domingo, 20 de outubro de 2019

Sobre os Jogos Cooperativos de Osório
Muitos dos valores sacralizados na sociedade brasileira moderna vieram da antiga Grécia. A democracia é o exemplo que mais salta aos olhos. No entanto, se estudarmos a democracia grega, veremos que se trata de um sistema de governo bem diferente do nosso. As ideias que tinham lá, a ideologia dominante de então, não mais avaliamos como justas ou mesmo sensatas. As mulheres eram consideradas coisas, meros homens que nasceram estragados, degenerados, do avesso, com vaginas no lugar de pênis, não tinham poder político nenhum. Os escravos, tanto homens quanto mulheres, também não tinham direito ao voto, pois não eram considerados cidadãos de Atenas. As decisões importantes, que iam para a Ágora para votação, eram feitas somente por dez por cento da população ateniense da época, os cidadãos plenos de direitos, homens livres. Era uma sociedade aristocrática onde somente os ricos decidiam os destinos do povo. Mas, ao longo do tempo, uma lenta sofisticação moral da sociedade foi contaminando os pensamentos dos cidadãos. Demorou uns dois mil e quinhentos anos para que a escravidão passasse a ser vista como descabida e as mulheres também serem aceitas como cidadãs plenas. Porém, a ideologia grega de decisões coletivas, onde cada cabeça vale um voto, se perpetuou e até hoje defendemos ideias em público para apreciação da população em eleições.
Se pensarmos na educação, a ideologia dominante daquela sociedade ancestral era também aristocrática. Parecia inútil gastar dinheiro em escola formal para pessoas que eram vistas como incapazes de aprender: mulheres, escravos ou deficientes. De novo, os homens livres tinham direito a professores pagos, o resto da população não. Mas, felizmente, também nessa área, uma lenta evolução ideológica transformou a sociedade para uma maior inclusão. Atualmente, as escolas públicas e gratuitas já são aceitas como normais no Brasil, lutamos inclusive para qualifica-las. Já está no imaginário popular que nenhuma criança deve ser excluída da educação formal, independente do sexo, religião, cor da pele ou qualquer outra diferença, nem mesmo os deficientes mentais devem ficar de fora. Existem até mesmo mecanismos de punição para os pais que não colocarem seus filhos na escola e os estimularem a frequentar as aulas. Em algum momento, os legisladores decidiram que assim seria melhor para a vida em sociedade, situação bem diferente de antigamente. A ideologia dominante deu uma grande guinada em direção a inclusão universal na educação, tornando a ideologia anterior uma aberração excludente.
O conjunto de ideias que regem a sociedade, a ideologia dominante defendida pelos cidadãos, vai mudando com o tempo de forma dramática. As escolas públicas, assim como as conhecemos hoje, nem sempre existiram. Foram começando a se tornar hegemônicas no ocidente a partir da revolução industrial. Tanto oprimidos quanto opressores, começaram a percebê-las importantes e dignas de investimento público para formar novos operários para as nascentes fábricas que surgiam. Evidentemente, o que seria ensinado nas escolas foi decidido seguindo a ideologia dominante da época. O conteúdo deveria ser útil para os trabalhadores da indústria: matemática e a língua escrita deveriam ser os principais assuntos estudados para formar operários capazes de ler e calcular operações do trabalho. Se sobrasse tempo, nalgum intervalinho, poderia se pincelar alguma arte, música ou história. Ainda hoje, matemática e língua portuguesa tem mais espaço na grade curricular com cinco períodos semanais cada. Já artes conta somente com um período, cristalizando na cultura popular o carácter menor, desprezível ou até fútil daquele conhecimento.
