terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Sobre Futebol

Há mais de 200 anos, as primeiras fábricas do mundo surgiam na Inglaterra. Elas eram movidas a músculos de seres humanos e animais em jornadas de trabalho que iam de 12 a 16 horas por dia. Logo os trabalhadores começaram a ficar cansados e doentes de tanto trabalhar. O trabalhador cansado e doente era demitido por não produzir tão bem, e outro, que nunca tinha trabalhado em fábrica, são e descansado, era contratado. Aos poucos não tinha mais nenhum trabalhador são. Eles resolveram então se unir para reivindicar direitos e evitar a exploração abusiva da mão de obra. Eles criaram os primeiros sindicatos e os chamavam de "UNIÃO DE TRABALHADORES". Até hoje os sindicatos nos países de língua inglesa são conhecidos como "union", palavra que significa UNIÃO. Se alguém era demitido ou super explorado, todos trabalhadores, unidos e solidários, paravam de trabalhar, paravam de produzir, faziam uma GREVE. "Strike" em inglês, tanto significa greve como atacar e bater. Assim, atacado e batido, o patrão tinha que negociar e ceder, porque fábrica parada não dá dinheiro. A união dos trabalhadores e suas greves eram a única forma de pressionar o patrão para conseguir obter melhorias nas condições de trabalho, remuneração e direitos.
Os patrões e donos de fábricas não gostavam das uniões de trabalhadores porque "direitos" diminuíam os lucros da empresa. Para se ver livres dos sindicatos as fábricas foram atrás da modernização, as empresas começaram a mecanizar o processo produtivo, trocar trabalhadores por máquinas. As máquinas não se unem, não fazem greves, produzem mais rápido e não precisam descansar. Os patrões puderam demitir bastante, deu muita greve por isso, mas ainda assim eram necessários trabalhadores para operar e manter as máquinas funcionando. As máquinas eram movidas a vapor, isto deixava as fábricas muito cheias de fumaça e fuligem de carvão no ar. O ambiente era barulhento e insalubre, o ar lá dentro era ruim de respirar. Os trabalhadores, com sua forte união, reivindicaram tempo de descanso ao ar livre, durante o horário de trabalho, para poder respirar ar puro. Os patrões tiveram que ceder.
No horário de descanso conseguido, os trabalhadores saiam pelas ruas do bairro onde estava a fábrica conversando, rindo e brincando uns com os outros. Ainda não existiam ônibus e carros como hoje em dia, não dava para morar longe, eles todos moravam nas vizinhanças da fábrica. Mas, geralmente, eles rumavam para a feira do bairro, nalguma praça, onde todo o povo circulava durante o dia. As feiras eram diárias: A primeira feira da semana era no domingo, depois tinha a segunda-feira, a terça-feira, a quarta-feira... Tinha todo dia. Ainda não havia shoppings, nem supermercados, nem rádio, nem televisão! Todo mundo ia à feira para abastecer a despensa, se informar e se divertir. Tinha muita música, teatro, notícias e namoro, além claro, das compras. Os trabalhadores no seu horário de folga encontravam ali, além de seus próprios colegas de trabalho, seus amigos, vizinhos, parentes e namorados. Era uma algazarra, uma folia! Logo alguém pegava uma cabeça de porco jogada no lixo, ou um repolho feioso, e jogava pelos ares, brincando. Todos saiam atrás da "bola" e, por um momento, a feira parava para brincar.

O folguedo, a brincadeira da hora da folga, não tinha nenhuma regra e nenhum objetivo a não ser se divertir. A coisa funcionava mais ou menos como a nossa farra do boi. Os folgazões corriam e trombavam com tudo, invadiam casas, derrubavam tabuleiros da feira, se amontoavam em vielas estreitas, tropeçavam e caíam no chão de pedras da praça. Todos riam muito e se divertiam, mas alguns se machucavam. Até hoje essa brincadeira ainda é praticada em pequenas cidades do Reino Unido.



