quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

         Natal e a democracia


Minhas colegas professoras estão maravilhadas com a possibilidade de escrever pareceres de final de ano com a ajuda do Chat GPT, programa de inteligência artificial disponibilizado gratuitamente na internet. Segundo elas, basta colocar algumas características do aluno que o site constrói um belo parágrafo, com lindas palavras da boa pedagogia e didática, a respeito da criança. “Demônio encarnado que inferniza todo mundo” vira “alegre e entusiasmado que ainda encontra alguma dificuldade em se concentrar nas tarefas”. A ferramenta encantou e tirou dos ombros dos profissionais da educação o fardo de escrever de forma compreensível para os pais leigos o estágio de desenvolvimento da criança. 

A tecnologia que encheu de alegria quem tem que informar sem melindrar, como professores e jornalistas, apavorou aqueles que trabalham com programação, pois, adivinhem, o bate-papo eletrônico escreve em código de programação também. Basta pedir em português o que se deseja e, como mágica, o algoritmo produz, num piscar de olhos, todo programa na linguagem desejada: Java, C+, Python, HTML, o que for, a máquina cria no código que a pessoa indicar o que se imaginar. Minha enteada e o namorado, ambos recém formados técnicos em informática, relatam uma queda vertiginosa da procura por profissionais de TI, de ótimos salários para o desemprego quase que instantaneamente depois do surgimento da inteligência artificial gratuita para as massas. Sobrou o hardware para eles, esticar fios das redes de fibra óptica os computadores ainda não fazem, se ganha bem menos, mas pelo menos ainda se pode receber alguma remuneração. 

Fiquei curioso com a ferramenta e entrei para bater papo. A palavra “chat” em inglês é um substantivo que poderia ser traduzido como papo ou conversinha. A proposta é de uma máquina que tem acesso a todo conhecimento produzido pelo ser humano no mundo inteiro, um robô, que responde como se fosse um ser humano, sobre qualquer assunto. De cara questionei sobre um tema que domino, para averiguar se realmente o algoritmo é inteligente como falam. Perguntei se os esportes fazem bem para saúde. A máquina me olhou firme nos olhos e respondeu com convicção, sem titubear, que sim, faz bem para saúde em todos os casos e, segundo ela, seria uma verdadeira panaceia para o corpo e a mente. Imediatamente, percebi que o algoritmo é semelhante ao senso comum, repete o que é mais ouvido por aí, a crença hegemônica. Apesar de já ter caído imensamente na minha avaliação, segui conversando e, cacoete de professor, tentando fazer com que aquele aluno ignorante refletisse sobre a asneira que acabara de dizer. Perguntei, me fazendo de sonso, já que esporte faz bem, porque há ambulâncias de prontidão nos eventos esportivos e porque os atletas se lesionam gravemente tão seguido, exigindo grandes afastamentos, muitas vezes até a aposentadoria. A máquina passou a agir como qualquer sectário dos esportes, com fé cega, entrou no modo “veja bem”, tergiversando. Lembrei ao tolinho do robô o que a ciência fala sobre a saúde nos esportes e ele passou a agir como o ex-presidente negacionista Bolsonaro: Pois é, no tocante aos esportes, sobre essa cuestão da saúde, tem que ver direitinho isso aí. O robô, conversando comigo, foi se enrolando cada vez mais. Na minha avaliação a inteligência artificial do dispositivo não era lá muito inteligente. Lembrei de casos como o do jogador de futebol Ronaldo Nazario, que fez tantas cirurgias nos joelhos que seria melhor ter instalado um zíper na patela. Lembrei do tenista Guga Kurten, que se aposentou pois não aguentava as dores na virilha, mesmo depois de três cirurgias. Falei do longevo jogador de basquete Oscar Schmidt, que tinha todos os aparelhos de fisioterapia em casa e jantava com sua mulher ligado ao ultrassom para tratar suas lesões de um dia para o outro. O robô se defendia como podia, argumentando que tem que se planejar o treinamento caso a caso e tal e coisa. Lembrei do caso da jovem campeã olímpica da ginástica Rebeca Andrade, que aos 22 anos de idade já havia passado por algumas intervenções cirúrgicas importantes devido a lesões. A máquina era dogmática, por maiores que fossem os argumentos que eu levantava contra a salubridade dos esportes, mais ela dizia que fora detalhes bobos de casos menores, o esporte fazia bem para a saúde. Ainda tentei entender aquele dogmatismo, perguntei ao algoritmo se ele não estava confundindo o esporte competitivo com atividade física. Daí sim que ele se atrapalhou todo, desviou do assunto, passou a falar da lei Pelé tentando diferenciar esporte de lazer, esporte escolar e esporte de competição e coisas assim. Desisti de convencer a máquina sem nem usar as fichas que ainda tinha de exemplos internacionais ou problemas de saúde mental como no caso da ginasta americana Simone Biles, que abandonou competições nas olimpíadas de Tóquio alegando fadiga mental. Ela reclamava que os treinadores e juízes exigiam que sorrisse mesmo estando exausta ou fazendo esforço extremo. Percebi que mesmo tendo acesso a todo o conhecimento do mundo o computador com “inteligência” artificial não conseguia diferenciar o conhecimento pertinente da doxa que inunda o imaginário popular, era um mero papagaio do senso comum, argumenta igual a algum arrogante aluno do nono ano que se julga esperto, cheio de informações mas sem conhecimento, sabedoria ou experiência. Crentes na sacralidade dos esportes acreditam ser sacrílego levantar qualquer dúvida da virtude infinita da atividade esportiva e a inteligência artificial que conversei era uma dogmática seguidora da doutrina do santo esporte. 

