ser cruelmente explorados durante sua curta vida útil de jovens e belos corpos. Só ficamos sabendo da existência desses rapazes invisíveis devido ao seu espetacular trágico desfecho. Até na sua morte, os garotos viraram produto de venda para os meios de comunicação. As reportagens mostram como os adolescentes eram bem tratados, como os alojamentos eram confortáveis e como tinham equipamentos de lazer, educação e cuidados médicos e psicológicos. Todos esses atletas das categorias de base sofrem diversas lesões durante sua vida “útil”, alguns tendo inclusive que fazer várias intervenções cirúrgicas. Um caso clássico é do jogador Ronaldinho “fenômeno”, que virou profissional aos 16 anos e só faltava ter um zíper nos joelhos de tantas operações a que foi submetido. Ao mesmo tempo, a reportagem alerta para a possibilidade de muitos dos adolescentes não conseguirem sequer realizar o sonho de chegar ao estrelato desejado ou pelo menos à carreira profissional. Serão descartados como refugo aqueles que não obtiverem êxito e não renderem lucros aos empresários que ali investirem, a esmagadora maioria. As reportagens indignam-se com a negligência e imperícia na construção e manutenção dos alojamentos que resultaram no incêndio, mas em nenhum momento questiona que os meninos sejam objetos de negócios, ou no máximo, animais de rinha que são criados a pão de ló para vencer em competições. Me espanta também, a hegemonia da religiosidade dos atletas e dos parentes. Todos são unânimes em lembrar Deus ao se referir a tragédia. Ou por agradecimento por supostamente tê-los salvo, ou resignando-se diante dos desejos caprichosos de um deus perverso que leva para junto de si, queimando vivos, jovens de 14 ou 15 anos. A simplicidade da formação moral de todos os envolvidos (pais, adolescentes e repórteres) impressiona. Nenhum foi capaz de contextualizar a situação com a conjuntura social e econômica em que vivem, creditando ao sobrenatural todo o ocorrido. Tanto dels quanto os esportes foram inventados por uma elite esperta para manter a plebe sob controle. A dominação ideológica é de tal forma eficaz, que se torna absolutamente desnecessário erguer muralhas em torno dos castelos como era comum antigamente. Basta mostrar partidas de futebol na televisão aos finais de semana e em todos os jornais fazer longas reportagens sobre a perfeição dos esportes como panaceia dos males sociais, que todos acreditarão que a vida é assim mesmo: Se tu não venceres na vida é por tua culpa, não te esforçaste o suficiente ou algum deus perverso quer que tu pegues ônibus lotados, trabalhe todo mês para auferir um salário insuficiente para a subsistência e não te revoltes contra isso. Ensinam a resignação social até nas escolas, onde a maior sala de aula sempre é o ginásio de esportes. O sistema jamais será culpado da diferença social. Ao fim, o excluído é que é o culpado da sua própria exclusão. No meu entender, o ocorrido lembrou só a desumanidade do sistema atual. Não é um abrigo para seres humanos, é um ninho de urubu.

2 comentários:

  1. Belo texto Tiago, e ótima reflexão sobre nossa "religiosidade" brasileira, que tantas vezes máscara a realidade do país , fazendo que todos aceitem o inaceitável, e sem reclamar ainda.

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  2. ótimas reflexões, trazendo o esporte (futebol) como um dos sistemas excludentes, e perpetuadores da classificação social. A religiosidade como justificativa pelo descaso, o a intencional inferiorização das classes mais baixas que no século XXI como descreves, ainda vivem nas senzalas...

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