terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Aquele tempo do Julinho

Quando eu era bem pequeno, talvez uns três ou quatro anos, minha mãe me levou ao centro por alguma razão. Pegamos o ônibus Otto Niemeyer, também não lembro porque, era uma linha horrível. Demorava horrores para vir, os ônibus eram todos muito velhos e a viagem era muito mais longa e cheia de voltinhas que outras linhas que iam para o centro. Mas, sair de casa naquela idade para mim, por qualquer motivo, era um programão.
Toda a função de sair já me excitava. Vestir roupas diferentes, esperar na esquina olhando os carros passarem, subir nos degraus altos do ônibus, o cano de descarga soltando fumaça preta atrás da janela de trás, ver os carros de cima, caminhar dentro do ônibus se segurando para não cair, passar por baixo da roleta, ver a mãe negociando a passagem e pedindo informações, o monte de dinheiro preso dobrado entre os dedos do cobrador, o jeito que ele passava o dedão na língua para folhear as notas, sentar ao lado de algum estranho esquisito, o calombo do motor ao lado do motorista, a palanca de câmbio balançando, o enorme volante branco na horizontal que o motorista girava várias vezes para dobrar a esquina, os diversos enfeites que cada motorista usava para decorar seu lugar, enfim, um verdadeiro playground. Nos primeiros momentos dentro do ônibus minha atenção se voltava para aquilo tudo. Eu me tornava um manancial de perguntas, dúvidas e curiosidades que jorrava sobre minha mãe. Ela, pacientemente, me respondia tudo como podia. Os detalhes todos me entretinham fantasticamente. Meu cérebro ficava plenamente carregado de informações levadas pelos sentidos: Era um momento sensacional! O barulho incrível que fazia o motor, o tato e a estampa imitando mármore da fórmica do banco da frente, o difícil puxador da janela me possibilitava tomar vento na cara, a bala Azedinha que a mãe dava para distrair na viagem, muito sol, luz, cor e movimento por todo lado, qualquer estranho era interessantíssimo e até o cheiro do perfume da minha mãe e sua maquiagem me interessavam. Depois de um tempo, eu colava a cara na janela e ia me deliciando com todas aquelas coisas novas que iam desfilando para mim na rua.
Naquele dia, passamos por uma praça onde vi uma cena que ficou gravada para sempre na minha memória. Não foi nada grave, obsceno ou nojento, mas, por alguma razão que desconheço, ficou. Havia um aglomerado de jovens, umas cem pessoas, imagino, assistindo um barbudo falar ao megafone sobre um banco da praça. Mostrei para minha mãe a cena e pedi explicações. Ela explicou que eram estudantes do colégio que estavam se manifestando por algum motivo. O ônibus continuou e, provavelmente, cruzei com diversas outras cenas que me interessaram na época. Mas só esta cena ainda me recordo hoje: dos estudantes ouvindo o barbudo falar ao megafone no banco da praça.
A cena da praça ficou décadas completamente adormecida na memória. Cresci e fui fazer o segundo grau na Escola Técnica Parobé no centro. Foi um momento muito rico e feliz da minha juventude. A escola era quase que toda de rapazes pobres, praticamente um internato masculino. Um ano antes de eu entrar, os estudantes da escola tinham feito uma greve de um mês, exigindo qualidade de ensino e aumento salarial para os professores. Sim, os estudantes, eles que chamaram e tocaram a greve e foram apoiados pelos professores atônitos e ainda temerosos que a abertura política não fosse assim tão aberta. Os alunos do Parobé pararam não só a escola, mas todo centro da cidade com passeatas nas ruas e atos públicos em praças. Coincidentemente, o presidente do Grêmio Estudantil tinha sido namorado de minha irmã Betânia. Ele ficou famoso na cidade de tanto ser entrevistado pelas emissoras de TV. Ele vivia com o megafone na mão liderando os alunos para a luta. Eu vi tudo pela televisão, mas isto tudo não foi suficiente para eu lembrar daquela cena que vi do ônibus, ao lado da minha cheirosa mãe, na infância.
Quando entrei no Parobé, a luta já tinha sido vencida pelos estudantes, o governo do estado atendeu as justas reivindicações dos jovens. Nadávamos nos mares da glória e não havia muita movimentação para fazer qualquer outra coisa. Nós estávamos satisfeitos e nos orgulhávamos da qualidade da escola. O ambiente era de eterna festa. Vivíamos unidos, as gargalhadas, tínhamos um circulo de amizade muito grande. Todo recreio saiamos caminhando da escola para uma confeitaria popular que existia ali por perto. Íamos olhando as bundas, debochando uns dos outros, fazendo planos de carreira em empresas ou empreendimentos próprios, discutindo os problemas de estágios e argumentando sobre o melhor veneno dos carros que passavam. Era uma época de muita camaradagem, franqueza, fraternidade, alegria, sonhos e esperanças. Emprestávamos trocados uns para os outros e dividíamos a mil-folhas, um que outro conseguia comprar uma coca-cola caçulinha, mas já sonhávamos com nosso primeiro emprego, com nosso primeiro carro, com nosso primeiro filme pornô, com nossa primeira namorada, com a nossa primeira transa, com nosso primeiro qualquer coisa. O tempo de ócio juntos nos era muito mais caro e precioso que o tempo em aula. Muitas vezes matávamos aulas para vagabundear pelo centro, passear e conversar. Nos sentíamos culpados e receosos de sermos flagrados por alguém conhecido, mas o risco valia a pena. Aprendíamos muito mais o que precisávamos aprender na adolescência no ócio com amigos do que em aula.