Depois da longa conversa que tive com a inteligência artificial, resolvi continuar exercendo minha inteligência natural mesmo, com todos os seus defeitos e limitações, escrevendo meus próprios pareceres descritivos dos alunos para seus pais. É uma tarefa cansativa, mas que nos obriga a refletir sobre cada criança para melhor avaliá-las. Mas não são só os pareceres que nos atormentam no final do ano, conforme se aproxima o solstício de verão, o clima vai esquentando e os professores vão ficando mais e mais estressados com as diversas demandas que vão surgindo. Aplicamos avaliações e as corrigimos em grande quantidade (eu tenho 400 alunos), ensaiamos coreografias de músicas para cantar na festinha de Natal diante dos pais, temos que fechar cadernos de chamada enquanto as crianças ficam mais agitadas com o calor e a perspectiva de férias, decidimos sobre a aprovação ou não dos alunos tentando lidar com pais insatisfeitos, arrumamos armários e limpamos as gavetas pois depois das férias voltaremos mas provavelmente não para a mesma sala, separamos as cadeiras e mesas quebradas para descarte, preparamos formaturas e até compramos lembrancinhas para as crianças do próprio bolso e mais toda uma infinidade de problemas comuns a todas as escolas do país se avolumam. Final de ano é para os professores o mesmo que semana santa para o padre, temos muitas tarefas todos os dias. 

O problema do bolso pesa muito na cabeça dos professores, a profissão é completamente desvalorizada no Brasil e a remuneração é pífia. As despesas de final de ano com IPTU, IPVA, festas em família, presentes e férias se acumulam sem que o salário acompanhe no mesmo ritmo. Todos, TODOS mesmo, os profissionais da educação arrumam algum bico para tentar equacionar as contas em casa. Alguns fazem biscoitos de Natal para vender, brigadeiro também é comum, outros representam a Natura ou Avon, eu prefiro vender meu corpinho e minha expertise de ser Papai Noel nas escolas para crianças ricas dentro de condomínios de luxo. Aproveito meu fenótipo de gordo e barba branca para fazer um décimo quarto salário. Me visto de vermelho para sair do vermelho pelo menos uma vez no ano. A figura do Papai Noel é extremamente carismática. Fantasiado de bom velhinho, recebo sorrisos de idosos a crianças. Não há quem fique indiferente ao ho, ho, ho. Mesmo adolescentes durões, que querem provar para todo mundo que não são mais crianças, não resistem e deixam escapar um sorrisinho de canto da boca. Os descolados assumem a tietagem e postam fotos no instagram ao lado do maior ícone do consumismo capitalista. Idosos param para conversar e bêbados sentam no colo para uma foto pedindo uma Ferrari. As crianças correm para abraçar e ganhar alguma coisa.



