terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Paul Rabbit


Quando tinha 15 anos, num feriadão de 7 de setembro, amarrei no bagageiro da minha bicicleta Caloi, com fios de sisal, uma barraquinha e uma mochilinha e fui sozinho até Cidreira. A viagem foi horrível, me dou conta hoje. Não levei água, contando que haveriam postos ao longo de todo trajeto. Os pneus estavam murchos já na saída. Carregava só uns poucos trocados. A bicicleta pesava uma tonelada e nem tinha marchas. O bagageiro era uma armação de arame toda soldada com guspe. Meus conhecimentos a respeito deste tipo de viagem eram nenhum. Não sei como meus pais permitiram a viagem! Acho que eles acreditavam no meu fracasso e num breve retorno.

A ignorância era total, o equipamento era sofrível, a distância era grande. Mas a disposição era a de um transatlântico, e eu consegui. Foi a viagem mais importante da minha vida. Todo tipo de obstáculo surgiu no meu caminho. Desidratação, hipoglicemia, exaustão, tontura. Quebrou o freio dianteiro, furou o pneu traseiro, o bagageiro desmanchou-se pelo caminho. Quase morri de frio a noite, fiquei com bolhas de queimadura solar, as coxas assaram, caí um tombaço, me escalavrei todo. Esqueci a toalha de banho e a escova de dentes, sequei ao vento e palitei num bar. Gastei tudo o que sobrou da minha “fortuna” num xis salada na noite anterior a volta. Todos os problemas que iam surgindo eu, espantosamente calmo, contornava com naturalidade. Depois daquela viagem percebi que se existia algum limite no meu mundo era eu que os fixava. De uma hora para outra recolhi uma âncora mental.

Cheguei em casa e a Mama perguntou:
- E aí? Como é que tava a viagem?
- Bá, mas tri boa, Mãe!
Nada se compara ao tremendo sentimento de liberdade que eu senti naquela viagem pioneira. Depois desta heróica primeira experiência fiz muitas outras viagens na adolescência.
Teve uma vez que passei um mês sozinho em Garopaba numa barraquinha de dois. No dia em que cheguei, procurei o camping mais barato. O Camping do Casarão era o mais em conta. As facilidades do camping eram: duas “duchas” (cano que saia da parede) e dois tanques, só. Perfeito. Fiz as contas, olhando o tabuleiro de preços de uma barraca de xis, para saber o que eu poderia comer diariamente de modo que meu dinheiro durasse um mês. Um hambúrguer sem ovo com uma garrafinha de Coca por dia era a melhor coisa que meu dinheiro poderia pagar. O plano econômico furou na segunda semana, tive que comprar um Hipoglós para tratar as bolhas de queimadura do sol nas canelas e no peito dos pés! Na última semana, para compensar o caríssimo remédio que arruinou meu orçamento, vendi todas as minhas camisetas e bermudas novas para o dono do camping. Com a grana extra, resolvi banquetiar, paguei um PF num restaurante de pescadores. Em duas horas vomitei tudo, era muito para o meu estômago de faquir. Perdi a fome por três dias, só tomava Chocoleite na Padaria Santos. Apesar das dificuldades consegui ficar o mês inteiro e foi o melhor veraneio que já tive. A sensação de independência era uma milionária gratificação para um guri de 16 anos.
A primeira vez que fui para serra de bicicleta foi com o Alemão. A Caloi já era outra, mais nova, mas também sem câmbio e com pneus balão. Claro que fomos no inverno e de barraca. E lógico que fez um frio do peru e choveu o tempo inteiro. E óbvio que deu bonk em todo mundo na subida da serra e nós chegamos exaustos depois de 12 horas de luta. E naturalmente não conseguimos dormir direito, encharcados e tremendo de frio. No meio da madrugada, quando a chuva deu uma trégua, levantamos e fizemos uma enorme fogueira de grimpas onde secamos e aquecemos tudo: roupas, sacos de dormir, sapatos, espíritos e corpos cansados. De novo, as complicações que apareciam só serviram para temperar a vida e torná-la ainda mais saborosa.
