domingo, 15 de outubro de 2023

 Dia dos professores, Geni, homens, mulheres e os conflitos


Escrevo esse texto no dia dos professores, 15 de outubro. Há uma semana, o grupo Hamas lançou um ataque massivo a Israel com foguetes feitos com sucata. O conflito tenta resolver à força questões religiosas, econômicas, políticas e sociais onde houve um fracasso do diálogo. A região da Palestina é conflituosa desde o tempo em que a bíblia estava sendo escrita e quem não é de lá tem dificuldade de entender as razões das agressões. Tenho minhas suspeitas dos motivos que levaram àquela guerra, pois durante a semana ocorreram coisas que me fizeram refletir sobre conflitos, eventos tão comuns na vida de um professor de escola básica. 

Sou concursado para vinte horas, mas desde que entrei na prefeitura, há dez anos, cumpro quarenta horas, eles chamavam de “desdobramento”. O desdobramento não vai para a aposentadoria, é um truque conhecido das prefeituras para economizar com os professores velhinhos. No meio do ano passado, me chamaram na secretaria de educação, acharam uma forma para economizar com os funcionários da ativa também. Iriam acabar com meu desdobramento, meu salário cairia pela metade. Me ofereceram a “oportunidade” de assinar um contrato de mais vinte horas, mas com um salário bem menor, como se eu fosse um professor em início de carreira. Nada pude fazer diante do tribunal de contas que obrigou a administração a economizar comigo. Fiz outro concurso para mais vinte horas e passei em décimo terceiro lugar, fiquei tranquilo, pois a rede municipal tem 13 escolas de educação infantil sem professores de Educação Física, mas a prefeitura tergiversa e só chamou três até agora. Meu salário diminuiu em um quarto e de um dia para outro eu tive que me virar com uma remuneração bem menor. Entrei em conflito com o secretário de educação, com o prefeito, com o partido do prefeito, com o sindicato dos servidores, com a administração inteira e lembrei na hora da música “Geni e o Zepelim”, do genial Chico Buarque, que transcrevo ao final deste texto para quem tiver interesse em ler. Sempre se lembram dos professores para resolver os mais diversos problemas sociais, somos o coringa no baralho social, no entanto, são também deles que lembram na hora de economizar. Todos pedem para a Geni fazer um esforço para ajudar a comunidade nas tarefas mais bizarras. “O prefeito de joelhos, o bispo de olhos vermelhos”...  

Na segunda-feira pela manhã, estava para entrar em turmas difíceis, ansiosas pela prática de qualquer atividade corporal, que desrespeitam o professor sistematicamente e sabotam aulas teóricas de esgrima. Há mais de seis anos não posso dar aulas práticas de esportes por falta de material. Desde o governo Temer não recebemos material didático de Educação Física. Sim, evidentemente estou em conflito também com a união, desde o golpe contra a presidenta Dilma as coisas desandaram na educação pública. Visivelmente, há uma tentativa de precarização do ensino público com uma brutal diminuição de verbas. Questionei o diretor sobre o saco de bolas novas que estava na secretaria há duas semanas: porque ainda não foram disponibilizadas para as aulas de Educação Física? O diretor fez um grande discurso, de como tem lutado por material para a escola, me fez assinar um termo de recebimento das bolas, como se eu tivesse pedindo para uso pessoal ou para levar para casa. Primeiro queria me dar só cinco bolas, para preservar as outras. Argumentei que numa turma de 20 alunos, seria uma bola para cada quatro. Enquanto um faz o exercício, os outros três teriam que ficar assistindo entediados. O ideal seria uma bola para cada aluno, mas num momento de escassez como o atual, o mínimo aceitável seria uma para cada dois alunos. Depois de um certo atrito, um conflitinho, ele concorda em ceder dez então, mas eu tenho que ser “responsável” pelas bolas, me acusando, ainda que sem perceber, de já ter sido negligente com os materiais da escola em outras oportunidades. 