Como o capitalismo costuma fazer, inverteu o sentido de tudo. Assim como os esportes que agridem o corpo de forma contundente mas são vendidos como solução de saúde, São Nicolau, que foi bispo católico de origem rica que doava suas riquezas para os pobres, se transformou no Papai Noel que estimula o comércio. O vermelho dos comunistas virou a cor da Coca-Cola para vender refrigerantes. Para os pobres, nas escolas e espaços públicos por onde passo trajando aquela roupa quente da Lapônia, distribuo pirulitos. Já para os nobres, deixo presentes caros para crianças bem pequenas, mini motos a gasolina e Iphones. A situação lembra muito a música do grupo punk Garotos Podres: Presenteia os ricos e cospe nos pobres. Apesar de cuspir nos pobres, mesmo eles o têm como um santo que traz presentes. 

Nos condomínios de luxo a beira mar que visitei na noite de Natal trajado a rigor, passei por revistas na entrada e na saída, se vive verdadeiro “apartheid”. Até o carro é revistado e abrem o capô do motor para checar se há algo escondido. Não posso nem caminhar pelas ruas dentro dos condomínios sem o acompanhamento de um segurança. É incrível que isso exista sem nem um debate público, é tácito ser normal que a diferença social seja a mesma da idade média. A nobreza encastelada dentro de muralhas eletrificadas com seguranças armados, enquanto a plebe rude produz a riqueza embaixo do sol quente para pagar aqueles luxos. A pessoa sã, que está mergulhada na cultura mas percebe suas mazelas, se choca. Os seguranças geralmente são pais de alunos, me conhecem há anos, mas mesmo assim sou revistado vestido de Papai Noel. O que tem nesse saco? São obrigados a seguir protocolos que lhes ensinaram. A classe trabalhadora só é convidada a entrar pela porta da frente das mansões e sentar na poltrona principal da sala se for vestido de bufão. O pobre só tem autorização para olhar nos olhos da família rica se for para entreter com um teatro divertido usando roupas vermelhas quentes no verão. Os excluídos entram pelos fundos para que os incluídos não tenham o desprazer de vê-los. É uma sociedade doente a que vivemos.

Nossa cultura ocidental tem suas raízes mais profundas na Grécia antiga. Da democracia aos jogos olímpicos, da dualidade corpo/alma à crença de que temos livre arbítrio, tudo vem de lá. O milagre grego fundou filosoficamente nosso “zeitgeist” atual. Se acreditava que o cosmos era uma espécie de máquina perfeita e cada um só tinha que se encaixar com perfeição à ela, como uma engrenagem que se encaixa a outras na máquina, bem justinha, na sua função cósmica, para que tudo funcionasse direitinho. Daí vem a palavra justiça, se tu fizeres direitinho o que o cosmos te criou para fazer, tudo funciona bem, de forma justa. Os desajustados tem que passar por um processo correcional, para corrigir suas arestas que estão atrapalhando a máquina cósmica. O escravo, óbvio, já nascia com o corpo e a mente talhados pelo cosmos para servir sem reclamar. As mulheres, evidência cósmica, eram naturalmente equipadas com úteros e mamas para parir e amamentar. Era impossível para qualquer pessoa discordar de tamanha obviedade. É incrível, mas até hoje se fala em “homem” significando ser humano pois, para os gregos da antiguidade só existia um gênero humano, o homem. As mulheres eram homens que tinham nascido estragados, do avesso, só serviam de terra para que os homens que nasceram do lado certo depositassem gentilmente suas sementes. Demorou 2500 anos para que se admitisse que existe outro gênero humano além do homem, a mulher. Mesmo nos jogos olímpicos atuais só pode jogar quem se encaixar num desses dois gêneros, homem ou mulher. Naquela democracia grega de antigamente, todos tinham direitos iguais… desde que através da palavra “todos” se entendesse homens livres, cerca de dez por cento da população de Atenas. O resto, mulheres e escravos, eram coisas que podiam ser negociadas como terrenos ou bigas, mas não abriam o bico para opinar em nada. 