Teve inúmeras outras viagens, mas estas primeiras experiências foram decisivas, fui infectado pelo “wanderlust bug”. Nas viagens que se seguiram as coisas não eram tão sofridas. Fui aprendendo a evitar situações difíceis, o equipamento foi melhorando, as técnicas foram ficando menos ingênuas e o planejamento mais maduro. Depois as coisas se inverteram. Ao invés de esperar pelas dificuldades que poderiam aparecer ao acaso, criava algumas pelo prazer de vencer o desafio. Ir a pé, por exemplo. Delícia. Teve uma vez que caminhei até Esteio sem parar. Viajar a noite. Maravilha. Saí de casa às quatro da tarde com minha bici e às dez da noite estava montando minha barraquinha em Imbé. Que tempos heróicos aqueles, cheios de liberdade, energia, alegria e esperança. Claro que uma faculdade de engenharia, que exigia muito estudo e toneladas de exercícios de cálculos de todas as espécies, era uma coisa descabida na minha vida.
Quando acabei o segundo grau e completei 18 anos resolvi que já estava na hora de viajar. Mas não uma “viagenzinha” qualquer como as que eu já tinha feito, durante as férias ou em feriadões. Tinha que ser uma epopéia global de mais de ano. E tinha que ter neve, pelo amor de Deus, eu tinha que ver neve! América do Norte e Europa eram os continentes que acenavam com possibilidades de arranjar um emprego que desse dinheiro rápido para me catapultar ainda mais longe. A Europa parecia ser a mais interessante pela diversidade de culturas e pelo mistério. Só de ouvir as palavras “Eurorail Pass” eu já ficava excitadíssimo. Era como se fosse um poderoso mantra mágico que poderia me levar a qualquer lugar. O livro Let’s Go Europe, que só conhecia de ouvir falar da sua mística existência, era como um cálice sagrado. Já os Estados Unidos não me empolgavam muito, já eram conhecidíssimos dos filmes, não teria muita novidade. Falei aqui em casa sobre a viagem e ninguém deu muito ouvido. “-Faz o vestibular primeiro.” Fiz. Passei de cara. “-Termina a faculdade primeiro.” Ah, não, daí já é demais.
Comecei a me interessar por Londres, todo mundo dizia que era a Meca dos viageiros. Estava definido o objetivo. Pedi para o pai uma passagem de avião para lá, só a passagem, o resto eu me virava. Não ganhei de jeito nenhum. Resolvi então terminar o Parobé. Como técnico em mecânica eu poderia ganhar bem melhor que em qualquer outro emprego. Fazia a engenharia com um pé nas costas, só para não ser expulso de casa, não passava em nada. À noite, Parobezão. Terminei a escola técnica e saí a cata de emprego. Arranjei meu primeiro só em Esteio, ganhava 3 salários. Pouco, mas suficiente para eu largar a faculdade com uma desculpa de “carreira”. Colou. Depois de três meses naquela fábrica, fui chamado pela Termolar. Eram 6 salários a dois quilômetros de casa, ótimo. Troquei de emprego e trabalhei mais três meses para conseguir juntar 800 dólares, achei que bastava.
Assim que deu, larguei o serviço, já estava odiando cada momento lá. Era como uma prisão para mim, todas as atividades eram rotineiras. Desde a chegada na fábrica até a saída uma sucessão de rotinas. Ponto, vestiário, fedorão, piadinhas. Reunião no setor, definição de tarefas, submissão ao chefe, piadinhas. Retirada dos materiais e ferramentas necessários, manutenção preventiva das máquinas, barulheira, piadinhas. Ponto, fila, almoço, piadinhas. E assim ia o dia inteiro. Os caras eram felizes, as piadas eram mesmo engraçadíssimas. Para eles a vida era só aquilo ali, as piadinhas eram o momento de lazer deles. Já para mim não. Em vez de sustentar famílias, eu era o almofadinha do setor de manutenção. Com meu salário comprava dólares e preparava uma jornada intercontinental. Claro que eu nunca disse isto para eles. Para a peonada nas fábricas, viajar para Europa era ficção científica, como uma viagem espacial, impossível. Surpreendentemente, para minha família era um pouco assim também, ninguém nunca tinha ido lá e nem cogitavam. Era uma coisa “caríssima”, somente nobres e chefes de estado poderiam ir tão longe. Não seria eu, o ribeirinho monstro, que conseguiria. Só que eu estava determinado, tinha aquele sonho na cabeça e fazia tudo ao meu alcance para atingi-lo.