O diretor e eu lamentamos o grande aumento de crianças carentes nas comunidades empobrecidas do entorno nos últimos anos. A capacidade da escola é de 250 alunos, mas está atendendo 450 e com uma fila de espera de outros 200. Ao mesmo tempo que gestores municipais aumentam nossa carga de trabalho com mais alunos, nos tiram condições de trabalho e diminuem nossos vencimentos. Há um brutal aumento da população marginalizada, e quem, você leitor, acha que pensam na hora de ensinar os despossuídos como evitar as drogas ou a gravidez na adolescência, a preservar o ecossistema costeiro, a reciclar lixo, a importância da vacinação, a evitar conflitos na vizinhança, a escovar os dentes e tomar banho, a respeitar a religião ou a orientação sexual de cada um, a como se alimentar de forma saudável, a como usar um banheiro, a como se proteger de abusos sexuais, a conhecer seus direitos como crianças e adolescentes? Os professores são as Genis da sociedade, todo mundo quer que resolvamos as mazelas sociais, mas não querem pagar por isso. “Você pode nos salvar, você vai nos redimir.

No final da tarde desta terça-feira, eu já tinha cumprido minhas tarefas de trabalho e só esperava dar a hora do final do expediente para ir para casa descansar. A funcionária da limpeza entrou na sala dos professores nervosa, pedindo socorro. Ouvi um alarido no hall de entrada da escola e corri para ajudar. Eram dois homens aos gritos, exercendo toda sua brutal violência masculina, um deles armado com um relho feito de sucata, como as armas do Hamas. Os encarando olho no olho, bravamente, três mulheres - a vice-diretora, a supervisora e a orientadora - calmas e sérias, firmes como pugilistas no momento da pesagem. O vigilante e o portão de entrada, nossa primeira linha de defesa, já tinham se provado inúteis contra os dois cidadãos irados: eles tinham arrancado o portão dos trilhos e atropelado o vigia que tentava impedir que entrassem no prédio à força. As três mulheres e sua serenidade na hora do conflito era a última barreira física entre as feras e as salas cheias de crianças. Cheguei por trás dos machos selvagens contrariados que latiam, bufavam e rosnavam, e pensei em dar uma voadora nas costas de algum deles, pois eles vieram para isso, brigar, e eu também tenho o cérebro masculino. No entanto, percebi nos poucos passos que dei em direção a cena, que aquelas mulheres corajosas estavam conseguindo com sua mágica feminina, conter os invasores eficazmente. Me posicionei próximo ao extintor de incêndio que tinha na parede caso precisasse um objeto pesado para usar como arma. A tensão chegou ao máximo quando o vigia jogou gasolina naquele fogaréu avisando que chamaria a polícia. Um dos homens alertou que tinha sido “formado” no sistema prisional e tinha meios de matar o funcionário até de dentro da prisão. Por milagre, as três mulheres hipnotizaram os três homens, os dois invasores e o vigilante, os fizeram sentar e conversar explicando suas demandas: a filha de um deles, neta do outro, havia caído no horário da entrada e batido a cabeça. Eles estavam ali para punir os responsáveis, pois a menina estava no hospital com suspeita de traumatismo craniano. Eu, o quarto homem da cena, covardemente, assisti tudo sem abrir a boca. Não só por medo, mas também porque percebi que se agisse seria mais um homem a dificultar a convivência social. Não tenho nem um décimo da habilidade social de lidar com conflitos que aquelas três professoras. Em quarenta minutos bateu o sinal de saída e nenhuma criança percebeu que ali tinha ocorrido todo aquele bafafá medonho, apesar de os caras ainda estarem na sala da orientação educacional. Fiquei ali na porta esperando, solidário com as gurias, olhando o cartaz que cita a lei que ameaçar funcionário público da cadeia. Estava pronto para entrar na sala ao ouvir barulho de luta para apanhar junto de relho. Passaram quinze minutos do nosso horário quando os caras saíram da escola, ainda ameaçando, mas bem mais calmos. Felizmente, e graças ao extraordinário profissionalismo delas, ninguém se machucou e até mesmo a menina que bateu a cabeça, depois dos exames no hospital, teve alta sem sequelas, graças ao pronto atendimento que recebeu da escola que a levou ao postinho do bairro imediatamente depois do ocorrido. Por mais eficientes que sejamos, somos sempre acusados de negligentes, imperitos e incompetentes e, portanto, passíveis de punições severas por qualquer cidadão sem nem qualquer processo legal. Nós, os professores, somos as Genis da sociedade, “feitas para apanhar”, apesar do cartazinho com a lei na porta.