O horário de descanso fortaleceu a UNIÃO DOS TRABALHADORES. Todos se conheciam bem, brincavam juntos, tinham uma relação de amizade e, quando preciso, se solidarizavam uns com os outros. Mas, as brincadeiras do horário de descanso, faziam muitos trabalhadores voltarem para as fábricas impossibilitados de produzir por terem se machucado com o folguedo, principalmente nas mãos. As mãos machucadas não produzem, os donos de fábricas não gostavam nada disto, mas não podiam proibir o horário de descanso ao ar livre, pois sabiam o que isto significava: GREVE!


Eles então começaram a impor regras para o descanso. A primeira foi proibir os trabalhadores de sair do pátio da fábrica no horário ao ar livre alegando que era horário de trabalho. Os trabalhadores aceitaram esta alegação dos patrões e o pátio foi murado. Isto não adiantou para o que os patrões queriam, diminuir as lesões nas mãos, pois sempre alguém improvisava uma "bola" para brincar com seus amigos no pátio mesmo, nem que fosse o próprio uniforme enrolado numa pedra. Os patrões, então, começaram a fornecer a bola para a brincadeira do horário de descanso, só brincava quem usasse ela. Ela devia ser bem redonda e cheia de ar para, se batesse em alguém, não machucar o funcionário. Nenhum trabalhador se opôs a isso. O trabalhador caia no chão duro do pátio? O patrão colocou grama bem fofinha! O empregado se batia contra a parede? O chefe riscou com cal uma linha retangular na grama e dali não podia passar se quisesse continuar brincando. Mesmo assim, muitas vezes algum operário machucava as mãos ou os braços caindo, jogando ou pegando a bola e mãos machucadas não operam máquinas. Daí surgiu a regra mais importante para os patrões naquele momento: Não pode mais pegar a bola com a mão ou com qualquer parte do braço, só chutar! Apesar de todas estas regras impostas pelos donos das fábricas, os trabalhadores continuavam a brincar, rir e se divertir muito juntos no horário de descanso ao ar livre.
Mesmo com todas aquelas restrições, a UNIÃO DOS TRABALHADORES se fortalecia ainda mais com o horário de descanso ao ar livre e os patrões planejaram meios de acabar com ela. Eles tinham que achar um meio de dividir os empregados e jogar uns contra os outros para acabar com sua solidária união. Assim, eles planejaram mais regras para aquela brincadeira que todos gostavam de participar. Dividiram todos os empregados em “teams” de dez homens cada. A palavra “Team”, em inglês, significa grupo de trabalho e era muito usada nas fábricas, conhecida dos operários. Brincavam somente dois “teams” de cada vez, assim muitos grupos de trabalho nem iriam brincar no momento ao ar livre. Os patrões colocaram arquibancadas para que quem não estivesse brincando pudesse descansar e assistir os companheiros brincarem.