Durante todo este tempo de Parobé e trabalho nas fábricas, fui agilizando minha ida. Conversava com todo mundo que já tinha ido da forma alternativa, trabalhando. Fiz meu passaporte, minha carteira internacional de motorista e de alberguista. Tudo meio na surdina, para minha família minha “carreira” estava indo muito bem, as empresas me disputando a tapa, meu salário dobrando a cada três meses. Fiquei sabendo de um navio que saia de Rio Grande e ia para Oslo na Noruega uma vez por mês. Se chamava Borg e só levava bobinas de papel da Riocell. Os caras deixavam um ou dois carinhas ir cada vez, pintando, lixando e limpando. Mais de um cara que conversei tinha ido trabalhando neste navio. Vi até as fotos da viagem de um deles. Fiquei maravilhado, era assim que queria ir, de navio! Para mim, esta perspectiva era como laçar um pégasus distraído pastando, mitológica, lendária. Trabalhar num navio para pagar a passagem! Nada poderia ser mais sensacional, diferente, desafiante e aventuresco. Liguei para meu tio em Rio Grande para saber se poderia ficar lá uns dias: claro. Eu finalmente via luz no fim do túnel: Tinha dinheiro para ficar lá um tempo e o meio para ir. Tinha chegado a hora, arrumei a mochila e falei para família:
-          Amanhã vou para Rio Grande tentar pegar um navio para a Europa.
Foi um reboliço. De repente eles se deram conta porque eu limpava e lubrificava máquinas o dia inteiro a seis meses. Perceberam que realmente eu ia, quer eles quisessem ou não. Perceberam que eu já estava bem grandinho e capaz mesmo de atravessar o oceano. De última hora me arrumaram mais uns trocados que troquei por libras esterlinas no centro. Minha mãe foi comigo à rodoviária, fez questão. Naqueles minutos esperando o ônibus ela me contou, chorando, que sempre quis ser marinheira. Sempre sonhou cruzar os mares e conhecer outras terras, mas a sociedade, com seus muitos freios culturais, obviamente não tinha deixado. Ela me invejava.
Esta mesma surpreendente confissão eu ouviria depois que voltei de dezenas de pessoas. Sempre emocionadas, com o rosto contorcido e, se não às lágrimas, quase. Comecei a perceber o tamanho da minha coragem. Não era uma simples rebeldia adolescente, era um desejo profundo de liberdade e empreendimento.
em Rio Grande começaram os problemas. Estive em vários lugares: Companhias de navegação, representantes de armadores, companhias exportadoras, quartéis da marinha, polícia federal, consulados e embaixadas de tudo que é país europeu, prefeitura, gabinetes de vereadores, escola de marinheiros, até na sede dos escoteiros do mar eu estive. A maior parte do tempo eu ficava vagando pelo porto, subindo e descendo dos navios que atracavam e falando com capitães e embarcados. As pessoas me perguntavam:
-          Tu conheces alguém lá?
-          Não.
-          Tu sabes falar outra língua?
-          Não.
-          Tu tens bastante dinheiro?
-          Não!
-          Que navio tu vais?
-          Não sei. Espero que no Borg.
-          Tu sabes onde vai ficar lá?
-          Não.
-          Tu sabes onde conseguir trabalho?
-          Não.
-          Tu vais sozinho?
-          Vou.
-          Tu tá doido?