Na manhã de quarta-feira, véspera do dia das crianças, levamos as turmas todas para a praça para um picnic. Fomos caminhando e comentando o acontecido do dia anterior à boca miúda para que nenhum aluno leve aquele diálogo para comunidade. Ao chegar na praça, um dos alunos do terceiro ano vê seu pai trabalhando numa obra do outro lado da rua e corre para abraçá-lo. Sua professora, temerosa de algum acidente, grita para que a criança não atravesse. O pai, irritado, espinafra a educadora em praça pública pois ela não teria direito de gritar com seu filho. “Joga pedra na Geni!” Na tarde do mesmo dia, conversando na sala dos professores com uma colega, fiquei sabendo que uma mãe está processando a escola por que seu filho apanha todo dia dos coleguinhas do segundo ano. “Ela é boa de cuspir!”  Percebo então, na quarta-feira caminhando para casa depois do trabalho, o porquê da fala do diretor na segunda-feira a respeito das bolas. O diretor responde judicialmente pela escola, pois ele é o responsável legal. Ele está uma pilha de nervos, todos os conflitos da escola ecoam na sua cabeça.

O cotidiano da escola é assim. Todos estamos sob ameaça, o stress chega a ser viscoso e palpável no intervalo nas conversas na hora do cafézinho. Ninguém mais quer ser professor pois é claro para qualquer criança que é um profissional que ganha mal, mendiga por material de trabalho, é espinafrado em praça pública, ameaçado fisicamente até com relhadas, processado judicialmente por exercer sua profissão, ou seja, pode ser desrespeitado tranquilamente sem nenhuma consequência. Ela dá para qualquer um, maldita Geni! É raro o profissional da educação que não sofre de doenças mentais, que não toma medicação psicoativa ou usa drogas como o álcool ou o cigarro. Em todas as escolas em que trabalhei, os professores se cotizam para que nos intervalos haja café ou chá disponível em abundância para que seu cérebro não derreta sob a perturbação da homeostasia a que é submetido devido a enorme secreção de adrenalina. Ela é um poço de bondade, dá-se assim desde menina, é de quem não tem mais nada!    

Este é o breve relato de uma semana curta de três dias na escola, já que quinta-feira foi feriado de Nossa Senhora Aparecida e sexta emendaram o Dia do Professor. Não faltam cidadãos que trabalham seis dias na semana a nos acusar de privilegiados por ter tantos feriadões prolongados. Ninguém parece perceber o quanto nossa saúde mental é abusada e nosso corpo ameaçado ou até, muitas vezes, agredido no trabalho. As famílias que atendemos na escola são os oprimidos da sociedade, são escorraçadas para guetos nas periferias do país, mantidas afastadas com grandes muros, portões e vigias, assim como os palestinos. Quando arrancam os portões e reagem com suas armas feitas de sucata, chocam o “status quo”. No entanto, perceba, caro leitor, nós os professores estamos do mesmo lado: também somos empobrecidos, também vivemos fora das muralhas dos grandes condomínios, estamos brigando entre nós mesmos. Este é o primeiro ponto. O segundo ponto, é evidente para mim, depois de vinte anos como professor em escola pública, que as mulheres devem gestar o mundo. Elas são gestoras (gestantes), deixam crescer de dentro para fora com cuidado, tem habilidade de comunicação, dialogam e respeitam o indivíduo, constroem um ambiente acolhedor e envolvente que proporciona que habilidades se desenvolvam, permitem o florescimento das pessoas. Homens são gerentes, gerem, querem mandar, não aceitam ser contrariados, ditam normas. Foram os homens que inventaram esse negócio de competição: onde uns tem, outros não, uns estão incluídos, outros não. Mulheres geram vida, gestam todo mundo e amamentam ricos e pobres da mesma forma. O cuidado feminino com todos deve ser a lei. O poder de dar a vida das mulheres funciona com muçulmanos e judeus, com adolescentes e crianças, com trans e cis. Não foi à toa que homens arrancaram a presidenta Dilma de seu cargo. Uma mulher no poder desafia a lei da selva, onde manda o mais forte e o resto obedece. As mulheres empoderadas modificam a tradição da exclusão e eliminação social. Mulheres querem dialogar até que haja um consenso onde todos estejam alimentados, com cama quentinha e vistam casaquinhos. Não tenho dúvidas que na liderança do Hamas está um homem, que como eu pensa em entrar de voadora nas costas do Netanyahu, que revida como qualquer homem faz, com violência e falta de diálogo. O terceiro ponto é a estupidez da diferença social. A competição social, esse pódio classificatório com degraus hierárquicos para exibir quem venceu na vida dos losers é uma aberração patética e primitiva. É o fulcro gerador de ódio e discórdia. De nada adianta a tentativa de criar muros, de tentar criar castas de incluídos e excluídos. Só gera ódio e morte, coisas de homens. Há riqueza suficiente para todos. 