Assim como na Grécia antiga se acreditava que estava tudo belezinha, tudo justo da maneira que era, aqui no Brasil de hoje em dia também. Se a inteligência artificial fosse perguntada se o Brasil é uma democracia, provavelmente me responderia sem titubear que sim. Mas basta alguém trabalhar de Papai Noel no Natal para perceber que os direitos iguais para todos existem somente no imaginário popular, no senso comum da população. Há um abismo gigantesco entre os direitos da elite e a ausência deles para a ralé. É óbvio que não se tem direitos iguais, aqueles que vivem dentro das muralhas tem uma vida mansa e quem vive fora dos muros sofre com carências diversas. De novo, a situação me faz lembrar muito de outra música, “Burguesinha” do compositor Seu Jorge: os encastelados tem o que quer, comem croissant e tomam suco de maçã. Seu Jorge é negro de origem humilde, ao escrever a letra imaginou como seria a vida de uma menina burguesa olhando de longe, por cima dos muros do condomínio, mas é claro que a letra da canção é ingênua. Se fosse só o croissant e o suco de maçã a diferença não seria tão ruim. Recentemente, Seu Jorge se atreveu a entrar num clube de incluídos em Porto Alegre para entreter os nobres só para sofrer um ataque racista brutal. A diferença social no Brasil é igual a crença de que esportes fazem bem para saúde, a ciência diz uma coisa bem diferente do que a fé do povo crê. 

Os esportes fazem bastante mal à saúde, mas o imaginário popular acredita fielmente que fazem bem. A inteligência artificial não é inteligente, mas a doxa já a está colocando num pedestal sagrado. Brasileiros não têm direitos iguais, no entanto o senso comum jura que o país é democrático. Papai Noel é bonzinho e presenteia todas as crianças do mundo no Natal é um conto de fadas que todos simpatizam apesar de ser uma mentira deslavada. A crença atual é que agora se evoluiu muito em relação à Grécia antiga, que somos uma sociedade sem males, sem racismo, sem machismo, sem homofobia, lugar onde todos têm direitos iguais. Oficialmente não se tem mais escravos, as mulheres também podem votar e até entrar na ágora para opinar. Os LGBTQIA+ ainda não podem jogar nos jogos olímpicos, mas poxa, pelo menos os deixam assistir aos jogos. Alguém pode então se perguntar: Porque essas crenças arcaicas e evidentemente tolas se perpetuam na sociedade desde a antiguidade???

A resposta está na ciência e em mais uma crença arcaica e tola herdada da Grécia antiga: a existência de um tal de livre arbítrio. Os gregos acreditavam que a alma é pura e tem pensamentos puros, ela é senhora em sua morada, manda e desmanda. O corpo seria uma espécie de âncora da alma, algo que atrapalharia suas reflexões, seu pleno desabrochar. O livre arbítrio da alma é uma certeza cósmica, óbvia, evidente, assim como as mulheres são meros homens estragados e a democracia é justa se só homens livres tiverem direitos iguais. A crença filosófica que já tem 2500 anos é que fazemos o que decidimos fazer, por livre e espontânea vontade. Temos condições de escolher. Todas nossas religiões e todo nosso sistema jurídico tem esse dogma: somos dotados de livre arbítrio. Mas Jesus, um comunista que foi condenado a crucificação porque queria distribuir a riqueza entre todos, muito à frente de seu tempo, já sabia: “Perdoai, Pai, eles não sabem o que fazem”. Seus discípulos não entenderam o recado. Freud, o filósofo da suspeita, também se deu conta: “O eu não é o senhor em sua própria morada”. O que essas lideranças intelectuais perceberam antes das tecnologias de imageamento cerebral eletrônico sequer existirem é o mesmo que outros cientistas constataram através de inúmeras pesquisas que reproduzem os mesmo achados: livre arbítrio é como a substância etérea que durante milênios segurou as estrelas no céu, não existe. Sim, temos essa herança memética ancestral, serviu para organizar a sociedade por muito tempo, mas agora caducou sua validade. Precisamos repensar tudo. 