A escola completaria cem anos. Para comemorar organizaram uma semana de festejos. Era uma grande gincana entre as turmas da escola. A turma que quisesse participar estava liberada das aulas, mas tinha que apresentar os resultados de cada tarefa sob pena de levar faltas nas aulas. A turma que não quisesse participar da gincana teria que assistir as aulas normalmente. Depois de refletir e debater demoradamente por mais de vinte segundos, nossa turma decidiu participar da gincana. Segunda as sete da manhã lançaram a primeira tarefa. Tínhamos que descobrir algo fora da escola. Saímos em bando, aos risos e empurrões, mais alegres do que nunca, debochando um do outro, derrubando tudo, chutando as pastas um do outro. Fizemos a tradicional parada na confeitaria. Tínhamos bastante tempo, não era só um recreio, nossa parada na confeitaria foi muito maior, debatemos os peitos da atendente com mais calma e detalhe, imaginado como ela seria na cama. Alguém tentou imitar a voz da atendente chegando ao orgasmo especulando o que ela diria. Pode parecer estranho, mas era uma turma que eu não via malícia nenhuma, muito engraçada, sincera, eles me faziam rir muito. Depois fomos tentar cumprir a tarefa da gincana.
Não tínhamos a menor idéia de onde ir. Caminhamos a esmo pelo centro e chegamos ao parque da redenção. Paramos para descansar, exaustos da estafante manhã de ócio e risada, sentados nos bancos do parque, saboreando a riqueza da nossa vida. Uns dois ou três colegas começaram a ficar angustiados pelas faltas que teriam se não cumprissem a tarefa da gincana e voltaram para a escola. Nós continuamos a deriva e descemos a Avenida João Pessoa até a praça na frente do Colégio Julio de Castilhos, o Julhinho, alguém lembrou que lá tinha muita mulher e fomos olhar a saída das gatas ao meio dia. Era umas onze e meia e já havia uma multidão de meninas da nossa idade ali na praça. Era um festival de mulher! Haviam rapazes também, mas nós, da escola técnica, só víamos as mulheres. A cada instante saia mais uma gostosa do colégio e nós não tínhamos olhos suficientes para analisar tantos peitos, bundas, coxas, cabelos, pernas, saias, olhos e detalhes femininos em geral. Para nós que tínhamos uns dois por cento de mulheres na escola, aquela paisagem de uns sessenta por cento de mulheres era um oásís. Ficamos doidos, nos torcendo de angustia de não estar naquele colégio. Me amaldiçoei por ter entrado no difícil Parobé, o comentário era que o Julhinho, além de cheio de mulher, era muito mais fácil.
Todo o resto da semana foi tomado com esta árdua tarefa: às sete da manhã fingíamos que tentaríamos cumprir alguma tarefa da gincana. Deixamos loucos os dois ou três mais preocupados com as faltas da turma que realmente tentaram fazer algo da gincana, mas às sete e cinco já saiamos da escola os deixando aliviados para trabalhar em paz e íamos passar a manhã na frente do Julhinho. Ficávamos redemunhando por lá para ver uma ou outra menina entrando ou saindo do colégio e já na esperança de rever alguma mais gostosa do dia anterior para melhor avaliar o produto. Por sorte, aqueles dois ou três preocupados, conseguiram cumprir algumas tarefas e abonaram para turma toda as faltas na semana.
Umas três semanas depois, o colégio Julinho organizou um festival de vídeos e convidou os alunos do Parobé. Lá fomos nós de novo, ansiosos. Pela primeira vez entramos na escola, vibrando, literalmente, com a excitante oportunidade. No saguão do colégio já fomos apresentados ao primeiro galpão crioulo criado em zona urbana pelo estudante Paixão Côrtes, atitude que criou o movimento tradicionalista gaúcho. Ali, naquele saguão, tinha sido criado o primeiro CTG da história, por um estudante da minha idade. Depois fomos informados que ali naquela escola pública tinha estudado o Brizola, o Scliar e outras tantas figuras públicas do Rio Grande do Sul. Uma enorme angustia nos tomou, realmente estávamos na escola errada, estávamos perdendo o bonde da história. No auditório lotado de mulheres, assistimos o filme The Wall, do Pink Floyd. Nesta época, eu era fâ do Pink Floyd e tive a certeza, errei ao entrar no Parobé. A atividade cultural do meu Parobé se resumia ao xadrez oferecido no recreio. Era uma escola técnica, voltada para a área de exatas, um quadradão perfeito.
Um ano depois, eu já andava resignado e até gostando do meu quadradão Parobé. Mas, aquela mesma minha irmã Betânia, comprou um disco de um cantor portoalegrense que morava perto da nossa casa, se não me engano seu nome era Nélson Coelho de Castro. Ele fazia sucesso nas rádios FM locais com uma ou duas músicas, mas no disco tinha outras músicas menos conhecidas do cantor. Uma delas se chamava “Aquele tempo do Julinho”. E a letra começava assim:
Aquele tempo do Julinho, né?
Eu nunca mais vou esquecer
Eu voltava a pé do centro
Na angustia de viver
Na época que minha irmã comprou o disco, ouvi umas duas mil vezes a música e cada vez que ouvi aumentou minha angustia de não ter tido aquele meu justo tempo de Julinho. Não lembro do resto da letra, mas tinha algo com subverter a ordem, correr da polícia, contestar o mundo e namorar. Não sei mais nada da letra, minha irmã casou (não com o presidente do Grêmio Estudantil), se mudou, levou o LP de vinil embora e nunca mais ouvi a música. Ela só fica reboando na minha memória. Não sei se só na minha lembrança a letra abarcava tudo isso, talvez só falasse de comer churros com mumu na praça, mas eu construí esta falsa (ou verdadeira, não lembro mesmo) lembrança duma letra mitológica.
Muito tempo depois disto tudo sai de Porto Alegre, me mudei para Florianópolis. Comecei a trabalhar como professor da rede municipal de ensino e me envolvi com o movimento sindical dos funcionários da prefeitura. Curioso que a categoria é basicamente de mulheres, como meus sonhos de adolescente. Lá pelas tantas de uma data base qualquer, o sindicato de que faço parte realizou um ato público na praça central de Florianópolis, um dirigente barbudo sobe no banco com um megafone e fala para o aglomerado de gente que estava ali, inclusive eu e um monte de mulheres. A polícia de choque cerca o grupo e ameaça dispersar todo mundo a porradas.