Dentro da escolarização, a ideologia dominante também foi transformando a Educação Física. Junto ao surgimento das primeiras escolas públicas na revolução industrial, a disciplina tinha a intenção higiênica de formar operários saudáveis, alunos com corpos aptos para o trabalho. Muitas sessões de ginástica calistênica nessa época. Logo, com as grandes guerras mundiais, o foco das atividades era militarista, a formação de combatentes capazes de defender a nação. O atletismo, as lutas e os exercícios de força são introduzidos nas aulas. Finda a segunda guerra, sem mais a necessidade de formar soldados, a Educação Física voltou a priorizar o desenvolvimento de um corpo são, mas agora também considerando a mente como parte indissociável do corpo: “mens sana in corpore sano” era um mantra que foi introduzido e é até hoje repetido. As aulas passaram a considerar também a socialização dos alunos como importante, assim as danças e os esportes foram introduzidos. Logo em seguida, com o golpe militar de 1964, a ideologia mudou de novo passando a valorizar a obediência às regras e as autoridades. Desde então, a Educação Física escolar passou a ser fortemente embasada nos esportes, com grande investimento público para esse fim. As maiores e mais caras salas de aula de qualquer escola são sempre os ginásios de esportes e o material didático mais caro são sempre as bolas, tabelas, redes, traves e demais equipamentos destinados ao ensino dos esportes.
Apesar de, com o fim da ditadura militar em meados da década de oitenta do século XX, a Educação Física voltar a refletir sua prática sobre outros paradigmas, como a criticidade dos alunos ou sua emancipação, a ideologia baseada nas competições segue dominando. É natural que isso aconteça, porque os professores que agora trabalham nas escolas, assim como todos agentes da mídia no país, foram formados naqueles anos de chumbo ou logo após. As ideologias são muito resistentes a abalos, demora até os novos textos chegarem as bases das faculdades das capitais e ainda mais lentamente nas do interior. Os esportes ainda dominam amplamente o panorama escolar brasileiro, assim como em todas os meios de comunicação. Porém, a filosofia que rege a disciplina atualmente está muito distante daquele corpo alienado da realidade social como era até então. Os professores buscam conscientizar os alunos de seus papéis sociais, sua inserção numa sociedade excludente, assim como seu protagonismo em relação ao meio ambiente. A Educação Física ficou muito mais complexa do que já foi.
Diante desse breve histórico é que chegamos ao nosso município. Anualmente se realiza na nossa cidade os jogos escolares de Osório (JEO). Todas as atividades desse grande evento são competitivas, coerente com a ideologia dominante que envolve todo o sistema escolar brasileiro onde as competições ainda são muito valorizadas. As seleções de todas as escolas do município se apresentam para as competições, repare que até mesmo a palavra “seleção” denuncia exclusão. Assim mesmo, escolas municipais, estaduais, particulares e até federais se apresentam, ávidas por competir. Além desses jogos, eventualmente também se realizam os jogos da primavera, outra semana de competições em que se tenta privilegiar os alunos que não foram selecionados para o primeiro evento, uma forma de amenizar os efeitos da exclusão. Nesse segundo, somente as escolas municipais são convidadas.
Pensando em atualizar a Educação Física da cidade para esse novo paradigma em que se convida o aluno a experimentar novas vivências corporais não competitivas, problematizar as questões da exclusão intrínseca ao esporte, questões de lesões, além das questões ambientais, o grupo de docentes da disciplina da rede municipal de escolas públicas, em 2016, passou a propor jogos cooperativos que ocorressem concomitantes as competições já normalmente realizadas. Numa reunião com o executivo em 2017, o projeto “Mexendo na Regra – Promovendo a Inclusão nos eventos esportivos da cidade de Osório”, apresentado por mim, foi aceito e ampliado: em vez de duas semanas anuais, se projetou fazer três. Uma concomitante aos JEO, em Maio, outra em Outubro, junto aos jogos da primavera e ainda uma terceira inédita, entre as duas, em Agosto, logo após o recesso de inverno. A proposta era oferecer atividades não competitivas, lúdicas e cooperativas em contato com a natureza e separadas das competições apesar de no mesmo espaço, o parque da vila olímpica de Osório. Infelizmente, esse projeto logo emperrou nas diversas alegações impeditivas do professorado do município.
Passados mais três anos da primeira frustrada tentativa, outro professor da rede, Tiago Medeiros, apresentou um projeto mais enxuto e palatável para o gosto dos docentes da cidade: somente dois dias no ano e somente os alunos das séries finais do ensino fundamental. Novamente aprovado pelo executivo, o Projeto “Jogos Cooperativos de Osório” (Jocó) foi mais longe que o Mexendo na Regra. Conseguiu realizar sua primeira edição.
