sábado, 13 de abril de 2019


A constituição de 1934 trouxe uma série de inovações que modernizaram o estado Brasileiro. O ensino primário se tornou obrigatório, o voto passou a ser secreto, as mulheres obtiveram o direito ao voto e o estado foi reafirmado como laico. Getúlio Vargas liderou uma série de negociações para que essas leis fossem aprovadas: O estado deveria manter as escolas para que as crianças estudassem gratuitamente, as mulheres só votavam com a devida autorização por escrito dos pais ou maridos e os feriados religiosos cristãos seriam oficiais, apesar da laicidade do estado. Hoje algumas dessas leis parecem ridículas, obvias ou redundantes, mas era uma revolução na época.
Fiquei muito contente com o fato de que uma professora da escola onde trabalho iniciou as comemorações da páscoa com símbolos pagãos como coelhos e ovos. É alvissareiro que numa escola pública se valorize os aspectos laicos da festa ao invés dos religiosos. Na nossa unidade da rede municipal de ensino, assim como todas as demais da cidade, há uma grande diversidade de crenças entre os alunos e pais. Temos cinco alunos indígenas, muitos afrodescendentes, assim como uma grande diversidade de seitas cristãs, sem falar nos ateus. Isso falando só dos declarados, talvez tenhamos alunos muçulmanos, budistas ou judeus que se mantém no armário receosos de possíveis agressões intolerantes. Mas, ainda que todos os alunos fossem cristãos, deveríamos respeitar a laicidade das atividades, obedecendo as leis que ainda regem o ensino público do país desde 34.
Entre os profissionais da nossa escola temos cristãos das mais diferentes tendências, umbandistas, budistas e eu, ateu. Conversando com colegas professores percebo o ateísmo admitido de alguns que não saem do armário por não perceberem a importância política do ato. É tão importante que os ateus se assumam publicamente como é importante que gays, indígenas, veganos ou negros se assumam e lutem por seu reconhecimento como cidadãos de direitos. Infelizmente, se as pessoas não respeitam as diferenças por consciência moral, leis tem que ser escritas para que pelo menos artificialmente se conviva em paz. A lei Maria da Penha foi uma imposição da ONU ao estado brasileiro e tenta impedir que mulheres sofram agressões. Mesmo sendo óbvio que mulheres não devem apanhar, ela teve que ser escrita, pois mulheres são surradas rotineiramente. A lei das cotas foi uma necessidade surgida do fato que não havia negros ou deficientes nas universidades ou nas repartições públicas. A inércia da imoralidade é brutal.
Recentemente, tivemos um caso de agressão racista de uma menina do primeiro ano contra outra do segundo. Mesmo entre os alunos mais jovens da escola, questões raciais, religiosas e de gênero afloram num manancial de intolerância, ódio, bullying e apelidos jocosos. As leis foram criadas exatamente para inibir situações constrangedoras para os alunos. As comemorações cristãs da páscoa, que alguns profissionais inadvertidamente tendem a propor por inércia de quase um século, desde a constituição de 34, são agressivas a grande parte dos alunos. É prudente, visando garantir o direito para todos os alunos de uma escola inclusiva, que a cultura da paz garantida pelas leis da laicidade da escola seja observada por todos. Com o governo atual talvez haja alguma mudança, pois nosso presidente Bolsonaro já se manifestou contra a laicidade e a favor de um ensino confessional, mas isso ainda não ocorreu.
Coelhos e ovos, tradicionais da páscoa, são muito anteriores ao cristianismo. O equinócio da primavera no hemisfério norte sempre foi comemorado com símbolos de fertilidade: coelhos porque se reproduzem muito depressa e ovos por dali surgir a vida. A festa pagã marcava o início da atividade agrícola depois do longo inverno. Derretido o gelo, a terra poderia ser semeada viabilizando a vida. Viva a laicidade daquela professora.
Apesar de quase todo território brasileiro estar no hemisfério sul e próximo ao equador, ou seja, não sofremos com invernos rigorosos e o equinócio de março não é de primavera, mas de outono, a colonização portuguesa nos trouxe a cultura da festa da semeadura atrelada a festa cristã da ressurreição de Jesus. Como é típico de um império colonizador, os portugueses impuseram sua cultura aos povos indígenas nativos ou dizimaram e escravizaram os que não se vergavam a nova ordem. Povos de outros continentes também foram escravizados e trazidos à ferros para cá. Depois de 500 anos de terrível crueldade, a sofisticação moral da sociedade brasileira levou os brancos europeus a reconhecerem suas atrocidades e criarem ações afirmativas de reparação àquela dívida histórica. Surgiram uma série de leis, as já citadas de 34, antes dela a lei Áurea, mais recentemente as reservas indígenas e as leis de cotas entre tantas outras. Mas assim mesmo, algumas pessoas resistem e ainda não aceitam nem as leis da constituição de Vargas.
Também me alegrou muito que nossa supervisora escolar orientasse os professores a trabalhar os valores de amizade, fraternidade e paz. Assim agindo, nossa escola estará resistindo a um democratismo de maioria cristã que planta ódio e segregação planejado pelos atuais gestores da educação nacional e faremos uma celebração democrática de amor e inclusão aos nativos indígenas, aqueles descendentes de escravizados africanos, assim como aos sectários de outras crenças.
Eu sou ateu mas adoro os feriadões negociados por Getúlio em 34. Carnaval, páscoa, corpus christi, natal… adoro! Quero que sejam sempre comemorados, mas que cada um faça segundo suas crenças e não impondo aos demais. Já chega os sinos nas igrejas acordando a todos nas manhãs de domingo, o “deus seja louvado” em todas as notas de dinheiro, estátuas gigantescas no alto dos morros com os braços abertos, crucifixos até no supremo tribunal federal… Falando nisso, precisamos conversar sobre aquela nossa senhora no meio da escada da escola: vocês sabiam que somente católicos veem naquela estátua algum significado?… bueno, mas isso fica para outro texto.

3 comentários:

  1. E viva a diversidade religiosa.
    Sou ateia graças a ti.
    Comecei a me envergonhar de acreditar em coisas tão sem sentido.
    O Natal explicado por ti foi revelação maravilhosa.
    Ri muito de tudo que eu acreditava.
    A VERDADE BOS LIBERATARA.
    Essa frase resume tudo.
    Estou liberta do Natal e da Páscoa.

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  2. Minha mãe dizia..." Tu não é ateu, tu é atoa" Há há há há! Lembrei disso quando a parte onde escreve que gosta dos feriados religiosos...
    Uma das coisas que esse isolamento proporcionou foi o não consumismo exagerado em nome do amor e fraternidade...mas...mesmo assim... vi e assisti enormes filas em frente às lojas fechadas que atendiam de 2 em 2 clientes.Estes, entravam e saiam com sacolas recheadas de enormes ovos de chocolate e outras guloseimas.
    Jesus Cristo, nosso amigo irmão camarada passou no seu tempo falando de amor...união...cooperação...
    partilha...
    Muitos salves para para as pessoas de bem que independe de credos e crenças cultivam a paz...fraternidade...respeito...

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  3. Claro, didático e excelente texto. Fatos históricos que grande parte das pessoas desconhecem. 🌹

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