Era mais ou menos sempre este papo. A partir daí, todo mundo começava a me enfileirar um monte de possíveis tragédias que poderiam acontecer. Tinha desde ser jogado ao mar até ser fudido pela tripulação inteira. Isto eram só os problemas durante a viagem! Mas tinha os de lá também: ser deportado ao desembarcar, morrer de fome, morrer de frio, trabalho escravo, ser roubado, ficar doente, quebrar uma perna, etc, etc e etc. Não tinha ninguém, a não ser meu tio Luiz e a tia Hélida sob influência dele, que me dizia que poderia dar certo. Bueno, sei que só se pode saber se dá ou não dá tentando, e eu estava decidido a tentar.
Todo mundo sonha em mudar, mas quando alguém realmente começa a mudar esculhamba nosso mundinho estável. É como a reforma agrária, todo mundo é a favor, desde que em outro lugar. Ou como os automóveis, todo mundo identifica os problemas, mas sempre se pensa em ampliar o sistema, aumentar o problema e não solucioná-lo. É como o amor, ninguém se questiona nunca, mas todo mundo sofre. Mudar? Sim, mas não hoje, tá? Dieta? Sim, mas na segunda que vem, tá? Programa de exercícios? Sim, mas mês que vem, tá?
Fiquei um mês em Rio Grande tentando. Não deu. Voltei arrasado. Teria que trabalhar mais seis meses para juntar o dinheiro da passagem. Mais seis meses dentro de máquinas barulhentas e ensebadas. Mergulhei numa depressão profunda, hoje eu sei o nome daquilo. Dormia o dia inteiro e via televisão de madrugada. Fiquei assim um tempo. Depois de uns dois meses o pai marcou uma reunião, só comigo. Queria que eu voltasse a estudar, terminasse a engenharia, depois me daria a passagem. Eu disse que não, não sabia o que faria para conseguir o dinheiro, mas agora eu queria viajar. Ele disse então que assim não me ajudaria. Saco. A reuniãozinha resultou em mais um mês de madrugadas catatônicas e dias sonolentos. A Verô então, sempre ela, se reuniu com a Mama: com um guri morto dentro de casa não dava para ficar. Uma deu 200 outra deu 300 dólares, os outros 500 necessários para a passagem de avião a Mama pegou de uma poupança da família (claro que era ela que decidia o que iria fazer com o dinheiro). Fui dia 10 de outubro de 1989, com uma tremenda paz no coração.
Quase todas as tragédias que previram que aconteceria, aconteceram mesmo. Quando cheguei em Londres não me deixaram entrar, me mandaram para Holanda, país que eu nunca tinha ouvido uma palavra a respeito. Tive muita dificuldade em me comunicar. Demorei 20 dias para conseguir o primeiro emprego. O trabalho era escravo. Me envolvi num acidente de trânsito. Passei fome e frio. Não tive onde ficar. Fui preso pela polícia. Quebrei um dente. Cai de bicicleta e me escalavrei todo. Mas para todos os problemas surgia sempre uma solução quase que imediatamente após e eu encarava todas as situações com uma tranqüilidade de fazer inveja.
Apesar de todos os percalços, dois anos depois do início da viagem eu estava muito melhor do que quando havia partido do Brasil. Falava oito línguas diferentes, havia ganhado mais de 10.000 dólares trabalhando e com eles comprado a melhor bicicleta do mundo para viagem, havia morado em cinco países de culturas estranhas, rodado mais de 6.000 km por estradinhas do interior europeu, visitado vários museus, monumentos, palácios e castelos, experimentado comidas e bebidas exóticas, conhecido pessoas do mundo todo e não só tinha visto a neve como feito bonecos com ela, limpado calçadas cheias dela, deitado e rolado nela, até enjoar. Me sentia livre, jovem, forte, poderoso e feliz como nunca havia estado. Era independente de tudo e de todos e não sentia falta de nada nem de ninguém.