Ninguém achou isto ruim, porque o direito a saída de descanso ao ar livre para respirar estava garantido e todos ainda se divertiam com as situações engraçadas que aconteciam durante a atividade. E muito menos gente se machucava na brincadeira! Os patrões também tiveram o cuidado de fazer “teams” para o folguedo com grupos de trabalho de setores diferentes da fábrica para que os colegas de brincadeira fossem também colegas de função no trabalho. Assim, ninguém suspeitou de nada, todos continuavam brincando com seus amigos. O detalhe que passou despercebido para os trabalhadores é que caldeireiros faziam um “team” que iria brincar junto, mas "contra" os soldadores, fresadores "contra" torneiros, produção "contra" manutenção, etc. Assim, as pessoas trabalhavam com amigos do seu próprio “team” da folga, para produzir bem, mas não se uniam para reivindicar coisas com outros funcionários da fábrica, pois agora eram de um grupo de trabalho, ou “team”, adversário. A palavra “team” foi aportuguesada como “time”. A UNIÃO DOS TRABALHADORES se enfraqueceu muito: os patrões conseguiram jogar os grupos de trabalho uns contra os outros, até os próprios grupos de trabalho se jogavam contra os outros com ardor. Jogar contra passou a ser um desejo dos trabalhadores e o lado perverso disso não foi percebido na época. Os patrões começaram a gostar do descanso ao ar livre. A regra dos times competindo entre si logo se transformou na mais importante para os donos de fábrica, mais até que aquela de não pegar com a mão.
Eles deram um nome para a atividade: "foot-ball". A tradução seria "pé-bola". A brincadeira se tornou uma excelente metáfora para os funcionários entenderem o mercado: há que se competir, atingir metas de produção, se esforçar muito, mas só os mais competitivos vão sair vencedores. No foot-ball cada time ficava no seu campo e quando começava a brincadeira o apito da fábrica soava e os times tinham que ir chutando a única bola para uma meta no fundo do campo do outro time. A palavra meta em inglês é "goal", mas se diz gol. O outro time, a metafórica competição, tentava evitar que isto acontecesse e tentava roubar a bola para atingir a sua meta que estava no lado oposto do campo. Assim, uns trabalhadores tentavam impedir que os outros atingisse seu objetivo e os objetivos dos dois times de operários eram diametralmente opostos. Aqueles de um time tentavam fazer com que o outro time não jogasse! Isto deixava alguns empregados muito irritados com os outros porque todos queriam brincar, mas alguns não conseguiam. Os patrões gostaram quando viram que começou a ocorrer até brigas no momento de descanso. Instituíram então prêmios para aqueles trabalhadores que cumpriam todas as regras e não brigavam. O plano de dividir e desunir os trabalhadores estava funcionando perfeitamente.
Aos poucos, mais regras foram sendo introduzidas, já que os trabalhadores aceitaram as novidades na "brincadeira" do pé-bola, afinal, o tempo ao ar livre estava sendo respeitado pelos patrões. Mas, realmente, não era visível na época, para os funcionários das indústrias, a função perversa das regras do jogo. Assim, os próprios empregados pediram algumas modificações no jogo. Os patrões permitiram somente as modificações que não mudavam nada no que eles queriam: a competição entre os agora ex-amigos. Todos pediram para que tivesse pelo menos uma pessoa do time que pudesse pegar a bola com a mão para evitar a entrada dela na meta. Os patrões cederam, desde que este participante usasse roupas almofadadas e luvas para proteção para não se machucar. Além disto, este guarda meta, o décimo primeiro jogador do time, só poderia pegar com a mão na bola dentro de uma determinada área a ser pintada no chão perto da meta. Qualquer descumprimento das regras era punido com a perda da posse de bola, era um pecado, uma falta, parava o jogo no local da falta. Se a falta fosse feita próximo à meta, na área em que o guarda meta podia pegar com a mão, o castigo era maior. A palavra "penalty" pode ser traduzida como castigo. Nas primeiras vezes que o penalty foi cobrado, a covardia era tão grande que ninguém chutava em direção a meta, preferindo chutar para lateral do campo. Muitas vezes os participantes esqueciam das regras e o jogo entre adversários com metas a atingir, voltava a ser uma folia entre amigos, uma brincadeira descompromissada. Os patrões não gostavam disto, eles queriam que os empregados achassem importante atingir as metas, mesmo as covardes cobranças de penalty. Assim, diante da importância da atividade, os próprios donos das fábricas, de cartola e fraque, aparecem nas fotos das primeiras vezes que esta brincadeira foi praticada na Inglaterra. Os patrões foram os primeiros juizes! Eles, ricos e finos, se dispunham a ficar em campo, no meio dos trabalhadores sujos e fedorentos, durante o jogo, com apito na mão, para parar a brincadeira se alguma regra fosse descumprida.