Portanto, convido a todos a valorizar as professoras, remunerá-las de acordo. Vamos todos seguir o exemplo dessas mulheres (de Atenas, outra música genial do Chico, que acabaram com a guerra negando o sexo aos homens, o lado mais animal do humano) que amam e cuidam, que olham no olho, que dialogam até o consenso e encaram o conflito de forma acolhedora, civilizada e inteligente. Convido a todos a pensar como professoras, que não desistem de nenhum de seus alunos, mesmo os mais agitados. Eu, confesso, ainda sou um humilde aprendiz de professora.



Geni e o Zepelim

Chico Buarque


De tudo que é nego torto

Do mangue e do cais do porto

Ela já foi namorada

O seu corpo é dos errantes

Dos cegos, dos retirantes

É de quem não tem mais nada


Dá-se assim desde menina

Na garagem, na cantina

Atrás do tanque, no mato

É a rainha dos detentos

Das loucas, dos lazarentos

Dos moleques do internato


E também vai amiúde

Com os velhinhos sem saúde

E as viúvas sem porvir

Ela é um poço de bondade

E é por isso que a cidade

Vive sempre a repetir


Joga pedra na Geni!

Joga pedra na Geni!

Ela é feita pra apanhar!

Ela é boa de cuspir!

Ela dá pra qualquer um!

Maldita Geni!


Um dia surgiu, brilhante

Entre as nuvens, flutuante

Um enorme zepelim

Pairou sobre os edifícios

Abriu dois mil orifícios

Com dois mil canhões assim


A cidade apavorada

Se quedou paralisada

Pronta pra virar geleia

Mas do zepelim gigante

Desceu o seu comandante

Dizendo: Mudei de ideia!


Quando vi nesta cidade

Tanto horror e iniquidade

Resolvi tudo explodir

Mas posso evitar o drama

Se aquela formosa dama

Esta noite me servir


Essa dama era Geni!

Mas não pode ser Geni!

Ela é feita pra apanhar

Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um

Maldita Geni!


Mas de fato, logo ela

Tão coitada e tão singela

Cativara o forasteiro

O guerreiro tão vistoso

Tão temido e poderoso

Era dela, prisioneiro


Acontece que a donzela

(E isso era segredo dela)

Também tinha seus caprichos

E ao deitar com homem tão nobre

Tão cheirando a brilho e a cobre

Preferia amar com os bichos


Ao ouvir tal heresia

A cidade em romaria

Foi beijar a sua mão

O prefeito de joelhos

O bispo de olhos vermelhos

E o banqueiro com um milhão


Vai com ele, vai, Geni!

Vai com ele, vai, Geni!

Você pode nos salvar

Você vai nos redimir

Você dá pra qualquer um

Bendita Geni!


Foram tantos os pedidos

Tão sinceros, tão sentidos

Que ela dominou seu asco

Nessa noite lancinante

Entregou-se a tal amante

Como quem dá-se ao carrasco


Ele fez tanta sujeira

Lambuzou-se a noite inteira

Até ficar saciado

E nem bem amanhecia

Partiu numa nuvem fria

Com seu zepelim prateado


Num suspiro aliviado

Ela se virou de lado

E tentou até sorrir

Mas logo raiou o dia

E a cidade em cantoria

Não deixou ela dormir


Joga pedra na Geni!

Joga bosta na Geni!

Ela é feita pra apanhar!

Ela é boa de cuspir!

Ela dá pra qualquer um!

Maldita Geni!


Joga pedra na Geni!

Joga bosta na Geni!

Ela é feita pra apanhar!

Ela é boa de cuspir!

Ela dá pra qualquer um!

Maldita Geni!


Um comentário:

  1. Ler os textos do Tiago é gratificante. Eu adoro. Cheios de conhecimento, experiências e contos bem vividos, trazido para os leitores. Magnífico, como todos os outros já lido.

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