Por várias vezes nesta viagem à Europa eu encontrei uma encruzilhada no meu caminho. Eram momentos que eu tinha dinheiro suficiente para voltar de avião para casa. Eu poderia optar: ou voltar, já tendo viajado e aprendido bastante, ou continuar e perseguir uma maior realização de meu sonho mas com o risco de ficar sem dinheiro para voltar. Eu sempre optava, sem hesitação, por ficar e arriscar. Nunca tive dúvida das decisões tomadas e meu coração estava sempre  cheio de paz e alegria. Mesmo se precisasse passar fome, frio ou qualquer necessidade eu não ficava nem um pouco chateado, não me desesperava nem me deprimia. Até que cheguei em Gênova.
Cheguei em Gênova, o maior porto da Itália, com a quantia exata de uma passagem de avião para o Brasil no bolso. O dinheiro estava em várias moedas diferentes, mas eu sabia que convertendo tudo dava uns 1000 dólares. Fiz um balanço mental de toda viagem até ali. Eu já estava rolando há dois anos, atravessei a Europa de norte a sul de bicicleta, meu sonho havia se realizado completamente. O último mês inteiro eu tinha pedalado sem parar pelo sul da França procurando emprego e necas. Estava exausto, faminto e ignorando onde poderia arrumar emprego, não sabia nada da Itália. O país parecia ser bem mais pobre do que os outros que havia estado. Diferente dos outros países, eles pediam os documentos até no Camping. Tudo era o dobro do preço, até o pão. A Comunidade Européia estava para começar e havia uma sanha legalizadora de tudo. Meus dias de trabalho ilegal pareciam estar no fim. Tinha chegado na Itália fazia quatro dias e ainda não falava italiano, os caras lá não falavam outra coisa, ninguém me entendia direito.
Estava pensando todas estas coisas e num moto-contínuo fazendo o que deveria fazer para dormir mais uma noite. Fui num bureau de turismo perguntar onde era o Camping mais barato da cidade. A moça foi muito atenciosa, mas todos os campings eram afastados e caros demais. Neste momento me apareceu na cabeça uma encruzilhada. Duas enormes placas em formato de flecha apontavam para direções opostas, uma dizia “Israel” e a outra “Brasil”.
Israel é a solução dos viajantes do mundo inteiro quando se apertam. Nos Kibutz sempre tem trabalho, lugar para ficar, comida, amigos, dicas e idéias. Meu dinheiro poderia me levar até lá num tapa e eu estaria ampliando minha jornada com mais um capítulo sensacional no Meio Oriente. Outras culturas, outros climas, outras línguas, outra geografia, outras pessoas, outros caminhos se abririam para mim. Mas o risco era enorme, eu estaria a 2000 dólares de casa, mais 10000 km de distância. Quase que literalmente, para lá de Bagdad. Mas também tinha o risco de ficar ainda mais livre.
Se eu voltasse para o Brasil naquele momento estaria consagrado como um vencedor, um empreendedor de sucesso. Além de voltar quase que para o útero materno. Certeza de comida de graça, quente, variada e na hora. Cama seca e abrigada de qualquer intempérie. Ambiente acolhedor e rico de futilidades. Luxos como carro, tv, video, computador, som, livros e revistas. Escolas boas, ensino regular. Assistência médica e odontológica. Enfim, toda a segurança do lar. Só que, e isso eu não sabia, minhas asas seriam cortadas e eu seria engaiolado para sempre. Minha liberdade acabaria.
Li um livro do Paulo Coelho chamado O Alquimista. É um livro legal. Conta a história de um pastor que segue seu sonho, o rapaz Santiago. Todo o universo conspira a favor do sonho de Santiago enquanto ele o está seguindo. Muitas coisas boas e ruins acontecem durante sua jornada e muitas vezes o pastor encontra uma encruzilhada, mas sempre ele opta por seguir o seu sonho, apesar dos riscos. Mesmo diante das maiores dificuldades ele raciocinava que estava, naquele momento, melhor do que quando iniciou sua viagem. Perceber isto lhe reanimava e coisas boas passavam a acontecer. Ele sabia que se abdicasse de seu sonho, para o resto de sua vida sentiria uma angustia de não o ter realizado até o fim. É claro que, no fim do livro, ele realiza seu sonho.