Passados uns dias deste ato público do nosso sindicato, num momento de ócio, caminhando na beira mar num dia de sol, eu já com quarenta anos, passo por uma mulher cheirosa no exato instante em que um ônibus barulhento passava fazendo fumaça preta, a cena que vi do ônibus ao lado de minha mãe aos três anos de idade me volta à memória com nitidez. Foi um flash-back sensacional. Bastaram alguns instantes para eu perceber que aquele grande homem barbudo falando ao megafone sobre o banco da praça era um adolescente aluno do Julinho, que o aglomerado de jovens era um monte de outros estudantes, que a praça era aquela em frente ao Colégio Julio de Castilhos na Avenida João Pessoa em Porto Alegre e que, provavelmente, logo após nós termos passado de ônibus, a polícia baixou o cacete neles todos dispersando a manifestação porque estávamos em pleno AI-5. Fiquei feliz com a lembrança e aos poucos fui me dando conta que finalmente eu estou vivendo a adolescência que tinha sonhado e que pensei ter perdido. Eu, finalmente, aos quarenta anos, cheguei no momento de viver meu justo tempo de Julinho e usufruo o prazer intenso da angustia de viver! Que sensacional!

3 comentários:

  1. Estudei no Julinho, na época não ouviram muitas manifestações. Me jogaram no "laguinho" como era conhecido o chafariz que ficava na praça...mas com o meu consentimento, porque eu era uma das adolescentes gostosas de minissaia....kkkkk.
    Fui para o Julinho no segundo ano, pois o primeiro ano iniciei com magistério....entrei no turno da tarde, tinha uma professora de física (Marciana) que ficava dizendo: quem vem do magistério roda comigo. Bah... percebi que estava faltando a base de alguns conteúdos, acionei meus primos e meu namorado, e mudei para noite. Passei! Outra lembrança...é de uma amiga que queria beber cerveja ,(eu não bebia), mas ela não tinha o dinheiro.... então, com a minha cara de pau e de menina certinha pedi para a professora de biologia...a minha surpresa foi que ela emprestou porque era eu...no outro dia devolvi o dinheiro para não quebrar a ideia que ela tinha, pois eu adorava essa professora.
    Quem estudava a noite era liberado das aulas de Ed. Física, mas como eu gostava me inscrevi em vôlei... não fui aceita porque era necessário saber muitos tipos de rotação. Tentei o atletismo....fui bem, a prof. gostaria que eu ficasse, mas eu não quis. Escolhi handebol...eu jogava no time, mas era muito ruim perto das minhas colegas. Nessa época eu usava aqueles calções curtinhos....que atrapalhavam o professor de Ed física, pois as vezes ele tinha que fechar a porta do ginásio pois os guris atrapalhavam....kkkkk

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