A inexistência de lívre arbítrio nos condena a acreditar nas coisas que nos dizem. Por isso levamos 2500 anos para abolir a escravidão que Platão e Aristóteles eram totalmente a favor. 2500 anos para perceber que existe mais gêneros humanos do que somente o homem. Eu falo português porque me ensinaram desde criança. Como goiaba porque tenho um pé no quintal. Visto roupas porque me ensinaram que é feio andar por aí nu. Somos o produto do meio em que vivemos. Por isso a inteligência artificial não é muito esperta, se nem nós mesmos temos livre arbítrio, como poderíamos criar um algoritmo que tivesse? Depois de 2500 anos, o meio em que vivo finalmente criou instrumentos que demonstram que nosso corpo é indissociável da mente. Descobrimos com aparelhos modernos como tomografia computadorizada ou ressonância magnética que nosso “corpente” reage a estímulos como não se imaginava anteriormente. As pesquisas passaram a fazer perguntas muito diferentes das que se pensava antes. Reagimos às situações que se apresentam no meio que nos cerca como só poderíamos reagir. É bem mais simples que o etéreo livre arbítrio.

Uma pesquisa que me chamou muito a atenção foi a que fizeram com juízes americanos que decidiam sobre a licença condicional de presidiários. Juiz é um profissional que teria que exercer o mais sofisticado livre arbítrio. Investigaram qual seria o fator que mais influenciaria as decisões de soltura ou manutenção na cadeia dos apenados. Controlaram variáveis as mais diversas, como a cor do condenado, os crimes que cometeram, sua religião, a cor do juiz, se o juiz era casado ou não, se o presidiário tinha filhos, etc. O resultado da pesquisa foi até anedótico, mas mostra bem o tamanho da ilusão do livre arbítrio: O fator que mais influenciava os juízes a soltar o preso ou não é o quanto de tempo havia passado desde que o juiz tinha feito sua última refeição. Satisfeito ele ficava bonzinho e com fome durão. 

Alguns acreditam que se a notícia de que não existe livre arbítrio se espalhar pela sociedade um caos se espalhará. Todos alegariam que só fizeram o que seus cérebros mandaram fazer na hora. Todos seriam inimputáveis, pois não haveria mais a intenção. Crença semelhante se espalhou entre os legisladores quando da fundação das repúblicas, quando houve a separação do estado e igreja. O temor em Deus controlaria o povo. No entanto, Deus saiu da pauta e as massas não enlouqueceram como previram. O que muito provavelmente ocorra é que a sociedade se torne mais humana, muito mais compreensiva com os infratores, tentando entender quais seriam as razões para a transgressão. Exatamente como professores fazem com alunos difíceis. Investigam o meio ambiente em que vivem fora da escola. As ações pedagógicas são pensadas partindo da compreensão que as causas dos desajustes não são individuais, mas sim do todo que vive a criança. Freud já ensinava, as causas do fenômeno não estão nele, mas no seu entorno. Novamente, os professores têm muito a ensinar à sociedade. 