Naquela encruzilhada de Gênova eu hesitei. Perguntei para moça do bureau de turismo, numa mistura de Inglês, Francês, Espanhol e mímica se, já que ali era um porto tão grande, por acaso não havia um navio de passageiros que fosse para o Brasil. Perguntei brincando, era óbvio que não ia ter. Para meu assombro, ela disse:
- Ecco là, guarda!
Me apontando um cartaz colado na parede ao lado da porta atrás de mim. Uma mulata carnavalesca anunciava um navio que fazia uma linha regular para o Brasil. Quase cai para trás de susto. Perguntei para moça então se ela não sabia quanto custava tamanho luxo. Ela tinha a resposta na ponta da língua, como se ela mesma tivesse interessada em partir, parecia entusiasmada com meu interesse:
- 1.260.000 lira!
Sim mas quanto, mais ou menos, era isto numa moeda mais internacional, digamos... Em dólares? De novo ela sabia de cor e, sem titubear um segundo, me respondeu com precisão:
-          Mille!
Estremeci. Não era possível! Eu estava a uma decisão de casa, do conforto, da segurança, da comida. E viajar de navio também era um antigo sonho meu. Peguei o endereço da agência que vendia as passagens e saí testaviando do bureau. Não podia gastar um centavo até decidir.
Naquele momento me pareceu melhor voltar. Eu fecharia com chave de ouro a viagem, seria uma história de sucesso total. Além de tudo, eu realizaria mais este sonho, o de viajar de navio. Decidi e comprei a passagem com todo o dinheiro que me restava, apesar de o navio só zarpar em doze dias. Depois de decidir me angustiei, meu coração se encheu de dúvida.
Até hoje me pergunto se aquela decisão foi por que já tinha ido até o fim na realização do meu sonho ou por encagaçamento. O Certo é que até hoje eu realmente me sinto um pouco enjaulado. Quanto mais eu me envolvo numa vida “normal”, menor é minha liberdade.
Desembarquei de um cargueiro com minha bicicleta no porto de Paranaguá, no Paraná. Já fazia dois meses que eu não telefonava para casa, quinze dias só de viagem no mar e dois anos desde que me despedi da família no aeroporto. Pedalei uns 130km até Joinville em Santa Catarina e descobri, na rodoviária, que todo o dinheiro que me sobrara era exatamente o preço da passagem de ônibus para Porto Alegre mais um Chicabom. Em nove horas estava em casa. Pedalei para o bairro Tristeza e apertei na campainha de minha casa às seis da manhã. Minha mãe atendeu o porteiro eletrônico perguntando quem era e eu dei um: Bom dia, Dona Belinha. Ela, meio sonolenta, não se flagrou que era eu.
- Bom dia, quem é? Perguntou já aborrecida.
- É teu filho Tiago, Dona Belinha.
Nesse instante ouvi, por fora do porteiro eletrônico, gritos de alegria:
- É o Tiago! O Tiago chegou! O Tiago tá aí!!

O barulho dela descendo as escadas correndo. Sim, naquele tempo ela ainda corria. Abriu a porta de calcinha e camiseta e me apertou num abraço apertado, chorando e rindo ao mesmo tempo. Eu também estava assim. Meu pai desceu correndo também, de pijama, naquela fria manhã de junho. Os dois me abraçavam e riam, se afastavam um pouco e checavam meu corpo, para ver se estava inteiro. Me beijavam e comentavam meu estado, como está magro, como está bronzeado, parece que espichou! Me botaram para dentro de casa e me serviram café da manhã, ligaram para os parentes e minhas irmãs que agora moravam fora. Meu pai, que nunca tinha me dado um centavo furado, me deu uma nota de cinquenta mil cruzados novos, se não me engano. Tinham cortado seis zeros da moeda durante minha ausência, aquela nota estranha que não conhecia, depois fiquei sabendo, era a de maior valor na época.

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