No dia combinado, conduzi meus alunos ao parque da vila olímpica. Lá chegando a primeira frustração: somente três escolas do município aderiram a proposta. O sistema de som estava montado e funcionando para as autoridades que iriam se manifestar na abertura do evento, como sempre acontece nas competições do JEO. Porém, essa foi a segunda decepção, nenhuma autoridade apareceu para falar, nem boas vindas ou bom dia, nem mesmo um alô. As duas situações reveladoras do descaso aos esforços dos professores envolvidos. Sintomáticas também da importância que tem as competições e o descuido com a cooperação. Apesar de já esperada, a negligência da população da cidade, desde administradores, passando por professores e até os alunos, para com a cooperação contrasta com o grande envolvimento de todos nos eventos competitivos. Não surpreende que o povo de Osório conviva naturalmente com a exclusão na vida cotidiana se ela é ensinada na escola e nos meios de comunicação como óbvia. O que surpreende é que mesmo professores, profissionais da educação, não achem relevante o ensino da inclusão e da cooperação na escola.
O professor Tiago Medeiros, organizador desses primeiros Jocó’s, que refletiu a organização do evento e sua intencionalidade, planejou lindas atividades cooperativas no meio da mata, sobre verdes gramados, sob a sombra das árvores ou sob o sol. Mas mesmo ele, com essa intenção em mente, se equivocou em algumas atividades competitivas apresentando-as como sendo cooperativas. Os alunos participaram alegres integrados ao meio ambiente, surpresos com as inéditas experiências. Isso como primeiro evento com essa intenção, de promoção da inclusão e cooperação, foi maravilhoso. A falta de prática, de base teórica, de material de consulta, nos leva a todos a construir, deliberadamente, uma sociedade excludente, que não aprendeu a cooperar. Se todos nós, professores, alunos e administradores, sempre só estudamos como usar um martelo, com todas as regras para acertar a cabeça do prego com excelência, como vamos saber fazer um bolo de chocolate? Colaborar com alguma atividade cooperativa nos parece fútil, aborrecido, inútil. Não vai ter um campeão? Não vai ter medalha? Me perguntavam as crianças.
As decisões consideradas importantes na Ágora da Grécia antiga, que eram apreciadas pelo eleitorado e colocadas em votação, eram coisas muito simples: onde vai ser a próxima festa, se o cidadão “A” seria punido por fornicar com a escrava de “B” ou qual atleta deveria ser escalado para representar Atenas nos jogos olímpicos. Atualmente, a ideologia dominante mudou radicalmente. Quando colocamos algo em votação é por assuntos mais relevantes. A história não está parada, ela não acabou. Nós determinamos o rumo que a sociedade tomará. A escravidão grega, que era lei, demorou 2500 anos para ser revogada. O sufrágio ser autorizado só para homens livres levou 2600 anos para ser questionado. Sem dúvidas temos o que aprender com a Grécia antiga. Mas quanto tempo mais demorará para percebermos que suas competições atléticas eram também aristocráticas e imorais? Não podemos refletir como modernizá-las? Acho que devemos. É utopia imaginarmos um mundo totalmente inclusivo, mas caminharmos nessa direção faz o mundo evoluir moralmente. 

Um comentário:

  1. Tua inquietação quanto 'a característica dos jogos hegemönicos não é nova e é digna da maior consideração. Agora escreves sobre tuas tentativas de colocar algumas de tuas idéias em prática e mais recentemente a de outro colega igualmente na cidade de Osório. Apesar de ser muito desigual em termos de interesse tanto de autoridades como de colegas professores, e até mesmo da população em geral, penso que deves seguir lutando prá difundir tuas idéias e quem sabe ampliando os encontros entre pessoas provocadas pela proposta. A avaliação dessa última edição me parece um próximo passo importante, tratando de explorar os aspectos positivos e negativos que se apresentaram. Quem sabe procurar o/a professor/a de Recreação e o de Esportes de Natureza (se existir no currículo da Esef de Osorio), e convidá-los prá participar de estudos a respeito. Sem dúvida, penso que estás com uma jóia nas mãos (tua idéia) e pensar mais sobre ela pode representar um grande investimento. Sigo acompanhando e torcendo prá que avances nas experiencias desses jogos e que muito especialmente, possa crescer o numero de participantes e a qualidade dessa participação. Tens torcida! Abraço fraterno, Mario

    ResponderExcluir