Minhas colegas professoras me mandaram várias mensagens desejando Feliz Natal. É compreensível, foram ensinadas a fazer isso e não tem livre arbítrio para fazer diferente. No entanto, se pararmos para refletir, Jesus não comemoraria seu aniversário observando que mesmo depois de 2000 anos de sua passagem pela terra, ainda não entendemos seus ensinamentos, não estamos dividindo o pão. A diferença social não diminuiu, ao contrário, aumentou muito. Ainda crucificamos ladrões e apedrejamos adúlteras. Uma das últimas coisa que Jesus falou antes de morrer foi aos ladrões que sofriam a tortura da crucificação ao seu lado, prometeu que logo os encontraria no paraiso. Jesus sabia porque os ladrões precisavam transgredir, eles não tinham livre arbítrio, somente reagiam ao meio ambiente que se apresentava. Como bom professor que era, Jesus sempre perdoava, setenta vezes sete, e não desistia de tentar ensinar mesmo sob extremo estresse físico e mental. Eu aprendi essa lição com Jesus, não consigo entender como posso ser feliz se sei o que sei e vejo o que vejo como professor no cotidiano ou no Natal vestido de Papai Noel. 

Não vai ser a inteligência artificial que vai nos tirar dessa enrascada, ela só vai perpetuar o que sempre foi. Vai ser nossa inteligência natural, sem livre arbítrio mesmo. Vamos ter que fazer com que os nobres da nação experimentem a vida fora de suas muralhas, pois somente decidimos avaliando o meio ambiente do entorno que vivemos e eles vivem num Xangrilá, acham mesmo que assim como está, está tudo bem, não tem livre arbítrio e no meio em vivem as crianças podem andar de mini moto soltas pelo condomínio. Os noruegueses e finlandeses vivem nas sociedades mais justas e felizes do planeta. Lá foi onde melhor se entendeu o que Jesus falou, se distribui a riqueza entre todos, a diferença social é mínima. Na hora de estudar, só há escolas públicas, os filhos dos ricos estudam com os filhos dos pobres. A mesma coisa acontece na saúde e na segurança públicas. Todos experimentam o mesmo meio e usufruem os mesmo direitos, são países realmente democráticos. Os professores são valorizados e são dos profissionais melhor remunerados da sociedade. Não há o apartheid tácito que vivemos aqui no Brasil. 

Esse texto todo é para deixar claro que os professores merecem um bom aumento salarial e uma boa diminuição na carga de trabalho. Obrigado.


 P.S.: Xangrilá, município no litoral norte gaúcho, se auto intitula capital nacional dos condomínios e é o município brasileiro que mais arrecada por habitante, no entanto, há grandes favelas e a diferença social é extrema. Preferem asfaltar as ruas que levam os condomínios às praias do que construir creches, escolas ou mesmo casas para os pobres.


3 comentários:

  1. Saudações, Tiago! Como regra o texto inteiro é de grata lucidez social e ética. A reflexão final me chamou especial atenção pela necessidade que principalmente o povo gaúcho tem, que ser o 'mais', o 'maior', o 'o 'melhor' em tudo. Justamente o o que alarga os contrastes, porque não cabem todos. Muito bom Lê-lo!

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  2. Caramba, Tiago! Despejou um arsenal de cultura, conhecimento e sabedoria bem vividos, num texto que aborda quase que toda a existência humana. Comparar a IA ao livre arbítrio é de uma coragem gigantesca, assim como como é o teu entendimento do que é o livre arbítrio... E eu sigo aqui, refletindo sobre tudo que li. Fantástico! Merece meu aplauso, de novo!

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  3. Meu caro, tua bagagem extrapola o imaginável em se tratando da cultura ocidental vigente. Além disso, o relato direto e sem rodeios da realidade que vivemos, a abissal diferença de classes, retoma a eterna discussão da máxima capitalista do "se você se esforçar consegue", todavia, notório que o conseguir passa inexoravelmente pelo "desde que..."
    Aconselho a aprofundar o texto e lançar um livro sobre o tema...
    Concluo com a triste constatação de que tua produção já está anexada aos arquivos da IA.
    Abracos.

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