Não podia pegar com a mão, não podia sair do espaço marcado no campo de grama, só alguns funcionários participavam e eles tinham que buscar a meta no campo do adversário. Os patrões se interessavam em participar diretamente porque perceberam logo a mina de ouro que tinham em mãos. Aquela atividade era aceita pela massa dos trabalhadores que entendiam que era o resultado de anos de negociação entre patrões e empregados na luta por descanso ao ar livre. Mas a verdade era que os donos de fábricas acharam uma forma muito eficaz de acabar com a UNIÃO DOS TRABALHADORES colocando uns contra os outros. Assim, os patrões conseguiram, mesmo atendendo a reivindicação dos funcionários por tempo ao ar livre, dividir e desunir os trabalhadores. Para que um time vencesse o outro tinha que perder. O que antes era uma brincadeira entre amigos solidários em que todos riam e se divertiam, uma atividade ganha-ganha, os donos de fábrica conseguiram transformar num perverso jogo entre sérios adversários em que muitos são excluídos da atividade e metade daqueles que conseguem participar perdem, virou uma atividade ganha-perde.
Assim foi surgindo, nos pátios das fábricas inglesas, o que a gente conhece hoje em dia como futebol. Os donos de fábricas, donos de bancos, donos de empresas de toda espécie, enfim, donos dos meios de produção e donos do capital gostaram muito do pé-bola, do futebol. A brincadeira se revelou uma maravilha para desunir os trabalhadores. É por isto que rapidamente o futebol ganhou tanta visibilidade. Os capitalista se dispuseram logo a pagar a difusão daquela brincadeira. Surgiram muitos patrocinadores para a construção de estádios inteiros,

altos salários para uma minoria de trabalhadores que praticavam bem a atividade

 e até cobertura dos eventos pelo rádio e depois, o que nós estamos acostumados hoje a ver: televisionamento ao vivo em rede nacional em horário nobre. É por isto que toda escola tem sua quadra de futebol. É por isto que todo o sistema se esforça para o povo gostar de futebol, querer futebol, desejar futebol, amar futebol!

E, principalmente: jamais questionar o futebol! Futebol é sagrado porque é um dos mais eficientes instrumentos de esfacelamento da organização e da união dos trabalhadores. Faz isto de forma tão sutil que a maioria dos trabalhadores nem percebe sua perversa verdadeira função na sociedade. Futebol ensina que tem que se esforçar muito (trabalhar, produzir), seguir todas as regras (não desobedecer, não subverter, nem propor mudanças no sistema), mas, ainda assim, muitos não vão nem jogar, muito menos vencer. O importante é competir, eles dizem. Então, todos têm que se resignar! A vida é assim, eles dizem, uma competição, ganha-perde. Só alguns vão andar de Mercedes Benz, mas a esmagadora maioria, resignada, eles querem, vai andar de ônibus. Se a pessoa for bem submissa às regras, capacho mesmo, talvez o patrão a coloque no cargo de supervisor. E, se alguém ainda não ganha bem, é porque ainda não foi capacho o suficiente, é o que eles querem.

Tudo que a mídia falar sobre futebol é mentira! Promove a saúde? Mentira! Futebol causa muito mais lesões graves

e problemas do que benefícios à saúde. Promove a inclusão? Mentira! Para cada Ronaldinho tem dez mil operários do futebol que não ganham nem o salário mínimo. Afasta das drogas? Mentira! Entre os praticantes a média de usuários de drogas é igual a da população em geral, vide Maradona. É tudo mentira! O futebol é muito rico em ilusões. Forja um caráter? Bom, aí é verdade, futebol realmente forja um caráter: um maldito caráter de oprimido submisso ou um repugnante caráter de opressor arrogante! Todo trabalhador tem que ter consciência da real função social do futebol, o ardiloso lado fisiológico vil, perverso, obsceno e imoral do futebol: O futebol serve para desunir os trabalhadores e fazer com que eles desejem uma sociedade de competição onde só alguns poucos erguerão a taça e milhões baixarão suas cabeças resignados para trabalhar ainda mais e mais submissos as regras.


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